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terça-feira, 8 de maio de 2012

os 22 amigos


                                                                      Os 22 amigos

Nossa introspecção sobre nossos atos e o meio que nos influi faz com que nos movamos no tempo, hora a hora, minuto a minuto em plena transformação e evolução. Não somos os mesmos de anos atrás, como não somos os mesmos de um minuto atrás. Muitos de nós não percebemos essas alterações e juramos que sempre fomos assim. Convivemos com os nossos “agora” como se fossem sempre os mesmos e eternos.

Em 1961 eu tinha 16 anos e nascera num país habituado a descobrimentos, conquistas, colonialismo. Parentes meus contavam como alguns dos capatazes em Angola submetiam os trabalhadores negros “no chicote” em pleno século XX.  Não faziam o mesmo em Goa, nem em Damão, nem em Diu, nem em Timor. Perguntávamo-nos porquê.

Éramos 22 amigos que, residindo no mesmo bairro ou em outros adjacentes ao de Arroios, deixáramos de freqüentar a Igreja por sua inconsistência na pregação: Pregava paz, a moral, a ética e se colocava ao lado de governos colonialistas como a relação entre o Cardeal Cerejeira e Salazar atestava.  Alguns de nós freqüentávamos o Liceu Gil Vicente, outros o Liceu  Vaz de Camões. As guerras pela independência tinham começado em 1960, e As maiores potências do mundo as apoiavam. Salazar remava duramente contra o que chamava de “ventos da história”, e arrastava a juventude para guerras perdidas. Salazar já não pensava. Transformara-se num obcecado pelo narcisismo de sua figura pública, o homem que salvara Portugal das finanças, e que, usando o dinheiro de depósitos de emigrantes, gastava tudo o que juntara em guerras perdidas. Era um ditador, vestindo sua capa de homem de bem, de paz, calçando velhas botas negras polidas de seus vetustos tempos de seminarista frustrado. Sua voz afeminada e abafada já nos irritava em seus discursos, mas nossos comentários, entre os 22 amigos, ainda eram comedidos em 1961. Algum poderia tornar-se um delator.

Como currículo escolar era obrigatória, por todos os alunos da rede de ensino, a participação na Mocidade Portuguesa, com fardas verde e bege, compradas com o dinheiro de nossos pais, e um cinto com um S em bronze que diziam significar “Somos Soldados de Salazar”. Eu ficava impressionado como que a comunidade internacional não intervinha na nação, porque aquilo era uma volta ao Nazismo, ao Fascismo, ao “ave César”, e destoava completamente do que se entendia por democracia, mas percebíamos que, por exemplo, os EUA relevavam isso em troca da cessão de umas bases aéreas nas ilhas dos Açores, a Inglaterra em troca dos benefícios da comercialização do vinho do Porto. Face a isso, pessoas eram presas, torturadas, leis absurdas de exceção publicadas todos os dias ou todas as semanas, proibindo até que se acendessem isqueiros se não fosse “debaixo de telha”.

Política e igreja, diziam uma coisa e faziam outra. Passei a não acreditar em nenhuma delas e rezava ao meu Deus, o Pai de todos nós, e não nenhum outro, muito menos de filho de homem, para que salvasse a paz das guerras estúpidas.  Mas, por preservação de meu futuro, entrei para a Marinharia, uma extensão da Mocidade Portuguesa, preparando-me para a guerra, já que nenhum dos meus patrícios parecia ter competência para acabar com o governo que as mantinha... Os poucos que tentaram estavam exilados, presos, feridos ou mortos. Meu pai que me mandava uma carta de vez em quando do Brasil, onde residia há 9 anos, não se pronunciava sobre a minha ida para lá. Nem eu já pedia. Tinha perdido as esperanças.

Treinava aos sábados na canhoneira Diu, recebendo instruções de manejo de armas descarregadas (isso era raro), natação pulando do convés do navio, código Morse, sinais com bandeiras, nomenclatura de cada peça da embarcação. Levávamos o nosso próprio almoço, o que eu julgava ser um absurdo. Salazar era duro, pão duro, sovina, mas no Palácio de S. Bento, não !. Suas botas negras polidas, faziam parte de uma ‘imagem” pública e tirava fotografias com bandos de meninas puxa-saco, também como imagem pública. Seus ministros viviam à “tripa forra”, falava-se que a FNAT – Fundação nacional da Alegria no Trabalho (só rindo) era uma empresa do Estado e que significava “Fanantes nacionais Agarrados ao Tacho”.

No meio dos 22 amigos, Salazar tinha uma outra imagem, completamente diferente, mas se fossemos entrevistados, diríamos que era o “Nosso Senhor”, que éramos os seus “solados”, que tinha feito muito bem pela Pátria. Deve ser assim ainda em Cuba. A população pensa uma coisa, vê-se obrigada a dizer outra para sobreviver...

Quando em 1962 meu pai me mandou uma carta de chamada para o Brasil, agradeci aos meus dois Pais: o do Céu e o da Terra. Lamentei pelos que ficavam. Larguei as divisas que ganhara como participante da Mocidade Portuguesa – todos queriam ser ‘comandantes de Castelo”, e as da Marinharia. E embarquei para o Brasil, levando na memória as fotos que eu vira das atrocidades cometidas em Angola quer por portugueses quer por Angolanos, com mulheres grávidas extirpadas, mulheres abatidas com os seios cortados e colocados em suas mãos abertas, inertes no solo. E outras igualmente horríveis, como estacas ao longo da estrada com testículos espetados como aviso e vã glória.

Em 1983, depois de longos anos ausente, e após pesquisa nas páginas amarelas, voltei a Lisboa com um endereço certo: o do amigo Pedro, que ficara cego aos 7 anos de idade, e que de vez em quando o levávamos a passear para distrair as idéias. Foi um encontro como se o tempo não tivesse passado. Soube então que dos nossos 22 amigos, um falecera de ataque cardíaco ainda muito jovem, e os outros, todos, sem exceção, tinham morrido nas guerras.

Creio que para tudo é necessário um tipo muito especial de “sorte”... A sorte de nunca estar no lugar errado, numa hora errada. Mas isso não é sorte. É escutar e sentir a vida a cada momento, tomando atitudes que nos desviem das horas erradas e dos lugares errados.

Exceto para os heróis.

Esses morrem na hora certa, no lugar certo, da forma certa. Já os mártires, não. Esses são fabricados pela mídia.



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