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segunda-feira, 14 de maio de 2012

A Lenda dos meninos do Castelo de Fornelos

                                 
                    
                                   A lenda dos meninos do Castelo de Fornelos


Em 1740, Fornelos era uma vigararia, com algumas casas e uma Igreja em construção, fundada por um grupo de 11 moradores.
Em março de 1809 já era uma vila com bastantes e assenhoreadas casas cercadas por vinhais de boa cepa. A população bastava-se por si mesma. Cuidava das suas plantações de batatas, hortas, criavam borregos, cabras e bois. Almocreves passavam de quando em vez e traziam novidades que não se fabricavam por lá. Também lá ia uma senhora de rosto manchado, xale e um grande avental, que vendia peixe salgado do mar para que pudesse resistir. O mar ficava muito longe, lá para os lados do Porto e Vila Nova de Gaia. Os peixes chegavam a Peso da Régua em lombos de burros. A valente senhora fazia o percurso de Santa Marta até Fornelos para vender o seu peixe, cujo cheiro não era comum por aquelas bandas. As crianças corriam para assistir á venda no largo da Nogueira, junto à fonte, para ver como eram grandes aqueles peixes. Normalmente ela trazia arraias e sardinhas, uns cachuchos, umas sardas.
Durante todo o dia 12 de março não se falava em outra coisa que não fosse a iminente invasão das tropas francesas. Napoleão já tinha invadido Portugal uma vez e agora o fazia pela segunda vez. Na mitra da aldeia reuniram-se os anciãos aos jovens para decidirem o que fazer no caso das tropas passarem por lá. Esconderam o que puderam ao pé de árvores conhecidas, mas as garrafas de vinhos de todos os anos que haviam passado, testemunhos de boas colheitas, essas dariam muito trabalho para esconder. Ficariam nas adegas subterrâneas das casas. Mulheres e crianças ficariam na Igreja a orar. Os mais velhos ficariam na escuta e na observação. Os mais jovens pegaram em seus bacamartes, velhos arcos e bestas e postaram-se na única entrada da aldeia, na estrada que a ligava a Santa Marta. Essa estrada ainda existe. Essa era toda a força de defesa que Fornelos poderia ter. Não havia um castelo onde se refugiar, guarnição do exército, nada. Mas se os franceses chegassem até lá, poderiam até entrar, mas muitos jamais sairiam. Isso poderia ser de grande ajuda para os expulsar do território. Quanto mais se enfraquecessem as forças de Napoleão, melhor seria. O Rei, D. João VI, de título “Rei de Portugal Brasil e Algarves” até se tinha mudado para o Brasil, um dos reinos, para evitar que a invasão fosse consumada, pois que para vencer, naqueles tempos, não era suficiente invadir. Havia que se prender, derrubar o Rei, como ainda hoje se faz nos jogos de xadrez. D. João VI não lhes deu esse prazer e tornou-lhes a vitória impossível, porque para o apanharem teriam que viajar até o Brasil e enfrentar a esquadra portuguesa juntamente com a inglesa, a rainha dos mares.
Mário, Afonso, Pedro, Adalberto e Otílio eram crianças entre os 12 e os 16 anos. Foram para a Igreja com os outros, mas logo entre cochichos resolveram que o melhor era ir ajudar os mais velhos. Sorrateiramente evadiram-se da Igreja e foram apanhar as suas fisgas. Uma fisgada no olho de um francês tinha que causar algum estrago. A noite estava fria, chuvosa, Em noites como aquela, em outros tempos, seus pais, mães, algumas avós, costumavam contar-lhes histórias enquanto tomavam um leite quente de cabra, com migas de pão. As histórias terminavam sempre quando já estavam aconchegados com os pés quentes por uma botija de água aquecida no lume das brasas da lareira. Naquele frio, fora da igreja, muitas histórias passaram pela cabeça dos cinco pequenos amigos.  Seu temor era imenso naquele negrume da noite fria. Começavam a tremer sem saber se era do frio ou de medo. Certamente tremiam pelos dois motivos. Tinham certeza e imensa fé de que poderiam ajudar a salvar a aldeia se preciso fosse. Pararam e de mãos dadas, fizeram um pequeno circulo e rezaram a Deus.
No meio da oração, Afonso, o mais novo, perguntou aos outros;
- Olhem lá... Como é Deus para lhe podermos rezar de forma a que ele nos ouça? Não podemos rezar sem sabermos como ele é. Podemos enganar-nos e rezar ao deus dos franceses e ele não  vai nos ouvir.
- Minha mãe reza a Jesus - disse Pedro, o mais novo - Estou justamente a pensar nele.
- Mas ouvi dizer - atalhou logo o Adalberto – que existe também o Buda, o Alá e outros.
- É sim! – concordou Otílio – Então deve haver outro Deus maior ainda e mais forte que será o chefe deles. Vamos rezar-lhe que é mais seguro.

