A fábula do robô das galinhas [1].
O galinheiro era bem grande.
Estava dividido em terreiros, cada terreiro com seu galo de raça, suas galinhas
de raça. Um galo para cada 12 galinhas. O dono do aviário resolveu automatizar
o negócio. Raça humana é muito complicada, e quanto menos um negócio depender
de trabalhadores sindicalizados, mais rentável e menos problemático se torna.
Quanto mais os operários reclamam, mais automatizados vão ficando os negócios. O
mundo das massas toca o mundo para um lado, mas o mundo vai sempre para o
outro. Devagar, mas vai [2].
Aquela vozearia de
galinheiro, na verdade um gigantesco presídio, parou de repente. Um som
estranho de coisa mecânica, arremedo de humanos, apareceu na entrada, sua
silhueta enorme tapando a luz do Sol. O primeiro galo do primeiro terreiro que
ficava do lado direito da entrada, virou levemente a cabeça, meio inclinada e
assestou o olhar sobre o intruso. Primeiro com um dos olhos, depois com o
outro. Encheu o peito, levantou o pescoço, abriu a goela, bateu as asas e
cantou alto e bom som. Imediatamente
todos os outros galos cantaram seguindo uma ordem hierárquica que só eles
conheciam. O ultimo deles ainda estava cantando quando a agitação das galinhas
começou. Todas perguntavam quem era “aquilo”, tão parecido com os guardiões
humanos daquele presídio, daquele campo de concentração.
- Se ele for como os
humanos, não adianta lhe perguntar – Disse o primeiro galo do primeiro
terreiro, Primus, o guardião, para o circulo de galinhas que se formara à sua
volta – Eles não entendem nossa língua nem estão interessados em entender.
Parecendo ter escutado e
entendido a língua do galinheiro, aquele ser imenso, metálico, brilhante,
semovente, abriu uma portinhola no meio da cabeça, sem dentes, e uma voz humana
sem emoção disse tão alto que poderia ser ouvida em todo o galinheiro: - Sou um
robô. Tenho a função de cuidar de todos vocês, alimentá-los, dar-lhes água,
vacinas, e tudo o mais para que sejam saudáveis e fortes. Fui construído por
meu deus à sua imagem, segundo sua vontade. Ele também fez vocês... Juntou
ovos, aqueceu-os e deles vocês brotaram.
Primus, o galo do primeiro
terreiro, olhou diretamente no olho do robô e contestou:- Aqui quem bota ovo
são as nossas galinhas, e elas mesmas as chocam. Nós, galos, passamos o dia
comendo e transando. É tudo o que qualquer galinha pode desejar. Reclamam
normalmente. Parece que não gostam de transar, como se fosse uma obrigação, mas
por isso são mais fracas que nós, galos. Se fossem mais fortes não haveria
transa. Haveria brigas, a natalidade diminuiria. A postura seria diminuta.
As galinhas começaram a
murmurar entre si. Pela primeira vez em suas vidas tinham consciência de sua
fragilidade, de sua passividade perante os galos que as montavam sem dó nem
piedade, alguns deles provocando-lhes a morte quando as montavam com seus
pontiagudos esporões que literalmente as rasgavam dos lados. Galos tinham muita
testosterona. Eram grossos, prepotentes, machistas ao extremo. De bom grado
fariam greve de sexo. Sexo para quê? Só para botar ovos e gerar outras galinhas
dependentes, outros galos prepotentes? Preferiam não ter sexo e serem
independentes, do que ter sexo e serem dominadas pelos galos do terreiro que
nem podiam escolher. Eram os tratadores que os traziam e substituíam do dia para
a noite. Pior de tudo, aquele cantar forte que se ouvia a uma distancia de uns
dois quilômetros, cantares repetidos, despertadores constantes a qualquer hora
do dia. Primus e outros galos do galinheiro estavam atentos.
O robô observava tudo e
vendo o murmúrio das galinhas, resolveu tomar partido da maioria. Aprendera dos
humanos que quando a maioria apóia alguém, ou algo, a minoria se cala por não
ter representatividade [3],
ou então reclama, mas fica por isso mesmo desde que não use a força. Então vociferou:
- Sois muito reclamantes.
Vós tendes tudo o que precisais para viver. Porque reclamais tanto da natureza?
Não sabeis vós que para que haja evolução, Ordem e Progresso, é necessária a
paz no convívio, o prazer na diversão constante, pouco trabalho que nem
precisais correr pelas matas para procurar comida? Nem serpentes há por aqui
neste galinheiro... Que mais quereis? Eu creio que sei o que quereis...
Tomai e usai...
(E caminhando devagar como
qualquer robô moderno, foi largando galos garnizés, lindos, multicoloridos, de
penas brilhantes, um em cada terreiro. As galinhas imediatamente ficaram
alucinadas. Para elas, tamanho não era documento. Preferiam um galo que não
gritasse tanto, que fosse mais bonito e mais leve. O sexo seria mais leve,
igualmente intenso, e com o sabor de “coisa roubada”, porque era nas distrações
do galo machão que o nanico do garnizé as montava. E de repente, a minoria mais
forte dos galos temeu seriamente por sua hegemonia no terreiro).
