Os 22 amigos
Nossa introspecção sobre nossos atos e o meio que nos influi
faz com que nos movamos no tempo, hora a hora, minuto a minuto em plena
transformação e evolução. Não somos os mesmos de anos atrás, como não somos os
mesmos de um minuto atrás. Muitos de nós não percebemos essas alterações e
juramos que sempre fomos assim. Convivemos com os nossos “agora” como se fossem
sempre os mesmos e eternos.
Em 1961 eu tinha 16 anos e nascera num país habituado a
descobrimentos, conquistas, colonialismo. Parentes meus contavam como alguns
dos capatazes em Angola submetiam os trabalhadores negros “no chicote” em pleno
século XX. Não faziam o mesmo em Goa,
nem em Damão, nem em Diu, nem em Timor. Perguntávamo-nos porquê.
Éramos 22 amigos que, residindo no mesmo bairro ou em outros
adjacentes ao de Arroios, deixáramos de freqüentar a Igreja por sua
inconsistência na pregação: Pregava paz, a moral, a ética e se colocava ao lado
de governos colonialistas como a relação entre o Cardeal Cerejeira e Salazar
atestava. Alguns de nós freqüentávamos o
Liceu Gil Vicente, outros o Liceu Vaz de
Camões. As guerras pela independência tinham começado em 1960, e As maiores
potências do mundo as apoiavam. Salazar remava duramente contra o que chamava
de “ventos da história”, e arrastava a juventude para guerras perdidas. Salazar
já não pensava. Transformara-se num obcecado pelo narcisismo de sua figura
pública, o homem que salvara Portugal das finanças, e que, usando o dinheiro de
depósitos de emigrantes, gastava tudo o que juntara em guerras perdidas. Era um
ditador, vestindo sua capa de homem de bem, de paz, calçando velhas botas
negras polidas de seus vetustos tempos de seminarista frustrado. Sua voz
afeminada e abafada já nos irritava em seus discursos, mas nossos comentários,
entre os 22 amigos, ainda eram comedidos em 1961. Algum poderia tornar-se um
delator.
Como currículo escolar era obrigatória, por todos os alunos
da rede de ensino, a participação na Mocidade Portuguesa, com fardas verde e
bege, compradas com o dinheiro de nossos pais, e um cinto com um S em bronze
que diziam significar “Somos Soldados de Salazar”. Eu ficava impressionado como
que a comunidade internacional não intervinha na nação, porque aquilo era uma
volta ao Nazismo, ao Fascismo, ao “ave César”, e destoava completamente do que
se entendia por democracia, mas percebíamos que, por exemplo, os EUA relevavam
isso em troca da cessão de umas bases aéreas nas ilhas dos Açores, a Inglaterra
em troca dos benefícios da comercialização do vinho do Porto. Face a isso,
pessoas eram presas, torturadas, leis absurdas de exceção publicadas todos os
dias ou todas as semanas, proibindo até que se acendessem isqueiros se não
fosse “debaixo de telha”.
Política e igreja, diziam uma coisa e faziam outra. Passei a
não acreditar em nenhuma delas e rezava ao meu Deus, o Pai de todos nós, e não
nenhum outro, muito menos de filho de homem, para que salvasse a paz das
guerras estúpidas. Mas, por preservação
de meu futuro, entrei para a Marinharia, uma extensão da Mocidade Portuguesa,
preparando-me para a guerra, já que nenhum dos meus patrícios parecia ter
competência para acabar com o governo que as mantinha... Os poucos que tentaram
estavam exilados, presos, feridos ou mortos. Meu pai que me mandava uma carta
de vez em quando do Brasil, onde residia há 9 anos, não se pronunciava sobre a
minha ida para lá. Nem eu já pedia. Tinha perdido as esperanças.
Treinava aos sábados na canhoneira Diu, recebendo instruções
de manejo de armas descarregadas (isso era raro), natação pulando do convés do
navio, código Morse, sinais com bandeiras, nomenclatura de cada peça da
embarcação. Levávamos o nosso próprio almoço, o que eu julgava ser um absurdo.
Salazar era duro, pão duro, sovina, mas no Palácio de S. Bento, não !. Suas
botas negras polidas, faziam parte de uma ‘imagem” pública e tirava fotografias
com bandos de meninas puxa-saco, também como imagem pública. Seus ministros
viviam à “tripa forra”, falava-se que a FNAT – Fundação nacional da Alegria no
Trabalho (só rindo) era uma empresa do Estado e que significava “Fanantes
nacionais Agarrados ao Tacho”.
No meio dos 22 amigos, Salazar tinha uma outra imagem,
completamente diferente, mas se fossemos entrevistados, diríamos que era o
“Nosso Senhor”, que éramos os seus “solados”, que tinha feito muito bem pela
Pátria. Deve ser assim ainda em Cuba. A população pensa uma coisa, vê-se
obrigada a dizer outra para sobreviver...
Quando em 1962 meu pai me mandou uma carta de chamada para o
Brasil, agradeci aos meus dois Pais: o do Céu e o da Terra. Lamentei pelos que
ficavam. Larguei as divisas que ganhara como participante da Mocidade
Portuguesa – todos queriam ser ‘comandantes de Castelo”, e as da Marinharia. E
embarquei para o Brasil, levando na memória as fotos que eu vira das
atrocidades cometidas em Angola quer por portugueses quer por Angolanos, com
mulheres grávidas extirpadas, mulheres abatidas com os seios cortados e
colocados em suas mãos abertas, inertes no solo. E outras igualmente horríveis,
como estacas ao longo da estrada com testículos espetados como aviso e vã
glória.
Em 1983, depois de longos anos ausente, e após pesquisa nas
páginas amarelas, voltei a Lisboa com um endereço certo: o do amigo Pedro, que
ficara cego aos 7 anos de idade, e que de vez em quando o levávamos a passear
para distrair as idéias. Foi um encontro como se o tempo não tivesse passado.
Soube então que dos nossos 22 amigos, um falecera de ataque cardíaco ainda
muito jovem, e os outros, todos, sem exceção, tinham morrido nas guerras.
Creio que para tudo é necessário um tipo muito especial de
“sorte”... A sorte de nunca estar no lugar errado, numa hora errada. Mas isso
não é sorte. É escutar e sentir a vida a cada momento, tomando atitudes que nos
desviem das horas erradas e dos lugares errados.
Exceto para os heróis.
Esses morrem na hora certa, no lugar certo, da forma certa.
Já os mártires, não. Esses são fabricados pela mídia.
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