E completaram a oração. Logo em seguida começaram a ouvir dois tipos de ruídos. Eram fortes chiados de rodas e passos fortes de botas que vinham dos montes, misturados ao som de ferraduras de cavalos ao bater no chão pedregoso dos montes ao redor da vila. De outro lado, no cimo da aldeia, lá no cimo, para os lados do cemitério, um som mais parecido com um longo e forte silvo grave, abafado. Imaginaram logo que o chiado era de rodas de canhões, acompanhados de soldados armados e cavalaria. Estavam perdidos. Na igreja logo souberam que uma força de Napoleão se aproximava da aldeia e eram muitos a julgar pelos sons. Na aldeia os mais velhos podiam contar quantos cavalos eram, quantos homens, quantos canhões, porque estavam habituados aos sons que vinham de cada monte. Calcularam uns cinqüenta homens, e vinte cavaleiros com um  canhão e 12 carroças. Não era o exército de Napoleão. Seria uma força que se desgarrara do exército principal para conseguir mantimentos para o corpo de invasão.
Olharam então para trás.
Havia um castelo enorme lá no cimo da aldeia. Não havia uma só luz acesa. Era um monstro imenso. No alto tremulavam a bandeira inglesa e a portuguesa, que colhiam reflexos que passavam entre uma nuvem e outra na noite escura,
Parecia um imenso fantasma. Em cada ameia, imponente, a figura de um rei português desde D. Afonso Henriques, o fundador, até D, João VI. Todos já mortos menos o último que estava no Brasil. Podiam reconhecê-los pelas figuras que tinham visto na escola, uma casa alugada onde a professora esquentava suas belas pernas no braseiro. Todos já se tinham oferecido para ir apanhar o braseiro e colocá-lo demoradamente aos pés dela, debaixo de sua grande mesa. Ouviram também comentários, com todo o respeito, vindos de homens solteiros e também dos casados da aldeia, coisa que nem se atreviam a comentar para não levar uns tabefes. Chegavam a ir para o alto do rio, escondidos entre as moitas, na esperança de vê-la a lavar roupa e sair para abrir o milheiral. Ás vezes era assim. Quando alguma mulher ia para o meio do milheiral, logo do outro lado o milho se abria como por encanto e as duas trilhas se uniam lá no meio. Mas nunca viram a bela professora lavar roupa e muito menos ir para o meio do milheiral.

