Muito além da escuridão há uma luz...
No “Bar do Chopp Grátis” todos
os dias são quase normais. Bebe-se muita cerveja, a vozearia chega a ser
monótona entre tilintar de copos, e muito raramente alguém puxa um assunto
interessante que faça com que as mesas e cadeiras se juntem em torno de um
“palestrante”, formando-se um circulo de raio tão variável quanto o teor
alcoólico dos miolos interessados em escutar. Mas acontece. Ontem á noite
aconteceu com o Carlos Hildebrando, um velho freguês quando Beatriz, outra
velha cliente puxou o assunto de “vidas passadas”. Ambos são velhos fregueses
do Bar, mas não têm mais de 50, no máximo 55 anos.
Carlos Hildebrando da
Fonseca Y Aguilar ficou muito impressionado com essas histórias de reencarnação
contadas e propaladas em livros e pela NET e agora levantadas por Beatriz, a
dona das pernas mais belas e bem torneadas de toda a clientela feminina. Uma
Marlene Dietrich até no olhar fatal de galinha morta. Contou então a sua
história. Alguns meses atrás, movido pela curiosidade sobre o assunto tinha tomou
uma decisão depois de muito matutar sobre as conseqüências: Estaria disposto a
enfrentar duras constatações de vidas menos dignas, indignas, muito indignas
caso tivesse sido esse o seu caso? E em quem acreditar? Sim, porque não ouviria
apenas a uma fonte, mas a várias. A entrar nessa gruta de surpresas, iria até o
fim. Queria saber tudo nos mínimos detalhes. Faria sessões de “regressão” por
hipnose, procuraria os melhores conhecedores do assunto via tarô, ou consulta
despersonalizada via NET. Estava movido pela curiosidade que o atormentava dia
e noite. Hoje no Bar Carlos nos contou a sua experiência. No princípio da
conversa pensou-se que seria algo jocoso, irônico, com bastante humor, porque
se discutiu os métodos para descobrir as vidas passadas, que mais pareciam um
engodo, uma armadilha para os “crentes em qualquer coisa desde que seja
estranha”, mas a conversa foi descambando para o sério.
Carlos é do tipo de ouvir sempre, pelo menos, duas opiniões para cada tópico de um assunto complexo. Primeiro foi no mais fácil e entrou num site da NET que só lhe pediu em números a data de seu nascimento. Não pôde ter fé nesse site, porque muita gente nasceu no mesmo dia que ele e estariam todos reduzidos a um único passado idêntico. Isso seria impossível. Segundo esse site teria nascido no Norte da Índia, teria sido dentista no ano 700, homem. Então, como parte do “negócio” para crentes, o site encaminhava para “respostas” do Tarô, e até previa data de morte sem se preocupar sobre a saúde, hábitos, etc. Não pôde acreditar em algo tão inconsistente. Consultou vários “experts” mo assunto, desde estudiosos de Tarô a pais de santo, astrólogos, e foi até em vários centros espíritas, mas não ficou satisfeito. Um especialista chegou a dizer que ele tinha sido uma meretriz da alta sociedade, amante de um gladiador em Pompéia e que tinha morrido sufocada durante a erupção do Vesúvio no ano 79 DC quando fazia amor com ele, um gladiador. O especialista chegou a sugerir que poderiam ir a Pompéia e pedir aos curadores do museu de estátuas de cinza para fazer o teste de DNA, o que confirmaria que ele tinha sido a meretriz. Carlos poderia ser bobo de vez em quando, mas não a todo o instante. Foi então que se consultou com um psicólogo especializado e se submeteu a umas sessões de hipnose regressiva. Como é muito precavido, levou a mulher, não fosse o psicólogo um tarado que se aproveitasse dele enquanto estivesse hipnotizado. Realmente, dadas as circunstâncias atuais do mundo em que se vive, toda a precaução é necessária até para ir a templos, sejam eles quais forem e onde forem. Vai que aparece um fanático e explode tudo... No consultório esperava que o fizessem flutuar no espaço por cima de um sofá de veludo, mas não encontrou nenhum sofá de veludo. Foi hipnotizado deitado numa maca de consultório médico daquelas que tem uma escada me metal móvel para crianças ou para quem tem pernas curtas. Ouviu o mantra do psicólogo, concentrou-se com a maior das boas vontades, entrou em transe e se lembrava muito pouca coisa, mas tudo que falou ficou gravado num lindo e brilhante CD de computador. Mas antes de ouvi-lo, o psicólogo foi até o computador e pesquisou dois nomes que Carlos havia falado em seu transe: Wilhelm Gustloff [1]. Era um navio de passageiros. Um olhar de admiração do psicólogo fez tremer Carlos e a esposa. Era um olhar preocupante, com ares de catástrofe. Carlos estava impressionado, ansioso para fazer perguntas. Seu corpo estava frio, o suor frio de suas mãos o incomodava. Mas mais ainda o incomodava a expressão corporal de sua esposa, tolhida, encolhida, os olhos dela buscando os dele tentando ler-se no íntimo, um ao outro.
