Naquele ano de 1513 Nicholo Machiavegli[1] não chegaria ao palácio do príncipe a pé, de forma humilde. Não ia pedir-lhe nada de forma explícita. Pelo contrário, iria dar-lhe um presente como se fosse um ovo de dragão que, esperava, o príncipe viesse a adotar como filho: Seu livro escrito nesse mesmo ano, demonstrando tudo o que sabia de política, das sociedades, do poder. Tampouco chegaria de forma arrogante como quem acha que a experiência é um diploma incontestável, e experiência era o que lhe sobrava. Chegaria em sua própria carruagem, mas subiria as escadarias de forma digna, carregando de forma perceptível, mas não facilmente identificável e ostensiva o seu presente ao príncipe: Um belo livro cujo título era exatamente esse, “O príncipe”, onde demonstrava seus profundos conhecimentos das sociedades, do modo de governá-las, de seus limites de tolerância, e das forças que possuem ou que as podem manobrar sem que percebam.
No fundo, um recado a quem veria em alguns instantes: Lorenzo de Médici, duque
de Urbino. Lorenzo era novo e por mais inteligente que fosse faltava-lhe a
experiência. No entanto, estava seguro que talvez a ele mesmo, Machiavegli, lhe
tivesse faltado experiência ao lidar com os Médici. Mas com tudo isso, Machiavegli
estava consciente de seu maior grau de experiência e de inteligência em relação
aos demais conselheiros nomeados pelo príncipe. Uma dessas posições deveria ter
sido sua. Perseguido pelos Médici que até Papas haviam feito eleger com
dinheiro, intrigas, e até assassinatos, fora preso, torturado e passara a
conhecer o outro lado do poder. Sofrera as conseqüências. Talvez por isso o
tivessem esquecido, embora ainda pudesse ser muito útil à unificação da Itália,
dividida em principados. Tudo dependeria do Príncipe.
Machiavegli aprendera, a
duras penas, que o poder nunca - jamais - é eterno. O segredo da política é mantê-lo
pelo maior tempo possível, com a maior segurança, e o menor número de problemas. Sempre aparece alguém, algum príncipe, algum reino, principado ou
nação mais forte. Poder é bom enquanto dura e se baseia no respeito pelos
antagonistas. Nada pode ser desprezado. Tinha muita coisa a propor ao Príncipe
Lorenzo, e principalmente, torná-lo rei de uma Itália unificada. Tinha sua
lógica. Mas primeiro teria que estudar melhor o íntimo do príncipe e saber do
acolhimento a suas idéias. Saberia ele que Veneza era uma república de sucesso
e enorme poder marítimo graças à sua forma de lidar com o mundo exterior? Não
tinha recentemente construído a praça de S. Marcos, que ficaria pronta no ano
seguinte, em 1514, um símbolo de sua riqueza comercial? Não estava Portugal,
aquele pequeno reino no final da península ibérica, junto às colunas de
Hércules, em franco progresso comercial e marítimo? Pois se pequenos reinos e
principados podiam ser uma Veneza ou Portugal, o que não seriam os reinos de
Itália unidos, tanto mais que Portugal e Veneza? Claro que com pouco esforço
Veneza conseguia minar os lucros dos empreendimentos comerciais de Espanha e
Portugal financiando-lhes os projetos, as construções de caravelas, cobrando
juros altíssimos, mas com o dinheiro e os empreendimentos, uma Itália unida
poderia ser muito maior, dominar a Europa, tal como Roma já o tinha feito.
Machiavegli sabia dos
motivos que mantinham os príncipes italianos desunidos e eram muitos, mas o
principal era a própria competição entre eles. Não queriam ser uma nação
poderosa e grande: Queriam apenas competir entre si e isso os divertia,
dava-lhes razão para viver ou para morrer. O outro motivo era a forma de
governar. Enquanto príncipes fariam o que quisessem em seus reinos. Mas para
serem uma nação teriam que mudar para uma república. A república lhes limitava
os poderes sobre o povo. E o jogo entre eles, a motivação para a própria vida
era a competição num jogo de poder. Além do mais todos temiam o maior problema
de todos: Qual dos príncipes dominaria sobre os demais num reino unido de
Itália?
