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segunda-feira, 23 de outubro de 2017

O falcão e o profundo das almas



Nonsense - ou sem senso, sem noção - costuma distrair, relaxar, lê-se e aprecia-se sem compromisso seja com o que for, embora possa soltar uns lampejos sobre assuntos mais ou menos sem a mínima importância, tendo ou não certa ou incerta substância.

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Sentada num banco sob um caramanchão de folhas verdes e flores de todas as cores, ela olhava o horizonte entre névoas de fumaça de um cachimbinho com tabaco alcachofra e cominho. Não fumava. Apenas baforava entre vapores de novos odores que só ela apreciava. Ali sentada sentia-se cheia de si mesma, mas ao seu redor, pendurado em seu pescoço havia um planeta cheio de mutreta e longas muretas que não a conheciam. Se ela não existisse o mundo seguiria igual, imenso chaparral, floresta deserto, imenso mar, sertão, caro melão, azeite nem pensar, seu amor desperdiçado havia partido o que tinha era tudo o que queria ter mas faltava o que o outro tinha que era o que mais amava e já não tem.
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Ali perto na costa, à distância de um arremesso de pequena pedra de mão ou do alcance de uma mentira, havia um sorriso em boca de falcão, o bico cheio de ira, que entre espumas de ondas batidas e raios de sol escaldantes, procurava ovos de gaivotas, e na falta mesmo de codornas, sobrevivendo do alimento que encontrassem seus olhos aguçados empurrados por leves asas cada vez mais pesadas pelo cansaço. Encontrou um rato que comeu sem garfo nem prato, entre guinchos de horror e desespero que ninguém nem nada, que pudesse salvar o roedor, escutou. Ainda o som do ultimo guincho do ratinho descuidado estava chegando aos ouvidos sentados no caramanchão, onde a bela que tinha tudo e não tinha o mais importante, baforava seu cachimbo de odores, quando a cauda do desprevenido peludo guinchante  foi deglutida pelo falcão de bico irado e olhos dos que enxergam o fundo das almas. 

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Bem longe, mas não tanto que bala de canhão não pudesse alcançar, assim houvesse um, poderiam ver-se os traseiros, a que chamam popa, de um barco desses que navegam e jamais afundam se quem os enxergasse tivesse tão potente binóculo, telescópio ou luneta. Ou então olhos de falcão, que mal comparando com os de águia nada há de melhor neste planeta. Na proa, no lugar de bandeira, dois lenços brancos adejantes, dizendo adeus ao que ficou para trás, nada como dantes, agora no mar sem ladrões nem meliantes mesmo daqueles, ou daquelas, que se julgam os melhores amantes e tomam pílulas para dormir, como quem se suicida, pra impressionar o financiador de sua vida. Como aquela do caramanchão, baforada sim, baforada não, de amantes ali à mão, como sempre foi desde que ia para o rio, a cavalo, e transava com qualquer um.

O falcão olhou para o caramanchão, viu as névoas de fumaça de cachimbinho fumegante, de gente antes galante, agora apenas aconchegante e viu com aqueles olhos de penetrar em gretas de alma, o que se esconde com a simpatia e os abrir de pernas, e alçou voo. Subiu embalado pelas correntes quentes ascendentes até que esfriassem e começassem a descender, quando viu ao longe os costados de um barco que produzia uma esteira de espuma onde as sereias se vinham banhar.


Resultado de imagem para caçada com falcãoNo convés o comandante dobrou o braço direito e o colocou num plano horizontal paralelo ao piso. Então o falcão que come ratos distraídos, que consegue ver as profundezas da alma e a superficialidade do que dizem as rugas faciais, desceu entre panos de velas, desviou-se de cabos e roldanas, ignorou o ranger dos estais, e foi pousar no braço do comandante. As sereias têm duas pernas disfarçadas de caudas. Quem ensina a olhar a  profundidade das almas é a natureza do falcão.


Rui Rodrigues

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