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domingo, 3 de agosto de 2014

A fábula do robô das galinhas [1].

A fábula do robô das galinhas [1].



O galinheiro era bem grande. Estava dividido em terreiros, cada terreiro com seu galo de raça, suas galinhas de raça. Um galo para cada 12 galinhas. O dono do aviário resolveu automatizar o negócio. Raça humana é muito complicada, e quanto menos um negócio depender de trabalhadores sindicalizados, mais rentável e menos problemático se torna. Quanto mais os operários reclamam, mais automatizados vão ficando os negócios. O mundo das massas toca o mundo para um lado, mas o mundo vai sempre para o outro. Devagar, mas vai [2].

Aquela vozearia de galinheiro, na verdade um gigantesco presídio, parou de repente. Um som estranho de coisa mecânica, arremedo de humanos, apareceu na entrada, sua silhueta enorme tapando a luz do Sol. O primeiro galo do primeiro terreiro que ficava do lado direito da entrada, virou levemente a cabeça, meio inclinada e assestou o olhar sobre o intruso. Primeiro com um dos olhos, depois com o outro. Encheu o peito, levantou o pescoço, abriu a goela, bateu as asas e cantou alto e bom som.  Imediatamente todos os outros galos cantaram seguindo uma ordem hierárquica que só eles conheciam. O ultimo deles ainda estava cantando quando a agitação das galinhas começou. Todas perguntavam quem era “aquilo”, tão parecido com os guardiões humanos daquele presídio, daquele campo de concentração.
- Se ele for como os humanos, não adianta lhe perguntar – Disse o primeiro galo do primeiro terreiro, Primus, o guardião, para o circulo de galinhas que se formara à sua volta – Eles não entendem nossa língua nem estão interessados em entender.



Parecendo ter escutado e entendido a língua do galinheiro, aquele ser imenso, metálico, brilhante, semovente, abriu uma portinhola no meio da cabeça, sem dentes, e uma voz humana sem emoção disse tão alto que poderia ser ouvida em todo o galinheiro: - Sou um robô. Tenho a função de cuidar de todos vocês, alimentá-los, dar-lhes água, vacinas, e tudo o mais para que sejam saudáveis e fortes. Fui construído por meu deus à sua imagem, segundo sua vontade. Ele também fez vocês... Juntou ovos, aqueceu-os e deles vocês brotaram.
Primus, o galo do primeiro terreiro, olhou diretamente no olho do robô e contestou:- Aqui quem bota ovo são as nossas galinhas, e elas mesmas as chocam. Nós, galos, passamos o dia comendo e transando. É tudo o que qualquer galinha pode desejar. Reclamam normalmente. Parece que não gostam de transar, como se fosse uma obrigação, mas por isso são mais fracas que nós, galos. Se fossem mais fortes não haveria transa. Haveria brigas, a natalidade diminuiria. A postura seria diminuta.

As galinhas começaram a murmurar entre si. Pela primeira vez em suas vidas tinham consciência de sua fragilidade, de sua passividade perante os galos que as montavam sem dó nem piedade, alguns deles provocando-lhes a morte quando as montavam com seus pontiagudos esporões que literalmente as rasgavam dos lados. Galos tinham muita testosterona. Eram grossos, prepotentes, machistas ao extremo. De bom grado fariam greve de sexo. Sexo para quê? Só para botar ovos e gerar outras galinhas dependentes, outros galos prepotentes? Preferiam não ter sexo e serem independentes, do que ter sexo e serem dominadas pelos galos do terreiro que nem podiam escolher. Eram os tratadores que os traziam e substituíam do dia para a noite. Pior de tudo, aquele cantar forte que se ouvia a uma distancia de uns dois quilômetros, cantares repetidos, despertadores constantes a qualquer hora do dia. Primus e outros galos do galinheiro estavam atentos.

O robô observava tudo e vendo o murmúrio das galinhas, resolveu tomar partido da maioria. Aprendera dos humanos que quando a maioria apóia alguém, ou algo, a minoria se cala por não ter representatividade [3], ou então reclama, mas fica por isso mesmo desde que não use a força. Então vociferou:

- Sois muito reclamantes. Vós tendes tudo o que precisais para viver. Porque reclamais tanto da natureza? Não sabeis vós que para que haja evolução, Ordem e Progresso, é necessária a paz no convívio, o prazer na diversão constante, pouco trabalho que nem precisais correr pelas matas para procurar comida? Nem serpentes há por aqui neste galinheiro... Que mais quereis? Eu creio que sei o que quereis... Tomai e usai...




(E caminhando devagar como qualquer robô moderno, foi largando galos garnizés, lindos, multicoloridos, de penas brilhantes, um em cada terreiro. As galinhas imediatamente ficaram alucinadas. Para elas, tamanho não era documento. Preferiam um galo que não gritasse tanto, que fosse mais bonito e mais leve. O sexo seria mais leve, igualmente intenso, e com o sabor de “coisa roubada”, porque era nas distrações do galo machão que o nanico do garnizé as montava. E de repente, a minoria mais forte dos galos temeu seriamente por sua hegemonia no terreiro).