Machiavegli já estava
chegando ao imponente Palácio de Urbino. As rodas de sua carruagem produziam um
zumbido agradável de poder, aliado ao tropel dos quatro cavalos. Era um gosto
que poderia voltar a ter em breve se conseguisse prender a atenção de Lorenzo.
No livro que lhe entregaria dentro da caixa que levava a seu lado, no
estofamento da carruagem, constavam algumas frases política e filosoficamente
ponderadas que traduziam a vida e o poder tal como são, mas uma delas continha
uma realidade que ele próprio experimentara: o fator sorte!. E isso nunca se
podia esquecer. Ele mesmo, o ex-secretario
da segunda secretaria de Florença, por quatorze longos anos, cuidando da
política externa principalmente, tinha sido demitido da função por puro azar,
do qual a sorte é sempre o único antídoto, porque perdida a confiança, por
azar, os méritos próprios não se consideram e só por grande sorte se podem
recuperar a confiança perdida. Machiavegli sabia disso. Por isso precisaria de
muita sorte, porque o príncipe certamente sabia o que lhe tinha acontecido: No
ano passado, em 1512, tinha sido demitido sob acusação de ser um dos
responsáveis por política contra a família dos Médici, e grande colaborador do
governo anterior. Fora obrigado a pagar mil florins de ouro e proibido de se
afastar de sua terra natal, a Toscana. Isto era verdade e aceitara bem como
parte do risco político, mas o que nunca conseguira entender foi o azar
terrível de constar como provável simpatizante da causa republicana numa lista
elaborada por dois jovens, sem o seu conhecimento: Agostino Capponi e
Pietropolo Boscoli, foram presos por política contra o governo, fundadores de uma causa republicana que postulava a união dos reinos italianos num só Reino.
Evidentemente que os dois
jovens tinham acertado em cheio em sua concepção do que deveriam ser as
tendências de Machiavegli, mas este defendia a filosofia da causa e não a causa
em si, o que era muito diferente, mas inimigos políticos não vêem diferença em
questões tão sutis. Foi preso e torturado por 22 dias seguidos, mas eis que a
grande sorte apareceu em sua vida, tão de repente e inusitada, como o azar de
constar numa lista, sem a sua intervenção: O Papa Julio II faleceu em 21 de
fevereiro de 1513, apenas dez meses atrás, e quem se elegeu em sua
substituição, foi um florentino. Nada mais nada menos que João de Médici, com o
nome de Leão X. Machiavegli beneficiou-se do indulto papal e foi anistiado. Não
perdera tempo, acabara seu livro e ali estava com uma caríssima cópia, pronto
para entregá-la ao príncipe. No fundo o livro tinha muitas e várias intenções.
Uma delas era redimir-se de suas condenações e mostrar que sempre estivera não
só do lado do poder de Florença, como também de toda a Itália, como poder ainda
maior de um povo que falava a mesma língua, herdeiro da glória de Roma. Mas aí
estava algo da idiossincrasia que podia entender: Enquanto Roma fora uma
república, fracassada no final, porque perdeu tudo o que tinha conquistado,
deixou no povo a certeza que nenhum governo cuidaria realmente do povo. Duques,
príncipes, toda a nobreza sabia disso. Pior ainda era a política suja que se
tecia nos corredores de um governo central e que retirava o poder aos delegados
nos reinos. Por isso tinham aparecido os condottieri, que usurpavam o poder e
governavam cada um o seu reino. Estes, bem lá no fundo gostavam de uma Itália
dividida em reinos, porque sempre aparecia a oportunidade de aparecer um
condottiero menos hábil e tomar-lhe terras, poder, impostos. A política dos
príncipes jogava simultaneamente com a sorte, ou o azar, e a competência.
