CRÔNICAS DO PONTAL DO PERÓ
(A direção e a intensidade do sentido)
Fui
um bom garoto, um bom adolescente, um bom cidadão, e vivo no Pontal do Peró.
Nem sempre, mas quase sempre. Quando preciso de um pouco de inferno, em maior
ou menor grau, saio daqui e vou a Búzios, Cabo Frio, Rio de Janeiro. Mas como
tudo é relativo, há vários graus de inferno, o norte não dista tanto do sul, a
esquerda por vezes se confunde com a direita ali pelo centro, e a diferença
entre céu e inferno não é tão gritante para quem está tão longe de um quanto do
outro.
A
praia é grande, tem cerca de sete km de extensão, e se estende da praia das
Conchas ao Pontal da praia do Peró. Dunas de um lado, mar do outro, ora à
esquerda umas, á direita o outro, dependendo pra onde se vai. Muitas gentes que
visitam ou vivem num destes lugares, nunca visitaram os outros, e já se vão
muitos anos de vida por aqui, mas as notícias chegam de todas as partes do
mundo, de forma virtual. Notícias verdadeiras chegam de forma virtual ao Pontal
do Peró. Amor virtual pode ser verdadeiro no Pontal ou qualquer outro lugar do
mundo. A diferença entre a virtualidade e o real, depende apenas da forma e da
intensidade com que se sentem as coisas que nos rodeiam e nos atingem como
raios iônicos, materializando-se num fenômeno incontrolável a que chamamos
tempo. O tempo é intocável, indefinido, mas existe em qualquer lugar imaginável
ou inimaginável, á esquerda, á direita, no céu, no inferno, em cima, embaixo,
na praia das conchas, e ao longo dela, até o Pontal do Peró. Não há mau tempo.
Há tempo apenas, puro, simples, indecifrável, sem peso, velocidade
determinável. Nossa contagem dos segundos é pura convenção, uma forma de medir.
Em outros sistemas solares, um minuto não é igual a minuto igual ao nosso, a
não ser se medido pelo césio, mas na vida real, ninguém tem a mínima
consciência disso. Provavelmente nem terá a mesma importância que lhe damos.
Os
animais, autóctones, donos do lugar, transitam entre as Dunas e a reserva de
matas virgens defloradas pela ambição humana, pelo progresso com desordem como
é natural e intrínseco aos desejos de felicidade dos humanos. Nem todos os
animais transitam pelas matas. Alguns já foram extintos, como as onças, que já
não vêm beber água junto às pedras do Pontal.
O
tempo é como as ondas do mar que por vezes são mais fortes, mais altas, mas
rápidas, outras vezes parece que nem existem. Movemo-nos em vários mares, em
várias águas, numa vida que é particular a cada um, e da qual ninguém mais sabe
quase nada, apenas que existimos e que somos alguma coisa parecida com o que
pensam que somos julgando por meia dúzia de atos que nos viram cometer e pelos
quais nos julgam. Impossível verem ou saberem de todos os nossos atos, e no
entanto, tentam avalizar-nos todas as vezes que nos encontram, reavivando a
memória, tentando lembrar-se de atos passados, imagens que guardaram em
arquivos perecíveis que, eles mesmos, se distorcem ao longo desse mesmo tempo
em que nos movemos. Perdemos então a noção do que é virtual e do que é real, exceto
em relação a nós mesmos, a quem conhecemos muito bem, porque dominamos todos os
nossos atos desde o primeiro instante em que nos olhamos e sentimos que
existíamos. Desde então, temos mantido um “eu” de que gostamos e que chegamos a
admirar. Basta olhar para o passado, e do quanto nos arrependemos, ou não, do
que fizemos. Somos quase que os donos do nosso tempo. A casa pode ser nossa por
mais ou menos tempo, e o carro, e a roupa, e os amigos, mas só o tempo é
realmente nosso até que ele mesmo se separa de nós. Alguns chamam a isso de
“alma” ou “espírito”. Eu chamo de tempo. Quando o tempo nos deixa – ou nós
deixamos o tempo, que na teoria da relatividade não importa o que deixa o quê –
tudo se apaga, e somente durante algum tempo ainda perduramos no imaginário –
virtual – de alguns que se dignam recordar-nos, até que mais ninguém se
lembrará. Nomes num livro de história, mesmo que com algumas imagens, não
definem o que fomos, e sempre estará sujeito á limitação do pouco que
conheceram de nossos atos. Por isso não podem julgar-nos em nenhuma instância
ou em alguma circunstância. O tribunal de Osíris já foi fechado, e as almas, ou
“kas”, já não são pesadas em função do que fizemos de coração ou de imaginação.
Não
sei se as ondas do mar estavam fortes agora á noite, nem se vinham com
velocidade ou apenas murmuravam sussurros nas areias da praia. As noticias da
Europa ainda marolam na crise originada nos EUA e como qualquer tsunami,
chegarão à América do Sul. Dei-me conta de que continuo sendo o bom garoto que
foi um bom adolescente, um bom cidadão, e que merecia algo diferente de ontem:
entrei na Internet mais uma vez, apenas para apanhar uma receita de molho
branco com noz moscada, creme de leite, queijo ralado e pimenta do reino que não
por acaso tinha em minha despensa. Espero uma amiga de visita para quarta-feira
e sei que aprecia um bom prato. Assim, resolvi adiantar a receita, hoje,
terça-feira, para aproveitar todo o potencial de cozinhar com vontade de
agradar. Cortei batatas às rodelas grossas e coloquei no fundo de um pirex. Por
cima, coloquei lascas gordas de bacalhau que previamente cozi. Por cima de
tudo, um refogado de alho e cebola em azeite virgem. Por cima de tudo, o molho
branco e ovos cozidos em rodelas, que espalhei aleatoriamente. Levei ao forno
por vinte minutos. O prato será servido como surpresa, exceto por um pequeno
pedaço que faltará, mas não numa amizade á qual não falta pedaço algum. Nada é
perfeito, mas ficou muito bom, sem falsa modéstia. Brindei sozinho hoje,
esperando o dia de amanhã, com um vinho tinto, forte e aromático como o
bacalhau, forte como as ondas fortes do mar forte, como as esquerdas quando
lutam contra as direitas, como os céus quando lutam contra os infernos.
Ainda
fico impressionado com algumas coisas que ainda descubro da vida, e da mesma
forma me impressiono como levamos tanto tempo para perceber como é simples e
fácil ser-se feliz. Infelizmente também me impressiono pelo modo fácil com que
nos deixamos levar por ondas de moda, de princípios, de lastimáveis princípios
que, em nome de falsos objetivos, nos encobrem a nossa felicidade aos nossos
próprios olhos e nos obrigam a passar grande tempo de nossa vida em trajetória
errônea em busca de uma pretensa felicidade que alguns de nós jamais
encontramos por milênios que pudéssemos viver.
Quem
fez este universo o fez com leis fáceis e simples, belas, simétricas ou quase,
perfeitamente estáveis, sem nada que complique.
E
quando se descobre o véu do que nos é encoberto, teimam em desprezar e
bloqueiam a constatação para que nada se altere no que pensam ser o ambiente estável
da vida que lhes dá esperança eterna de felicidade. Só esperança.
Rui Rodrigues