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domingo, 28 de julho de 2013

A neve de verão

A neve de Verão.


Parei de respirar, depois parei de ouvir qualquer coisa, meus pensamentos pararam por completo. Não havia nada e havia tudo à minha volta. Uma luz imensa e forte, invisível, estava lá em algum lugar de meu cérebro enquanto meu corpo e minha alma pareciam prestes a explodir de emoção, de prazer, de glória infinita. Então, de repente, explodi em gozo ao som de uma fanfarra de gaitas de foles, sentindo o perfume de flores do campo que acabava numa cascata de águas límpidas e ouvi dela o arfar do relaxamento do prazer. A paisagem, os sons, a cascata, esvairam-se de repente sem deixar sinal. Era um dia de Verão. A vida era de prazeres sem um amanhã a definir. Despedi-me e levei-a até a porta. Ela estava com pressa.

Quando voltei ao interior da casa para tomar mais uns goles de vinho, e ao abrir a porta de vidro que dava passagem para a área de churrasqueira e para o jardim, vi uma osga colada no vidro. Estava imóvel, parada, a cabeça levantada, os enormes olhos atentos em mim, aguardando os meus movimentos. Suas pontas de dedos em forma de bola e sua figura esguia, elegante e fugidia, davam-lhe um ar de inteligência e esperteza que não se notam numa vaca, por exemplo, embora o tamanho dos cérebros seja um abismo de volume. Inquiri-me sobre minha própria inteligência e o que tenho feito com ela, e foi inevitável deixar de pensar coletivamente: O que fazemos com nossa inteligência, que parece estar tão intimamente ligada ao prazer, à felicidade que o prazer nos dá?



Podemos juntar tudo o que pudermos, desde algum tipo de comida, alguns eletrodomésticos, um iate, um apartamento e oferecer a uma vaca. Podemos garantir que não desejará nenhum. O que uma vaca deseja, e é feliz com isso, é pasto, água, um lugar à sombra para se proteger do sol, uma relação sexual para procriar quando estiver no cio, dias calmos sem muito sol, sem muita chuva, sem muito calor, sem muito frio. A osga é exatamente igual à vaca, que é exatamente igual a todos os animais “irracionais” que conhecemos. Entre eles há dois sintomas constantes de infelicidade: Quando o predador está com fome e não encontra presa, e quando a presa teme os predadores. Afora isso, a felicidade é completa porque não há extremos de necessidades: Fome ou medo.

E é neste ponto que nos tornamos exatamente iguais aos animais e esquecemos toda a nossa inteligência. Momentos antes de iniciar este meu devaneio provocado pela contemplação sobre a atitude esbelta de uma osga, eu tinha passado por um momento de felicidade, com a mente completamente vazia como a de uma vaca, ou de uma menor e mais simples osga. Não sentia medo nem fome, apenas a felicidade do prazer. Minha felicidade era imensa. Ao retornar à contemplação da vida deixei de ser um simples “animal” e passei a ser um animal mais complexo, que pensa, que por vezes age em função do medo ou da fome. E isto faz toda a diferença.

Por medo, por exemplo, de sermos discriminados, aceitamos os ensinamentos de uma religião, e mesmo sem crermos muito nos deuses tal como no-los apresentam, unimo-nos ao grupo de crentes dos arredores de nossas casas, para mostrarmos que somos como eles e que fazemos parte do grupo. Por medo, por exemplo, de perdermos um emprego, aceitamos que se pratique a corrupção em nosso trabalho, e fechamos os olhos rezando para que ninguém descubra, mesmo não tirando qualquer vantagem dessa corrupção, e quando em data de ir aos templos, lá vamos nós, juntar-nos aos demais para fazer nossas orações. Seria hipocrisia se não fosse por medo.

Por fome de comida, de poder, se pode roubar desde uma galinha ou uma fruta de árvores dos vizinhos, que no fundo não faz falta a ninguém, até um carro forte, um banco, uma joalheria, ou o que é bem pior, as verbas públicas, que são destinadas a melhorar os serviços públicos, a prover água, esgotos, saúde  transportes e ensino públicos.  

A ambição advém do medo de ter medo e do medo de ter fome. A ambição é um lazer, uma distração de quem quer ter sempre mais e coleciona moedas, jóias, bens móveis e imóveis, mas não tem medo de que lhe assaltem a casa, de que lhes tirem os empregos, coisa de gente que concorre a cargos públicos, faz parte de partidos políticos, deseja viver isento de perseguições da lei e de suas punições. Este mundo seria muito melhor se tais políticos não tivessem o poder que têm, e se pudessem perder os bens acumulados com o poder e com a corrupção que sua ambição os faz aceitar como coisa “normal”, protegida pela lei.

Em algum momento que não percebi, a osga se afastou de mim. De mim, que jamais tinha a intenção de magoá-la, de lhe prejudicar a vida. Osgas são espertas e não se arriscam por muito tempo à espera de movimentos da vida que não conhece no seu entorno. Fogem antes que possam ser atacadas. Políticos não. Continuam lá em seus postos, protegidos por leis que só eles fizeram e aprovaram e que lhes dá a força das forças armadas com que atacam os cidadãos. Políticos são osgas protegidas pelas leis e pelas forças das leis. Frente a tudo isto, não passo de uma vaca, melhor, um boi de olho macio e perdido, ruminando sua felicidade parada sem sequer ter vontade de escolher o que mais gostaria de ter, porque o pasto parece-me suficiente.

Principalmente num dia de verão, em que não neva, não faz frio, e o calor não é muito. Mas como seria bom que nevasse, que a lareira tivesse achas queimando, o vinho tinto e seco estivesse a 19 graus, e as osgas fossem humanas. Então eu não seria um boi ruminante.


© Rui Rodrigues










    

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