Fazia frio naquele dia de
dezembro de 1513, e flocos de neve começaram a cair sobre o Palazzo Vecchio.
Maior frio lhe ia na alma de Machiavegli. Sua idade já estava avançada para a
época, e embora não fosse fator impeditivo, sempre ficara o fato de ter sido
preso por duas vezes, pago pesado tributo como multa, torturado. Isso era
imperdoável, sinal de que se tinha afastado do equilíbrio do poder, da
compostura, da avaliação política, e sinal pior ainda, que não teve amigos para
o livrarem daquele pesadelo. Foi neste estado de espírito que Nicholo
Maquiavegli subiu as escadas do palácio, e ainda mais se abateu ao olhar os
guardas que já lhe tinham feito as saudações quando era secretario da segunda
secretaria e o haviam recebido em suas viagens de negociação política a França,
a Veneza, ao Papa e aos demais estados italianos.
Mas tinha que subir as
escadarias e entregar o livro olhando o príncipe nos olhos. Afinal, até que a
entrevista terminasse, a esperança da sorte era a última coisa a desconsiderar,
mas isso só aconteceria no leito de morte se viesse a ter um. Provavelmente
seria enterrado sem pompa nem circunstância. As sociedades nunca se lembram do passado, preocupadas que estão no presente com o seu futuro.
Rui Rodrigues
PS –
- Machiavegli nunca mais retornou à política. Machiavegli teimara sempre em não aprender uma coisa fundamental: O político sempre deseja os melhores conselheiros, mas não são estes que decidem, sob pena de ele mesmo, o político, perder o poder. Assim, quando o político decide, depois de ouvir algumas opiniões de conselheiros, a solução geralmente é híbrida de todos eles. É o político que, mal ou bem, manda. Quando acerta, o mérito é de todos, incluindo os conselheiros; Quando erra, jura que foi mal aconselhado. Aparentemente os políticos divertem-se em plena luz do dia, maquinam na penumbra do amanhecer ou entardecer, e vingam-se à noite.
- Depois da ida a Palácio, Machiavegli viveu no
ostracismo até 1520 em sua casa em Sant'Andrea em Percussina,
Florença. Lá produziu muitas obras, incluindo “ A Madrágora”, uma famosa
peça de teatro. Com a morte do príncipe Lorenzo, Júlio de Médici que mais
tarde se tornaria Papa, assumiu o poder em Florença. Mais benévolo que
Lorenzo ou o Papa anterior, contratou Machiavegli para escrever uma “História
de Florença”. Faleceu em 21 de junho de 1527 aos 58 anos.
[1] Nomes
próprios deveriam ser intraduzíveis. A
assinatura de Nicholo Machiavegli não deixa duvidas quanto à verdadeira grafia de
seu nome.
Que beleza de artigo!
ResponderExcluirDionathan M.
Obrigado, Dionathan M. Um grande abraço.
Excluir(E o curioso é que Maquiavel é hoje mais famoso que todos os príncipes juntos daquela época)
Verdade, Rui.
ExcluirDe repente foi uma recompensa do destino por tamanho esforço e determinação ao escrever o livro e perseguir tão fortemente seu objetivo.
Não se tornou conselheiro de Lorenzo, mas hoje, 500 anos depois, muitos governantes tem a obra como "livro de cabeceira".
Hoje concluí a leitura de O Príncipe para a faculdade e encontrei no seu blog as respostas que precisava. Obrigado por compartilhar cultura!
Forte abraço do novo leitor.
Dionathan.
Quando tiver tempo, leia o mesmo livro, mas com os comentários de Napoleão Bonaparte, à margem das páginas... Vale a pena!
ExcluirAbração
Vou ler sim!
ResponderExcluirAbraco!