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domingo, 24 de novembro de 2013

Crônicas de Cabo Frio – A crônica de Gilles [1].

Crônicas de Cabo Frio – A crônica de Gilles [1].

Já disse que não tenho nenhum tio. Gilles Gorge D’Auvergne é um amigo que abandonou a França e veio para Cabo Frio, segundo disse, definitivamente. Sempre achei que a história estava um tanto ou quanto deturpada, mas não entrei nunca em detalhe. Chegou, fui esperá-lo no Rio de Janeiro, trouxe-o para Cabo Frio, apresentei-o a umas amigas e nunca mais o vi... Nunca mais me telefonou até ontem, sábado. Disse-me que queria bater um papo e marcamos um lugar onde se pudesse conversar à vontade sem mesas muito próximas umas das outras. Por isso marcamos em minha casa. Meu tio dormiria aqui em casa porque beberia até quase cair. Haviam-se passado já mais de cinco semanas que chegara e pelo silêncio no decorrer desse período, deveria estar próximo a casar mais uma vez. Assuntos do coração seria o grande tema filosófico da noite.


Eram mais ou menos umas seis e meia da tarde, quase noite, quando chegou de táxi, uma mochila nas costas e outra na mão, uma lanterna enorme pendente do pescoço. –- Vai acampar? Perguntei à queima-roupa sem nem sequer lhe dar as boas-noites. Como típico francês, respondeu-me com outra pergunta, pressupondo que eu tivesse entendido sua resposta que não me deu:
- Você tem dois puçás, não tem?
- Tenho! Três...
- Mas somos só dois e vamos ter as mãos muito ocupadas... Vamos para a praia que eu explico pelo caminho. Só me deixa largar umas coisas na tua geladeira e trocar de roupa rapidinho... E enquanto entrava foi contando o seu plano...
- Estou amando. Quero conversar sobre isso, e trouxe umas garrafas de vinho. Vamos à praia pescar crabes (siris) e vamos fazer uma massa com queijo roquefort para acompanhar... Como não sabia se tinha ou não, passei no supermercado e comprei. A praia não fica longe, não é?
- Não... A cerca de cem metros...
- Pronto! Depois arrumo tudo... Vamos?
Gilles tinha se trocado ali mesmo no sofá, já estava de short, havaianas, tinha guardado o queijo na geladeira, uma camisa de gola-rolê e um boné escrito “Búzios”. Devia tê-lo comprado na Rua das Pedras. Imaginei o que deveria ter a mochila, porque apanhou dois copos de pé, e lá fomos para a praia carregando duas mochilas, um saco plástico forte, dois puçás, uma lanterna. Fomos conversando pelo caminho.


- Conheci a Amélia e fiquei apaixonado, cara! – (Amélia é um nome fictício, porque se eu disser aqui o nome verdadeiro dela, algumas pessoas em Cabo Frio não iriam gostar nada em saber o que conversamos).
- É mesmo?... Que bom... (não era "bom" nem "mau"... Amélia... Bem... Amélia eu conhecia. Como lhe contar a verdade? E pensando bem... para quê contar?)
- Ela é mais nova do que eu, uns bons anos, não é verdade? Eu sei que você a conhece porque ela me disse.
- Sim!... Conheço mais ou menos. Amiga de minhas amigas.
-É... Sim... Ela me cativou, mas tenho minhas dúvidas sobre mais um passo em minha vida. Afinal tenho 75 anos e não me vou iludir mais uma vez. Nem vou iludir a moça. Não é certo?
- Não sei, Gilles! – disse-lhe francamente – Essa coisa de consciência depende de cada um. Um conselho meu seria para mim, para minha consciência, não para a sua. Temo que ao dizer algo tanto lhe possa fazer sentir-se bem como mal, agora ou a futuro. Por isso me vou omitir de lhe dar opinião.

