A velha tia falecera há
pouco. Tinha sido como uma mãe por cerca de 11 anos que passaram rápido para
gente madura e mais rápido ainda para idosos como eu, mas que custam a passar
para crianças de seis anos. Fora como uma mãe, mas ele tivera oportunidade de
conhecer mães, dos outros, muito melhores. Não tinham raivas no coração, muito
menos das que não se sabem de onde vêm, assim sem razões, crianças objeto de
descarrego e alivio de tensões. Não lhe foi ingrato, apenas a esqueceu. Como
quem pinta uma esfera num quadro tornando-a num círculo. Falta-lhe uma
dimensão. E sempre que lhe voltava a vontade de pintar o passado, era sempre o
elétrico amarelo, um par de professores alguns familiares e amigos que
sobressaíam na tela onde o circulo do tempo já fora pintado com casas de
telhados vermelhos em adoração ao velho castelo de pedra, um holocausto de
gente bem intencionada que se matou uns aos outros a pedradas e facadas porque
ainda não havia canhões contra os quais se marchar.
Se fosse poesia daria um
berro, mas em prosa pintada, preferia a mistura de cores fortes sob o frio
invernal de uma paisagem coberta de neve. Tudo branco lá fora, interior
aquecido com uma broa de milho, uma sardinha em cima e um copo de vinho com uma
ou duas azeitonas. Era-lhe o bastante para pintar sobre o tal círculo que era
na verdade uma esfera com luz em três dimensões mais o tal do tempo, cor e
sombras, e muitas imagens a preto e branco, casas e paisagens sempre largadas
para nunca mais, em breves vidas vividas entre um salto e outro sobre oceanos
que rasgaram o tempo, separando-o em tantas partes quantas vidas parecia ter
vivido. A tela é que só tinha duas dimensões mais o tal do tempo. A espessura
da tinta não contava como dimensão extra.
Anita, sua pequena cabra e
duas amigas, crianças ainda impúberes, mostraram-lhe pela primeira vez como
eram exatamente as diferenças entre umas crianças que usavam calções e as que
usavam vestidinhos de chita, não tinha ele nem quatro primaveras completas, mas
que o fez sentir como se já tivesse quatro outonos, o que lhe fizera grande
diferença no viver. Passou a querer crescer mais rápido ainda. E ei-lo às
voltas com uma moça que, como era hábito e moda, passou a visitar ás escondidas
em seu leito, quando já mais dez verões se haviam passado. Era-lhe tão
prazeroso que emagreceu, suas notas no colégio baixaram um pouco, na relação
inversa de sua alegria de viver. Passou a querer experimentar todas, a ter
dessa infinidade de prazeres que as púberes lhe davam, cada uma tão diferente
da outra quantos fossem os tipos de cabelos, cor de olhos, tipos de lábios, de
sorrisos, de afagos, de suspiros. E o mundo ficou mais belo. Por pouco tempo, dois anos de verão mesmo no
inverno. Depois foi o oceano, desta vez de água azul, não de terras marrons,
montanhas e verdes pastos a bordo de um combóio fumegante matraqueando junções
de trilhos afastadas pelo frio do inverno como no passado fora. Daquela outra
vez foi de silencioso navio branco cheio de janelas que só viu na partida e na
chegada do outro lado do oceano, sem fados. Passou a sambar.
Assim como quem planta
jovens mudas em pródiga terra, assim plantou o que de melhor tinha de si mesmo,
e embora tenha colhido alguns cardos, nunca teve que colher espinhos porque
nunca lhe cresceram nem em primaveras, nem verões nem desde o outono do ano
passado até este e ainda espera por bastantes outonos pela frente. Ainda há o
que se aproveite para pintar, embora não acredite que terá a quem o mostrar quando
novamente se fizer ao mar sem ser azul, nem a bordo de comboios nem de navios
nem em aviões em que tanto voou, que ainda se lembra até hoje do que são nuvens
vistas pelo de cima, reflexos ondulados de sol em oceanos brilhantes, roncos de
motores doentes que quase faleceram. Se lhe perguntassem onde vivia e de que
mais havia gostado, se elevaria aos céus, sairia do planeta, e apontando seu
dedo para baixo diria sorridente: Está tudo ali.. E na direção de seu dedo
haveria uma tela ainda para pintar. E não veria nuvens. Veria uma pintura com
um círculo que era uma esfera, um elétrico amarelo cheio de gente dentro, e
paisagens de pradarias imensas, planas, com ovelhas, vacas, cavalos e um
chimarrão quente antes do churrasco do almoço num dia de noivado, três amadas
crianças que passam por sua vida das quais uma ainda cresce.
Não se pergunta porque os
planetas são redondos e giram. Questiona-se porque tem que mudar tanto e tão
rápido o que neles se abriga e é à vida ao que se refere, principalmente aquela
dos primeiros anos quando se começa a aprender onde se vive sem se saber que
planetas são redondos, ou mesmo se sabendo que o são, sem saber que mudam tanto
e tão depressa. Pessoas são assim como ele, e quando o descobrem, começam a
pintar quadros em duas dimensões embora se lembrem tão bem do que plantaram e
do que colheram, que até lhes poderiam tocar. O problema são os encolher de
ombros dos que não se importam e pensam que plantaram belas alfaces colhendo
urtigas que tragam como se fossem morangos doces e maduros entre dormires
agitados, preocupações que enrugam e secam, lágrimas que têm que ser escondidas
para que não solapem a muralha com que construíram suas frágeis defesas. Há
quem nem possa pintar uma tela.
Assim como comboios navios e
aviões o afastaram de continentes, e assim como dos plantares uns frutificaram
e outros se confundiram com a terra sem florescer, assim também ele pinta seus
quadros de vez em quando sem esquecer uma cor, uma pincelada, quaisquer que
sejam porque de vinhos entende, até dos mais carrascões. Diz que para viajar no
tempo não precisa de maquina alguma nem de painéis de comando. Tempo é o que
precisa e vontade para abrir os portais de tempo que o levam até 70 anos atrás.
Nada há além disso para trás no tempo, porque algo impede que se veja. Dedicou-se
então a descobrir que coisa é essa, o tempo, tão estranha, que ainda ninguém
haja descoberto que tipo de pneus, motores ou naves se deveriam usar, porque
nem se sabe o que o tempo é. Mas ele já sabe. O garoto já sabe. Se estiver
certo, abrirá uma garrafa de bom vinho que acompanhará uma broa de milho, uma
sardinha por cima com um par de azeitonas pretas, as maduras. As outras são
verdes. Se não estiver certo dirão que é louco.
E como se costuma preocupar com tudo de forma suave e tranqüila, já sabe
que sem se tentar, ninguém tem a oportunidade de chamar os outros de loucos. E
segundo ele, há que dar essa oportunidade aos que não tentam, ou porque não
quiseram arriscar ou porque não puderam por falta de condições. Eles também
merecem ser felizes mesmo sem motivo real.
O quadro, esse não tem data
para acabar.
® Rui Rodrigues