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segunda-feira, 18 de novembro de 2013

O tempo e “levando a vida na flauta”

O tempo e “levando a vida na flauta”



Há quem se preocupe com cada passo que dá na vida, com cada resposta a estímulos, meça cada passo que dá visando o futuro. Por outro lado, há quem não se preocupe tanto, num meio termo entre a postura anterior e o “levar a vida na flauta”...

Levar a vida na flauta não é pejorativo, apenas um modo de vida, muito comum na juventude, quando não nos preocupamos muito com o futuro. Sempre achamos que o mal de hoje se pode consertar amanhã, muito parecido com o pedir desculpas, ou a absolvição dos pecados toda vez que vão à missa e se confessam. Quem lucra é o padre que fica sabendo da vida de todo mundo...

Isto tem muito a ver com o tempo, como o percebemos e como ele influi em nossas vidas. Para quase a totalidade da humanidade, o tempo é como um rio cuja água passa e não volta, e na qual não existe equipamento, um barco a motor, por exemplo, que nos possa levar nesse rio a uma velocidade maior do que a da água, e nem voltar contra a corrente. Nossas ações se desenvolvem no mesmo ritmo do rio, passando por onde ele passa, sem a mínima hipótese de nos aproximarmos das margens, dar uma pausa, descansar, e voltar ao ritmo da corrente.

No entanto, todos os dias – ou quase todos - conseguimos nos evadir do tempo. Não é voltar atrás no tempo, nem viajar para o futuro no tempo. Simplesmente nos evadimos dele, nos alheamos, e isso acontece quando dormimos. Quando despertamos, parece que o tempo “passou” por nós, e aquele jogo a que íamos assistir na TV já passou porque “acordamos” tarde.

Mas, acordados, tomamos a cada instante a decisão para o segundo seguinte, mesmo que de forma automática, como autômatos, segundo um plano maior que se submete a outro ainda maior e finalmente ao maior de todos, que é viver. Explico.

Traçamos o percurso previamente para sairmos de casa para irmos a uma consulta médica, mas no caminho teremos que passar pela padaria, comprar pão, porque ao sair do consultório teremos que ir aos correios apanhar uma encomenda e na volta, por outro caminho, não passaremos pela padaria. O plano maior é o “viver” cada dia. Para este, tivemos, como em todos os dias de nossa vida, que estabelecer um plano, o melhor que pudemos escolher para o nosso viver naquele dia, visando o futuro. A “automação” é o caminhar até a padaria, ao consultório, aos correios, cuidados ao atravessar a rua, com ladrões de rua, buracos nas calçadas.

Mas uma vez tomadas as decisões, efetivadas as ações correspondentes, o tempo passou, já foi, já era, estão feitas, não há como voltar atrás e desfazê-las mesmo que quiséssemos. Levar a vida na flauta é não nos preocuparmos com nada disso, viver apenas cada dia sem nos preocuparmos com o futuro porque tudo se conserta, se repara, nesse rio do tempo. A única coisa que parece diferente nessa característica temporal são os rodamoinhos.



Os rodamoinhos podem viajar mais rápido do que a água (o tempo), virem de águas que já passamos, mas que jamais poderão vir de águas pelas quais ainda não passamos de volta para as nossas águas, como se vindos do futuro. Esses rodamoinhos são situações que nos parecem idênticas de tão semelhantes. Mas nossa memória nem sempre nos responde como desejaríamos, e quem vive a vida na flauta pode surpreender-se: Passar duas vezes ou três pelo mesmo tipo de momento problemático ou de momento de satisfação.

Mas há uma particularidade fundamental e muito importante no tempo. O tempo não é apenas “o tempo”, aquele que medimos no relógio. Pouca gente sabe disso, mas o tempo não pode ser separado do espaço em que vivemos, do universo. Os dois, tempo e espaço são inseparáveis. E assim como o espaço se encontra mais ou menos comprimido, em função da gravidade, assim o tempo se encontra igualmente mais ou menos comprimido. Tudo o que existe pode mudar de aspecto ao longo do tempo (e do espaço), mas jamais o deixará, nem que seja num pequeno átomo, ou partícula dele, então inidentificáveis, depois de alterados no nível de átomo ou partícula de átomo. Vale dizer que uma vez mortos, continuamos no espaço-tempo por algum tempo de forma identificável (podemos até saber qual o DNA de alguém falecido), mas na medida em que nossos corpos se decompõem, deixamos de ser identificáveis. Passamos a fazer parte do pó da história, do pó do espaço tempo.

E o que levamos da vida? Nada! Nem roupas, nem dinheiro, nem bens, nem memórias. Nada!  Aquilo a que chamamos espírito existe sim, e vive em nosso corpo, mais exatamente em nosso cerebelo. É a “ânima”, a alma, a vida, que vive enquanto vive, desde o nosso aparecimento (nascimento) até a morte, construindo dia a dia o dia seguinte. Cada dia depende do que fizemos no dia anterior. Para onde a alma vai depois da morte do corpo?

Não sei!... Não sabemos realmente. Acreditamos apenas no que dizem os livros escritos. Se formos Vikings, acreditaremos que poderemos ir para o Valhala. Se formos Taoistas, que vamos para um dos 25 mil céus até que um dia nos possamos transformar num rei de jade. Se formos judeus, vamos para o Xeol. Muçulmanos? Para o paraíso. Cristãos? Para o céu. Quem recebe espíritos, por curiosidade, não os tem recebido nem do Xeol, nem do Paraíso, nem dos 25.000 céus do Tao.

Somos crentes do dia anterior, das crenças e tradições do passado, dos rodamoinhos do rio do tempo, que guardamos em nossas lembranças com ou sem fé.  Somos todos 99,9 por cento iguais, mesmo sendo em numero já tão grande como sete bilhões e meio de seres vivos, mas ainda nos julgamos sensivelmente diferentes pela cor da pele, pelas preferências sexuais, pela forma do corpo, pelas preferências políticas. Mas raciocinemos:


Olhemos um grupo de pessoas, todas “diferentes”, a bordo de uma cesta de balão que se prepara para alçar vôo pelos ares... E vamos subindo, olhando para o grupo que ficou em terra... Subindo... Subindo... E a certa altura, não saberemos quem é gordo, magro, negro, branco, índio, judeu, português, Flamengo, brasileiro, presidente, inteligente...

Se Deus existir e não estiver aqui embaixo, perto de cada um ou dentro de cada um de nós, então para ele seremos todos iguais. Sem defeito, sem virtude, caminhando no espaço-tempo, cada dia em função do anterior, construindo um futuro que se transformará em pó.

Carpe diem, mas não na flauta! 



© Rui Rodrigues

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