À minha netinha Maya, em
2013.
Oi, Paixão...
Se guardares esta carta num
envelope para abrir somente em 2024, terás então 14 para 15 anos. As datas
realmente não têm muito sentido. Pode viver-se uma vida maravilhosa em cinco
anos e partir contente, e pode viver-se menos bem e a vida durar uma
eternidade, mas uma carta guardada por tanto tempo deve merecer ser boa e
agradável. Talvez possamos lê-la juntos. Tu para a leres pela primeira vez, e
eu para que me lembres o que te escrevi.
Como é meu costume,
escrevo-te contos infantis para te distrair em alguns momentos da vida. São contos
mais ou menos como sonhos em que se acorda rindo, com vontade de chegar a noite
para escutar mais um conto antes de dormir. Mas agora que tens 14 anos e vais
ler a carta no dia de teu aniversário, vou contar-te outra historinha para
lembrar os velhos tempos.
Era uma vez...
Há muitos... Muitos anos
atrás, uma porção de pessoas que se conheceram formando casais. De um desses
casais nasceu um ancestral teu, e de mais outro, outro ancestral. No mesmo
lugar do mundo, um continente imenso que começa na África, se desvia para a
Europa e acaba lá no fim do mundo, no Extremo Oriente. Não conhecemos nenhuma
dessas pessoas porque se conheceram num tempo em que não havia Internet nem
sequer se sabia se um dia se poderia escrever uma carta. Eram gentes muito
antigas. Mas como não amá-las, se foram elas que concorreram ao longo do tempo
para que um casal, um dia, descendente de todos esses ancestrais, se
encontrassem e te “fizessem” nascer?
Entre esses ancestrais havia
gente de África, da Europa, do Médio Oriente, gente que sabia lidar com a neve,
com as areias, com as inundações e as secas. Gente que cultivava a vinha, que
criava gado, que construía, que administrava, que tocava instrumentos. Mais,
muito mais do que minha netinha és filha da humanidade, e mais ainda do que
filha da humanidade és filha da natureza.
Cada um tem a sua vida, ao
longo da qual mudamos muitas vezes de caminho, umas vezes por opção, outra porque
a vida naturalmente “nos empurra” para esses outros caminhos. Mas os teus genes
têm a experiência daqueles seres humanos de África, da Europa, da Ásia, e estás
em condições de viver a tua vida. Não importa nada, absolutamente nada, como é
o nosso corpo. O que importa mesmo é como é o nosso pensar, que sentimentos
temos. Aos quinze anos ou já escolheste ou irás ainda escolher os teus rumos.
Se não o fizeres por ti, a vida te empurrará o tempo todo, ao sabor do imenso
mar dos “outros”. Se quiseres um conselho de um velho avô, escolhe. Será uma
opção tua, independentemente de ouvires ou não conselhos. Só decidindo por ti
mesma te tornará independente. Sabes porque razão? Se tu não decidires sempre
por ti mesma, podes escutar até bons conselhos, mas não sempre. Existem umas
leis, as da probabilidade, que decerto agora já conheces, segundo a qual a
repetição constante no jogo da vida é praticamente impossível. Um desses
conselhos que de boa fé sigas, pode tornar-te a vida muito difícil. E para
saberes o que escolher na vida e seguir na vida, tens que saber, conhecer, aprender
por ti mesma, adquirir experiência. Dizem que é errando que se aprende.
Recomendo-te cuidado. Se aprenderes e prestares atenção à vida, não precisarás
errar onde a maioria das pessoas erra, e quem sabe, talvez teus erros sejam sem
grande importância. Então, estudar é muito, muito importante. Por mais que não
gostes de uma matéria na escola, ou de duas ou três, é nestas que deverás
concentrar a tua atenção. Teus professores te ajudarão se te mantiveres
interessada em estudar. O conhecimento te faz sentir firme, sabendo o que fazer
sem muita hesitação. Não dependerás dos outros que nem sempre estarão
interessados em ti. Ou apenas em ti.
Ah... O amor... Deverás
estar gostando de alguém. É comum aos 15 anos, mas se não te disseram ainda,
deixa que te diga. O amor é um sentimento “esquisito”. É um processo
simultaneamente químico e biológico, agindo em nosso cérebro, produto de
estímulos naturais. É a nossa natureza, em meio a natureza maior, que nos faz
amar na juventude, amar em qualquer idade, mas é na juventude que a falta de
experiência nos faz passar por alguns apertos. Por que te digo isto? Porque as
pessoas têm a péssima mania de se desiludir quando o processo do amor – aquele
tal processo químico - não lhes corre como imaginavam e ficam tristes,
produzindo em seus cérebros exatamente aquela enzima contrária ao do amor
correspondido, que nos dá alegrias. Então, qual é o raciocínio? De certeza que
não irás ficar triste por muito tempo. Isso não é nada bom. Palavra de
especialista, tal como todos os que atingem uma idade avançada. E também te
digo isto porque não me gostaria que sofresses até chegares a uma idade
avançada.
De importante só se te falar
da ambição, porque de resto, tu sabes o que fazer, quando fazer e como fazer. É
que por ambição cometemos os maiores erros de nossas vidas, até mais do que
quaisquer outros, inclusivamente o amor. Se quiseres muito da vida, serás
infeliz na mesma proporção, porque a ambição exagerada é amoral e não tem muita
ética, e se perdem os amigos que se fazem. Não há ninguém tonto. Mas também, se
não tiveres nenhuma ambição, uma roupa, um sanduíche roubado do lixo e uma
ponte são tudo o que poderás ter de graça junto com todo o sofrimento que
poderás imaginar. Se deres o que tens, ficarás sem nada, talvez com o coração
cheio de amor, mas isso não concorre para a tua felicidade. Os dias seguintes
serão de vazio, mas ajuda sempre, comedidamente, a quem precisa e merece.
Drogas são o apagar da
mente, uma borracha que se passa em nossa consciência, o destruir das
realidades, dos amigos, de nós mesmos, e a construção de uma redoma irrespirável
cheia de nada, onde nem a linda natureza que nos cerca tem o mínimo sentido.
Uma morte viva. Cai fora desde o primeiro instante em que te ofereçam alguma.
Nem tenta.
E quando tiveres a minha
idade, estarás bem melhor do que nós, que já chegamos lá...
Beijos nesse teu lindo
coração.
Vôvô Rui, o “ oi paixão”.
© Rui Rodrigues
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