Tínhamos chegado à praia. A luz fraca do ultimo poste de iluminação já ficara para trás há cerca de cinqüenta metros. Gilles acendeu a lanterna, colocamos as havaianas dentro de um saco plástico que carreguei dentro de minha mochila. Gilles então tirou de dentro da mochila uma garrafa de vinho branco. Eu preparei o saco de plástico forte, amarrando-o numa das alças da mochila. Colocaríamos os siris dentro dele. E lá fomos cada um com um puçá numa mão, mochila nas costas, um copo de vinho na outra. Quando provei o vinho, subi aos céus e desci ao mar... Era um vinho que já não está disponível no mercado das “Côtes d’Auvergne”. Um “La Légendaire”. 

De certeza absoluta fizera parte da bagagem do Gilles, porque não há vinho desses à venda nos supermercados do Brasil, e muito menos nos de Cabo Frio. Em termos de Supermercados, Cabo Frio merecia melhor, com mais diversidade. Além disso são extremamente caros a pretexto de ser uma zona turística. Guardamos as taças na mochila depois de acabarmos com a primeira dose, Gilles pegou a lanterna e começamos a caçada aos “crabes”. E Gilles foi falando.
- Mulher quando criança é cercada de todo carinho dos pais. Nós, meninos, somos tratados de forma mais dura. Por isso as mulheres esperam sempre um carinho, um presente, uma consideração, um cuidado carinhoso. São muito sensíveis. Nós as ferimos muitas vezes sem sabermos, porque somos mais brutos. Imagine você, meu amigo, se eu tiver um caso mais sério com Amélia e depois não der certo... Eu sentiria muito e ela também. Mas por outro lado, sinto-me irresistivelmente atraído por ela. OLHA!... ALI... ALI... DOIS CRABES! – gritou Gilles, e passamos-lhes imediatamente os puçás. Continuamos conversando.

(Senti que Gilles só queria desabafar, falar, exorcizar os seus fantasmas, ouvir-se a si próprio e sentir o que suas palavras provocavam em sua intuição, se a alterava, ou se abalava sua consciência. Até mesmo se esta as aplaudia, incentivando-o no  processo do amor. Amélia tinha apenas 45 anos, ele 75 anos, nenhum dos dois era criança. Amélia buscava seu ultimo grande amor na vida, Gilles também, mas esse era um processo de tentativas comuns aos insistentes que buscam neste planeta um paraíso particular. A melhor definição que eu tinha dos dois era que eram “muito experientes” nessa busca. Nos últimos dois anos, Amélia tinha feito três tentativas infrutíferas. Gilles era o que se chama de mulherengo, casara três vezes e nunca mais encontrara o “grande amor redentor”). Já estávamos com quase uma dúzia de siris. Uma “quatorzena” seria o necessário. 

-Olha... Entendo que tudo na vida é um recomeçar. Chorar sobre o leite derramado não adianta nada. Eu mesmo vivi numa região da França que inclui um lugar conhecido como Gergóvia.  Ninguém quer falar de Gergóvia, porque foi uma das vergonhas da França. Tínhamos um rei chamado Vercingetórix, que perdeu a batalha final em Gergóvia para César, o romano. Então a Gália inteira caiu sob domínio romano. Mas a França ressurgiu, não foi? É por isso que eu digo que tudo na vida pode ser recomeçado. O meu problema em particular é o tempo. O meu já é pouco. Mais dez, vinte anos?

- Ué! – disse eu enfaticamente – Se vocês se apressarem ainda podem criar uma criança e quando você bater as botas ela estará adulta com 20 anos. A mim não parece uma má idéia. Vocês são saudáveis, fortes. Não ficarão doentes tão cedo. Dá para investir na idéia de juntarem os trapinhos e resolverem a vossa vida.

Demos uma leve parada. Fomos até a areia. Foi então que reparei que ele vinha arrastando a garrafa na água, tampada, evidentemente, para que a temperatura se mantivesse fresca. Ele me disse como fazia, enquanto a desarrolhava e servia mais uma taça para cada um:
- Arrasto a garrafa pela água e de vez em quando a elevo para que a água em sua superfície se evapore e a temperatura baixe.
Provei o vinho. Estava com temperatura bem mais baixa do que quando a abrira. Contamos os siris. Dezoito. Eram suficientes. Eram agora oito horas da noite. Resolvemos parar a caçada aos crabes e voltar para casa.