Correram para a Igreja e aos gritos avisaram quem lá estava. Os homens que estavam mais perto logo se deram conta também e todos correram esbaforidos, rua acima, a caminho do castelo de Fornelos. Ainda era um bom caminho a percorrer cheio de fragas roliças que faziam escorregar. Cada um com sua fisga e um monte de pedras nos bolsos, os cinco pequenos lá foram, correndo o tanto que podiam. Volta e meia escutavam uma imprecação dos mais velhos que se repetia amiúde:
- Ora esta, carago... Um Castelo em Fornelos, caneco!...
- E os franceses, esses safardanas, estão a vir ou estão ainda a monte?
Quando chegaram ao Castelo não viram ninguém. Não havia um rei sequer nas ameias nem na torre de menagem.  Nem bandeiras. Nem castelo havia. Era apenas uma sombra que se dissipava entre o nevoeiro da manhã. A chuva parara. Incrédulos, apuraram os ouvidos para escutar se havia movimento dos franceses. Nada. Só se ouvia o piar de cotovias, tordos, pintassilgos. Quando chegaram à aldeia, os primeiros alvores do dia haviam feito o céu brilhar como dantes.
Quando chegaram ao largo da Nogueira, quase na saída da aldeia, viram um soldado francês embriagado. Tinha nas mãos uma garrafa de vinho tinto, da safra de 1808, do ano anterior, praticamente vazia. Trocava as pernas apoiando-se num bacamarte. Ao vê-lo, Abílio, o mais velho, apanhou a sua fisga. Rapidamente atirou-lhe uma pedrada que bateu na testa do “chausseur de Fischer”, tipo de unidade francesa da guerra peninsular conhecida como “caçador”. Em vez de gritar em francês, o homem soltou uma imprecação bem conhecida, com uma voz inconfundível.
- Malditos franceses, carago!
Era o Américo, homem de posses e já meio passado na idade, que gostava de entornar uns copos. Tinha ficado porque já estava mal das pernas e cansado. Vestira uma roupa velha do exército francês ainda da primeira invasão para passar desapercebido. Aproveitara a ocasião para entrar numa adega e tomar os últimos copos de sua vida, Nenhum francês entrara na aldeia.

A caminho do Porto o marechal francês Nicolas Jean de Dieu Soult perguntava a seu oficial de campo onde estaria aquele destacamento que destinara para assaltar as aldeias e trazer mantimentos. O oficial informou que esse se perdera e não tinha notícias. Haviam desaparecido.
Na aldeia, os garotos comemoravam a façanha. Haviam pedido desculpa ao Américo e até haviam ajudado a fazer-lhe o curativo no galo que lhe parara de crescer no meio da testa. Por pouco não lhe batera no olho. Homens e mulheres comentavam sobre o lindo castelo que aparecera e desaparecera numa única noite.
Orgulhosas, as crianças comentavam os acontecimentos entre si. Disse o Otílio:

- Estão a ver? Que grande pedrada. Se fosse um francês eu tinha acertado. Palavra que tinha!. Sabem qual é o nome do gajo que comanda os franceses? João de Deus Soult. Que Deus será esse o dos franceses? Deve ser muita fraco pá!

Em 1983 visitei Fornelos.  A roupa que o Américo usava não sei que fim levou. O caruncho deve-a ter rilhado toda. As garrafas nas adegas ainda estão lá. Agora muito menos, mas estão marcadas a tinta branca com a data da safra do vinho. Os franceses desse não beberam. O bacamarte foi vendido a um almocreve que fazia o trajeto entre o Viso e Fornelos e que morreu mais tarde numa luta com outro almocreve, galego. Dizem que em certas noites umas luzes andam para cima e para baixo até se encontrarem na metade do caminho onde ainda existe uma capela, em honra de Santa Eufêmia, e então depois de breves segundos juntas, desaparecem.

O vinho que tomei, da safra de 1810, data da ultima invasão francesa quando o exército de Napoleão foi derrotado na batalha de Toulouse, era muito bom. Ainda lhe sinto o paladar. Napoleão perdeu a prova de um grande vinho que talvez tivesse mudado o rumo da história. Hoje, esse vinho teria 202 anos. Se passar em Fornelos, pergunte se ainda o há. Se não houver, tome qualquer outro de qualquer safra Todos são excelentes e honestos. Não devem nada aos de Napoleão.  
Rui Rodrigues

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