Arquivo do blog

sábado, 4 de abril de 2015

Viajando com tintas e algo estranho que ninguém sabe o que é





A velha tia falecera há pouco. Tinha sido como uma mãe por cerca de 11 anos que passaram rápido para gente madura e mais rápido ainda para idosos como eu, mas que custam a passar para crianças de seis anos. Fora como uma mãe, mas ele tivera oportunidade de conhecer mães, dos outros, muito melhores. Não tinham raivas no coração, muito menos das que não se sabem de onde vêm, assim sem razões, crianças objeto de descarrego e alivio de tensões. Não lhe foi ingrato, apenas a esqueceu. Como quem pinta uma esfera num quadro tornando-a num círculo. Falta-lhe uma dimensão. E sempre que lhe voltava a vontade de pintar o passado, era sempre o elétrico amarelo, um par de professores alguns familiares e amigos que sobressaíam na tela onde o circulo do tempo já fora pintado com casas de telhados vermelhos em adoração ao velho castelo de pedra, um holocausto de gente bem intencionada que se matou uns aos outros a pedradas e facadas porque ainda não havia canhões contra os quais se marchar.

Se fosse poesia daria um berro, mas em prosa pintada, preferia a mistura de cores fortes sob o frio invernal de uma paisagem coberta de neve. Tudo branco lá fora, interior aquecido com uma broa de milho, uma sardinha em cima e um copo de vinho com uma ou duas azeitonas. Era-lhe o bastante para pintar sobre o tal círculo que era na verdade uma esfera com luz em três dimensões mais o tal do tempo, cor e sombras, e muitas imagens a preto e branco, casas e paisagens sempre largadas para nunca mais, em breves vidas vividas entre um salto e outro sobre oceanos que rasgaram o tempo, separando-o em tantas partes quantas vidas parecia ter vivido. A tela é que só tinha duas dimensões mais o tal do tempo. A espessura da tinta não contava como dimensão extra.


Anita, sua pequena cabra e duas amigas, crianças ainda impúberes, mostraram-lhe pela primeira vez como eram exatamente as diferenças entre umas crianças que usavam calções e as que usavam vestidinhos de chita, não tinha ele nem quatro primaveras completas, mas que o fez sentir como se já tivesse quatro outonos, o que lhe fizera grande diferença no viver. Passou a querer crescer mais rápido ainda. E ei-lo às voltas com uma moça que, como era hábito e moda, passou a visitar ás escondidas em seu leito, quando já mais dez verões se haviam passado. Era-lhe tão prazeroso que emagreceu, suas notas no colégio baixaram um pouco, na relação inversa de sua alegria de viver. Passou a querer experimentar todas, a ter dessa infinidade de prazeres que as púberes lhe davam, cada uma tão diferente da outra quantos fossem os tipos de cabelos, cor de olhos, tipos de lábios, de sorrisos, de afagos, de suspiros. E o mundo ficou mais belo.  Por pouco tempo, dois anos de verão mesmo no inverno. Depois foi o oceano, desta vez de água azul, não de terras marrons, montanhas e verdes pastos a bordo de um combóio fumegante matraqueando junções de trilhos afastadas pelo frio do inverno como no passado fora. Daquela outra vez foi de silencioso navio branco cheio de janelas que só viu na partida e na chegada do outro lado do oceano, sem fados. Passou a sambar.

Assim como quem planta jovens mudas em pródiga terra, assim plantou o que de melhor tinha de si mesmo, e embora tenha colhido alguns cardos, nunca teve que colher espinhos porque nunca lhe cresceram nem em primaveras, nem verões nem desde o outono do ano passado até este e ainda espera por bastantes outonos pela frente. Ainda há o que se aproveite para pintar, embora não acredite que terá a quem o mostrar quando novamente se fizer ao mar sem ser azul, nem a bordo de comboios nem de navios nem em aviões em que tanto voou, que ainda se lembra até hoje do que são nuvens vistas pelo de cima, reflexos ondulados de sol em oceanos brilhantes, roncos de motores doentes que quase faleceram. Se lhe perguntassem onde vivia e de que mais havia gostado, se elevaria aos céus, sairia do planeta, e apontando seu dedo para baixo diria sorridente: Está tudo ali.. E na direção de seu dedo haveria uma tela ainda para pintar. E não veria nuvens. Veria uma pintura com um círculo que era uma esfera, um elétrico amarelo cheio de gente dentro, e paisagens de pradarias imensas, planas, com ovelhas, vacas, cavalos e um chimarrão quente antes do churrasco do almoço num dia de noivado, três amadas crianças que passam por sua vida das quais uma ainda cresce. 


Não se pergunta porque os planetas são redondos e giram. Questiona-se porque tem que mudar tanto e tão rápido o que neles se abriga e é à vida ao que se refere, principalmente aquela dos primeiros anos quando se começa a aprender onde se vive sem se saber que planetas são redondos, ou mesmo se sabendo que o são, sem saber que mudam tanto e tão depressa. Pessoas são assim como ele, e quando o descobrem, começam a pintar quadros em duas dimensões embora se lembrem tão bem do que plantaram e do que colheram, que até lhes poderiam tocar. O problema são os encolher de ombros dos que não se importam e pensam que plantaram belas alfaces colhendo urtigas que tragam como se fossem morangos doces e maduros entre dormires agitados, preocupações que enrugam e secam, lágrimas que têm que ser escondidas para que não solapem a muralha com que construíram suas frágeis defesas. Há quem nem possa pintar uma tela.

Assim como comboios navios e aviões o afastaram de continentes, e assim como dos plantares uns frutificaram e outros se confundiram com a terra sem florescer, assim também ele pinta seus quadros de vez em quando sem esquecer uma cor, uma pincelada, quaisquer que sejam porque de vinhos entende, até dos mais carrascões. Diz que para viajar no tempo não precisa de maquina alguma nem de painéis de comando. Tempo é o que precisa e vontade para abrir os portais de tempo que o levam até 70 anos atrás. Nada há além disso para trás no tempo, porque algo impede que se veja. Dedicou-se então a descobrir que coisa é essa, o tempo, tão estranha, que ainda ninguém haja descoberto que tipo de pneus, motores ou naves se deveriam usar, porque nem se sabe o que o tempo é. Mas ele já sabe. O garoto já sabe. Se estiver certo, abrirá uma garrafa de bom vinho que acompanhará uma broa de milho, uma sardinha por cima com um par de azeitonas pretas, as maduras. As outras são verdes. Se não estiver certo dirão que é louco.  E como se costuma preocupar com tudo de forma suave e tranqüila, já sabe que sem se tentar, ninguém tem a oportunidade de chamar os outros de loucos. E segundo ele, há que dar essa oportunidade aos que não tentam, ou porque não quiseram arriscar ou porque não puderam por falta de condições. Eles também merecem ser felizes mesmo sem motivo real.

O quadro, esse não tem data para acabar.


® Rui Rodrigues 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Grato por seus comentários.