Ao verem os garnizés as galinhas nem deram pio. Primeiro olharam para os lindos garnizés. Como gostariam de ter pintinhos lindos com a genética daqueles futuros pais... Depois trocaram olhares entre si, entre as galinhas, protegendo os seus olhares da vigilância atenta dos galos de raça, agora desconfiados, frágeis, com o moral tão baixo que nem ameaçaram reação. Só quando o primeiro garnizé do primeiro terreiro montou a galinha preferida de Primus, o galo campeão. Mas o garnizé tinha a vantagem de ser pequeno, extremamente ágil, voar mais alto na fuga, o que despertava olhares de admiração entre as galinhas do terreiro. Para elas, o “lindo”, o “bom” da vida, que lhes trazia alegrias adicionais, era ver o mais fraco tripudiar do mais forte. E aplaudiram o robô. A partir desse dia os galinheiros ficaram muito mais alegres, interessantes para as galinhas. Como vantagem extra, sua postura de ovos já não era um sacrifico, botando aqueles ovos enormes galados pelos galos campeões de terreiro. Agora eram diminutos ovos de garnizés.
Nem se lembraram de aproveitar a oportunidade e exigir menos mortandade no galinheiro, porque quando as galinhas perdiam a capacidade de postura eram mortas  para fazerem caldos instantâneos, ou serem embaladas como frangos de granja para consumo em supermercados. Algumas delas, mortas há anos, eram descongeladas e vendidas como frescas.  

Estranharam quando o robô, passados uns dias, foi levado num veículo pela calada da noite e deixou de aparecer por mais de mês. Quando reapareceu, consertado devidamente, estava mudado. Foi logo dizendo ao abrir o portão do galinheiro, sua silhueta enorme se projetando contra a luz do Sol que reinava lá fora:
-- Sou um robô. Tenho a função de cuidar de todos vocês, alimentá-los, dar-lhes água, vacinas, e tudo o mais para que sejam saudáveis e fortes. Fui construído por meu Deus à sua imagem, segundo sua vontade que mudou. Ele se arrependeu de me ter construído daquela forma e me reprogramou depois de um enorme dilúvio de tinta e peças. Também fez vocês e inventou garnizés... Juntou ovos, aqueceu-os e deles vocês brotaram. Meu deus mandou recolher os garnizés embora ame o que é belo. O negócio dele é a venda de ovos. Ovos têm que ser grandes. Aqui galos gays, e galinhas de cloaca pequena, nem pensar. Os galos terão os esporões cortados. Galinha que não ponha cinco ovos por semana, vai direto para o corte para ração... E não se trata de descriminar. São apenas negócios. A propósito... Ele é assumidamente gay. Eu não tenho nem fêmea nem macho.

E começou a recolher os garnizés, sob o olhar atentamente triste das galinhas de todos os terreiros. Das Pedreses e caipiras às Leghorn.

® Rui Rodrigues

Nota GeraL: Se procurar alguma moralidade – ou falta dela – no texto, não perca seu tempo. Será pura imaginação sua (ou vontade de pentelhar por qualquer motivo que passará desapercebido ao autor). O texto reflete apenas a natureza segundo sua observação e interpretação. No entanto, é direito de todos interpretar o mundo e os textos segundo sua vontade e capacidade. A fraqueza deste texto poderá ser atribuída à incapacidade do autor em observar e interpretar. Jamais como texto provocativo.  O autor não tem opinião. Serve apenas à leitura de quem se interessar.





[1] Conto baseado na observação do dia a dia em meu galinheiro onde um galo e seis galinhas convivem entre si em meio a gritos, brigas, gemidos, cantares, rações disponíveis, sombra e água fresca à vontade. Algumas morreram no passado porque minha inexperiência não me despertou para o fato de os esporões poderem matar durante a transa sexual.
[2] Observado em minha experiência neste lindo Éden onde todos (as) nascemos prontos para comer algo ou alguém. De outra forma, morremos e ninguém se dá conta. Quando muito, há uns choros por perto, entre familiares. Alguns familiares, de certa forma também nos comem por mais que se tente dourar a pílula, pintar com lindas cores, Abrir sorrisos, dar presentes, versejar lindas odes à natureza e ao amor. (e para os entendidos  em Freud, não tenho nada a reclamar em particular. Pelo contrário, a vida me tem sido pródiga com uma dosagem gaussiana positiva de bons acontecimentos e negativa de maus acontecimentos. Estes, felizmente têm sido raros.
[3] E chamam a isto de “Democracia”... O governo das maiorias, ainda que incultas e sem educação, sobre as minorias. A curva de Gauss na natureza não foi muito pródiga sob este aspecto, mas graças a isso, a espécie humana é a rainha da natureza sem predadores que possam ser temidos. O que se pode temer são as maiorias incultas humanas, ou as minorias quando governam e têm forças armadas e policiais sob seu comando para garanti-las. E também chamam a isto de “democracia”. 

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