Da geladeira, tirou um pedaço de queijo roquefort e começamos a preparar a janta. Às oito e meia a garrafa estava vazia. Havia mais duas na geladeira. Quando o “pene roquefort aux crabes” ficou pronto, a conversa ainda estava como no início. Gilles estava com dúvidas se deveria ou não levar adiante a sua penúltima tentativa de não deixar fugir mais um grande amor em sua vida. Amélia, que eu já conhecia bem, ainda poderia tentar muitas vezes em sua vida. Gilles não. Eu sabia e ele sabia tão bem quanto eu.

A noite tinha esfriado e mesmo depois de tomarmos uma ducha quente, a temperatura convidou-nos a irmos para a área da churrasqueira onde jogamos umas lenhas e acendemos o fogo.

Enquanto traçávamos o jantar, divino, Gilles disse:

- Há algo mais, Rui... A mulher francesa tem fama de ser muito sensual, mas é devido a filmes de Hollywood e em parte ao velho Oeste americano, na época da corrida do ouro. Muitas prostitutas francesas correram para lá, tirando as senhoras idosas do sério, porque lhes desvirtuavam os maridos, fazendo na cama as novidades a que não estavam habituados. O que é uma francesa diferente de uma brasileira? Não há diferenças, a não ser as que encontramos de uma pessoa para outra. A espécie humana é como qualquer outro animal: Todos os indivíduos se assemelham. Um extraterrestre que chegasse a este planeta, se sentiria como nós olhando para indivíduos da Ásia. Parecem todos iguais.  Por isso me pergunto: O que busco eu? Uma mulher diferente, ou um caso diferente?


Fez-se um silêncio. Olhamo-nos e eu encolhi os ombros, balancei a cabeça, dando-lhe a impressão que lhe fazia a mesma pergunta. Isso era um problema que ele tinha que resolver. E como bom cavalheiro, não me tinha perguntado pela vida de Amélia, se tinha muitos namorados, ou mesmo se eu já tinha transado com ela. Isso não interessava. E não mesmo... Ele entendeu.

- Sabes de uma coisa? Amanhã de manhã, a primeira coisa que vou fazer será ligar para ela e combinar um encontro... Vou pedi-la em casamento. Gostaria que você e sua namorada estivessem presentes. Querem ser padrinhos ?

Abri um largo sorriso, despejei o resto da terceira garrafa nas taças e ergui um brinde:

- Até que enfim, velho safado... Tomaste a ultima grande decisão de tua vida... Um brinde ao casamento... Seremos padrinhos. Aliás, vou te contar um segredinho. Minha namorada já tinha falado de vocês. Ela acha que seria ótimo para os dois se tentassem trilhar as vossas vidas de mãos dadas. Santé!...

- Santé!!!! – Disse Gilles – E me deu um grande abraço com direito a palmadas nas costas... – Você foi o cupido que me flechou a mim e a Amélia.

E eu tinha certeza disso.

Continuamos conversando sobre vários assuntos, sempre com o nome de Amélia bailando nos lábios de Gilles por mais alguns minutos. Mon oncle (meu tio) francês foi dormir feliz. Liguei para minha namorada e preparei-a para o encontro do dia seguinte pedindo-lhe a reserva que eu sabia que ela tinha. Sua boca seria um túmulo até que Gilles pedisse Amélia em casamento. Mas é a tal coisa... Esta vida tem muitos caminhos que mudam a cada segundo ou se mantêm no rumo por mais ou menos tempo. Nada é definitivo até que aconteça alguma mudança e quando acontece se tem a certeza de não ser eterno... Mentalmente pedi aos céus para não estragarem a tênue felicidade que de vez em quando nos bafeja, mesmo para os que decidem casar depois de se conhecerem um pouco mais de 30 curtos dias. 

Que sejam muito felizes!

© Rui Rodrigues

Fotos de cima para baixo:

1- Os amigos de Gilles, da região D'Auvergne.
2- Gilles em suas pescarias em Auvergne  
3- Vinho de Bordeaux, sensacional - la Légandaire, de Pierre Desprat. 
4-  Pene de siri com queijo roquefort (salpicado de coentro) 


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