A esposa de Carlos estava
imóvel, os músculos retesados, em estado latente de tensão. Carlos pensou
acertadamente que isso se devia ao que tinha falado durante a sessão. Passou as
mãos no rosto, perto dos olhos sentindo que algo o incomodava e viu que estava
molhado. Ele chorara durante a sessão, mas não se lembrava de ter chorado. Começaram
então a recordar o que ele falara e o que vira e aos poucos Carlos foi unindo
fatos e sensações. Ele disse:
- Meu Deus! Que coisa
terrível, uma catástrofe. Foi a maior catástrofe naval de toda a história
humana. Eu morri!
Era o dia 30 de janeiro de
1945, um dia muito frio como costumam ser os dias frios na zona do Báltico. O
dia já estava no fim e o Wilhelm Gustloff que tinha saído do porto de Dantzig
na atual Polônia, estava incrivelmente repleto de refugiados alemães da Prússia
Ocidental evacuados numa operação chamada Hannibal. Fugiam desesperadamente do
exército russo e dos próprios poloneses agora libertos. O navio tinha sido projetado para cruzeiros da
classe operária de Hitler e fizera muitas viagens para os fiordes noruegueses, Lisboa
e Ilha da Madeira. Em 1939 tinha feito o repatriamento da Legião Condor, alemã,
durante a Guerra Civil Espanhola. Sua
capacidade era de cerca de 1.800 passageiros. Naquele dia, porém, transportava
incríveis 10.500 pessoas, sendo cerca de 1.000 a tripulação e 4.000 eram
crianças. Havia muitos soldados alemães feridos em combate. Entre eles, Carlos
se lembrava do nome de uma criança: Horst Woit [2],
uns seis anos de idade. Estava acompanhado de sua mãe. A ultima vez que o viu
ele estava tirando um canivete suíço de suas calças e o dava a um marine alemão
para cortar as cordas do barco salva-vidas, que lhes permitiria baixar o bote
para a salvação. O navio tinha sido torpedeado três vezes por um submarino
russo [3] às
21:10. Embora quatro torpedos tenham sido lançados, um falhou. As explosões
provocaram pânico instantâneo. Crianças choravam, pessoas corriam para
salvar-se. Muitas caíram ao mar, muitas morreram com as explosões. O navio
adernou a 15 graus instantaneamente e às 22:30 já não existia mais. O Báltico
era agora todo silêncio. Carlos ajudava no convés no que podia. Não estava
preocupado em salvar sua vida. Respirava, não estava ferido, era jovem ainda.
Estava com 28 anos. Não era herói. Ajudava idosos, mulheres e crianças a
salvar-se, amparando-as, encaminhando-as para os botes. Entre eles, Horst Woit e a mãe. O que mais o
impressionava eram as expressões dos olhares, os olhos excessivamente abertos, muitos
gritos, gente se empurrando, crianças pisadas, a conformação expressa em muitos
olhares da certeza que morreriam. Apesar de tanta certeza e conformação, 964 se
salvaram. Entre 8.500 e 9.600 morreram por ferimentos, por pisoteamento, por
quedas ao mar, pelo frio do mar Báltico, boa parte afogada antes de sentirem os
efeitos da hipotermia.
Carlos viu os alguns
botes se afastarem aparentemente a salvo, quando a popa do navio ainda estava a
uns bons 10 metros acima do nível do mar. A inclinação não permitia ninguém no
convés a menos que estivesse agarrado a alguma coisa. Carlos estava agarrado a
uma corda cortada dos botes salva-vidas. Sabia que ao afundar o navio o sugaria
para o fundo. Quanto mais tarde saltasse ao mar, menos tempo ficaria na água fria,
a cerca de dois graus centígrados e uma sensação térmica de menos dez graus,
prolongando assim sua entrada no estado de hipotermia, mas reconhecia que já
era muito tarde para saltar. Se seus pulmões agüentassem poderia subir à
superfície, embora isso fosse praticamente impossível. Não tinha muitas
esperanças. Aceitava a fatalidade. Qualquer navio que tivesse sido avisado
pelos S.O.S lançados não apareceria antes de pelo menos uma hora.
Agora Carlos se lembrava de sua regressão completamente. Primeiro sentiu o frio. Depois quis respirar, mas respirou água. Seus pulmões estavam inertes, arfava para respirar cada vez com menos força. Seus olhos se apagaram quando todos os seus sentidos já não sentiam nada. Nem dor, nem pena. Absolutamente nada. Por mais uns cinco minutos ainda lhe restou a visão e um leve sentimento de que em breves segundos mais só restaria a escuridão. Então, como num despertar virgem, sem qualquer lembrança, começou a escutar o som das ondas do mar, suaves ondas como as de lagoas batidas por leve brisa e também sem a mínima noção de tempo, sentiu que via embora tudo estivesse escuro. Ouviu sons de canções ao longe, sons de rádio, sons de passos entremeados de silêncios absolutos, nada como dantes. Até que de repente viu a luz, e escutou perfeitamente: É um menino! E então chorou tudo o que não havia chorado.
® Rui Rodrigues