O tempo e “levando a vida na flauta”
Há quem se preocupe com cada
passo que dá na vida, com cada resposta a estímulos, meça cada passo que dá
visando o futuro. Por outro lado, há quem não se preocupe tanto, num meio termo
entre a postura anterior e o “levar a vida na flauta”...
Levar a vida na flauta não é
pejorativo, apenas um modo de vida, muito comum na juventude, quando não nos
preocupamos muito com o futuro. Sempre achamos que o mal de hoje se pode
consertar amanhã, muito parecido com o pedir desculpas, ou a absolvição dos
pecados toda vez que vão à missa e se confessam. Quem lucra é o padre que fica
sabendo da vida de todo mundo...
Isto tem muito a ver com o
tempo, como o percebemos e como ele influi em nossas vidas. Para quase a
totalidade da humanidade, o tempo é como um rio cuja água passa e não volta, e
na qual não existe equipamento, um barco a motor, por exemplo, que nos possa
levar nesse rio a uma velocidade maior do que a da água, e nem voltar contra a
corrente. Nossas ações se desenvolvem no mesmo ritmo do rio, passando por onde
ele passa, sem a mínima hipótese de nos aproximarmos das margens, dar uma
pausa, descansar, e voltar ao ritmo da corrente.
No entanto, todos os dias –
ou quase todos - conseguimos nos evadir do tempo. Não é voltar atrás no tempo,
nem viajar para o futuro no tempo. Simplesmente nos evadimos dele, nos
alheamos, e isso acontece quando dormimos. Quando despertamos, parece que o
tempo “passou” por nós, e aquele jogo a que íamos assistir na TV já passou
porque “acordamos” tarde.
Mas, acordados, tomamos a
cada instante a decisão para o segundo seguinte, mesmo que de forma automática,
como autômatos, segundo um plano maior que se submete a outro ainda maior e
finalmente ao maior de todos, que é viver. Explico.
Traçamos o percurso
previamente para sairmos de casa para irmos a uma consulta médica, mas no
caminho teremos que passar pela padaria, comprar pão, porque ao sair do
consultório teremos que ir aos correios apanhar uma encomenda e na volta, por
outro caminho, não passaremos pela padaria. O plano maior é o “viver” cada dia.
Para este, tivemos, como em todos os dias de nossa vida, que estabelecer um
plano, o melhor que pudemos escolher para o nosso viver naquele dia, visando o
futuro. A “automação” é o caminhar até a padaria, ao consultório, aos correios,
cuidados ao atravessar a rua, com ladrões de rua, buracos nas calçadas.
Mas uma vez tomadas as
decisões, efetivadas as ações correspondentes, o tempo passou, já foi, já era,
estão feitas, não há como voltar atrás e desfazê-las mesmo que quiséssemos.
Levar a vida na flauta é não nos preocuparmos com nada disso, viver apenas cada
dia sem nos preocuparmos com o futuro porque tudo se conserta, se repara, nesse
rio do tempo. A única coisa que parece diferente nessa característica temporal
são os rodamoinhos.
Os rodamoinhos podem viajar
mais rápido do que a água (o tempo), virem de águas que já passamos, mas que
jamais poderão vir de águas pelas quais ainda não passamos de volta para as
nossas águas, como se vindos do futuro. Esses rodamoinhos são situações que nos
parecem idênticas de tão semelhantes. Mas nossa memória nem sempre nos responde
como desejaríamos, e quem vive a vida na flauta pode surpreender-se: Passar
duas vezes ou três pelo mesmo tipo de momento problemático ou de momento de
satisfação.
Mas há uma particularidade
fundamental e muito importante no tempo. O tempo não é apenas “o tempo”, aquele
que medimos no relógio. Pouca gente sabe disso, mas o tempo não pode ser
separado do espaço em que vivemos, do universo. Os dois, tempo e espaço são
inseparáveis. E assim como o espaço se encontra mais ou menos comprimido, em
função da gravidade, assim o tempo se encontra igualmente mais ou menos
comprimido. Tudo o que existe pode mudar de aspecto ao longo do tempo (e do
espaço), mas jamais o deixará, nem que seja num pequeno átomo, ou partícula
dele, então inidentificáveis, depois de alterados no nível de átomo ou
partícula de átomo. Vale dizer que uma vez mortos, continuamos no espaço-tempo
por algum tempo de forma identificável (podemos até saber qual o DNA de alguém
falecido), mas na medida em que nossos corpos se decompõem, deixamos de ser
identificáveis. Passamos a fazer parte do pó da história, do pó do espaço
tempo.
E o que levamos da vida?
Nada! Nem roupas, nem dinheiro, nem bens, nem memórias. Nada! Aquilo a que chamamos espírito existe sim, e
vive em nosso corpo, mais exatamente em nosso cerebelo. É a “ânima”, a alma, a
vida, que vive enquanto vive, desde o nosso aparecimento (nascimento) até a
morte, construindo dia a dia o dia seguinte. Cada dia depende do que fizemos no
dia anterior. Para onde a alma vai depois da morte do corpo?
Não sei!... Não sabemos
realmente. Acreditamos apenas no que dizem os livros escritos. Se formos
Vikings, acreditaremos que poderemos ir para o Valhala. Se formos Taoistas, que
vamos para um dos 25 mil céus até que um dia nos possamos transformar num rei
de jade. Se formos judeus, vamos para o Xeol. Muçulmanos? Para o paraíso.
Cristãos? Para o céu. Quem recebe espíritos, por curiosidade, não os tem
recebido nem do Xeol, nem do Paraíso, nem dos 25.000 céus do Tao.
Somos crentes do dia
anterior, das crenças e tradições do passado, dos rodamoinhos do rio do tempo, que guardamos em nossas lembranças
com ou sem fé. Somos todos 99,9 por
cento iguais, mesmo sendo em numero já tão grande como sete bilhões e meio de
seres vivos, mas ainda nos julgamos sensivelmente diferentes pela cor da pele,
pelas preferências sexuais, pela forma do corpo, pelas preferências políticas.
Mas raciocinemos:
Olhemos um grupo de pessoas, todas “diferentes”, a bordo de uma cesta de balão que se prepara para alçar vôo pelos ares... E vamos subindo, olhando para o grupo que ficou em terra... Subindo... Subindo... E a certa altura, não saberemos quem é gordo, magro, negro, branco, índio, judeu, português, Flamengo, brasileiro, presidente, inteligente...
Se Deus existir e não
estiver aqui embaixo, perto de cada um ou dentro de cada um de nós, então para
ele seremos todos iguais. Sem defeito, sem virtude, caminhando no espaço-tempo,
cada dia em função do anterior, construindo um futuro que se transformará em
pó.
Carpe diem, mas não na
flauta!
© Rui Rodrigues
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