Ao verem os garnizés as
galinhas nem deram pio. Primeiro olharam para os lindos garnizés. Como
gostariam de ter pintinhos lindos com a genética daqueles futuros pais...
Depois trocaram olhares entre si, entre as galinhas, protegendo os seus olhares
da vigilância atenta dos galos de raça, agora desconfiados, frágeis, com o
moral tão baixo que nem ameaçaram reação. Só quando o primeiro garnizé do
primeiro terreiro montou a galinha preferida de Primus, o galo campeão. Mas o
garnizé tinha a vantagem de ser pequeno, extremamente ágil, voar mais alto na
fuga, o que despertava olhares de admiração entre as galinhas do terreiro. Para
elas, o “lindo”, o “bom” da vida, que lhes trazia alegrias adicionais, era ver
o mais fraco tripudiar do mais forte. E aplaudiram o robô. A partir desse dia os
galinheiros ficaram muito mais alegres, interessantes para as galinhas. Como
vantagem extra, sua postura de ovos já não era um sacrifico, botando aqueles
ovos enormes galados pelos galos campeões de terreiro. Agora eram diminutos
ovos de garnizés.
Nem se lembraram de aproveitar
a oportunidade e exigir menos mortandade no galinheiro, porque quando as
galinhas perdiam a capacidade de postura eram mortas para fazerem caldos instantâneos, ou serem
embaladas como frangos de granja para consumo em supermercados. Algumas delas,
mortas há anos, eram descongeladas e vendidas como frescas.
Estranharam quando o robô,
passados uns dias, foi levado num veículo pela calada da noite e deixou de
aparecer por mais de mês. Quando reapareceu, consertado devidamente, estava
mudado. Foi logo dizendo ao abrir o portão do galinheiro, sua silhueta enorme
se projetando contra a luz do Sol que reinava lá fora:
-- Sou um robô. Tenho a
função de cuidar de todos vocês, alimentá-los, dar-lhes água, vacinas, e tudo o
mais para que sejam saudáveis e fortes. Fui construído por meu Deus à sua
imagem, segundo sua vontade que mudou. Ele se arrependeu de me ter construído
daquela forma e me reprogramou depois de um enorme dilúvio de tinta e peças. Também
fez vocês e inventou garnizés... Juntou ovos, aqueceu-os e deles vocês
brotaram. Meu deus mandou recolher os garnizés embora ame o que é belo. O
negócio dele é a venda de ovos. Ovos têm que ser grandes. Aqui galos gays, e
galinhas de cloaca pequena, nem pensar. Os galos terão os esporões cortados. Galinha que não ponha cinco ovos por semana, vai direto para o corte para ração... E não se trata de descriminar. São
apenas negócios. A propósito... Ele é assumidamente gay. Eu não tenho nem fêmea
nem macho.
E começou a recolher os
garnizés, sob o olhar atentamente triste das galinhas de todos os terreiros. Das
Pedreses e caipiras às Leghorn.
® Rui Rodrigues
Nota GeraL: Se procurar
alguma moralidade – ou falta dela – no texto, não perca seu tempo. Será pura
imaginação sua (ou vontade de pentelhar por qualquer motivo que passará
desapercebido ao autor). O texto reflete apenas a natureza segundo sua observação
e interpretação. No entanto, é direito de todos interpretar o mundo e os textos
segundo sua vontade e capacidade. A fraqueza deste texto poderá ser atribuída à
incapacidade do autor em observar e interpretar. Jamais como texto provocativo.
O autor não tem opinião. Serve apenas à
leitura de quem se interessar.
[1] Conto baseado na
observação do dia a dia em meu galinheiro onde um galo e seis galinhas convivem
entre si em meio a gritos, brigas, gemidos, cantares, rações disponíveis,
sombra e água fresca à vontade. Algumas morreram no passado porque minha
inexperiência não me despertou para o fato de os esporões poderem matar durante
a transa sexual.
[2] Observado em minha
experiência neste lindo Éden onde todos (as) nascemos prontos para comer algo
ou alguém. De outra forma, morremos e ninguém se dá conta. Quando muito, há uns
choros por perto, entre familiares. Alguns familiares, de certa forma também
nos comem por mais que se tente dourar a pílula, pintar com lindas cores, Abrir
sorrisos, dar presentes, versejar lindas odes à natureza e ao amor. (e para os
entendidos em Freud, não tenho nada a
reclamar em particular. Pelo contrário, a vida me tem sido pródiga com uma
dosagem gaussiana positiva de bons acontecimentos e negativa de maus acontecimentos.
Estes, felizmente têm sido raros.
[3] E chamam a isto de
“Democracia”... O governo das maiorias, ainda que incultas e sem educação,
sobre as minorias. A curva de Gauss na natureza não foi muito pródiga sob este
aspecto, mas graças a isso, a espécie humana é a rainha da natureza sem predadores
que possam ser temidos. O que se pode temer são as maiorias incultas humanas,
ou as minorias quando governam e têm forças armadas e policiais sob seu comando
para garanti-las. E também chamam a isto de “democracia”.
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