Talvez andasse pelos quatro ou sete anos quando percebi sua existência. Eu ardia em febre. Se foi aos 4 anos, a febre vinha de uma pneumonia dupla. Se foi aos sete anos, foi pela caxumba. Mas foi nesse instante que a senti. Andava triste, preocupada com meus pensamentos. Disse-me que eu deveria ser forte, muito forte, que me poderia curar a mim mesmo. Bastava levar uma vida de forma atenta,cuidadosa, mas sem cair em processos de TOC ou ser hipocondríaco. Se eu sofresse disso, me obrigaria a constantes e diárias consultas a ela, desde o que comer e beber, até qualquer relação em todos os meus atos, para saber o que posso ou não fazer. Eu teria que ser independente dela. Mas ela me diria o que eu fizesse errado para que não repetisse esses erros. Percebi que eu e ela éramos um só. Tínhamos que amar-nos para toda a vida até que a morte nos separasse. Ela cresceu junto comigo. Temos a mesma idade a nível de microssegundos. Cuidaríamos um do outro, e a melhor forma seria a de realizarmos entrevistas periódicas para avaliação. Fizemos muitas durante nossa existência, o que me fez muito mais feliz do que alguma vez tinha imaginado. Agora precisamos de uma outra. Uma que nos permita ir até… Até…
2- Até que a morte nos separe.
Lá estava ela de pernas abertas, a vagina exposta na beirada da cadeira, um olhar e sorrisos mistos - e misticos - de Esfinge egípcia com Mona Lisa, sentimento constante que ela me devora, que eu nunca a decifrei ou decifrarei como se nos tivéssemos amado muito no passado e no presente nos respeitássemos: Ela é a minha própria vida. Nascemos e morreremos juntos. Nem um dia a mais. Temos que conviver juntos. Perguntei-lhe se ela era a minha alma ou o meu espírito. Disse-me que era apenas a minha vida. Assim simplesmente, sem mais nada nem mistério, e me deixou tranquilo. Ela é a vida que levei desde que nasci. Eu não seria nada sem ela, nem ela existiria sem mim. Somos independentes. Uma espécie de secretária bem mandada, que tem arquivos e memórias sempre atuais, mas que nunca interfere em nossas decisões. Quando muito me alerta, chama-me a atenção, mas jamais decide alguma coisa. Quando me dirigi a ela para iniciar mais uma entrevista cruzou as pernas, sorriu e disse-me:
3- Como queres que te diga?...Com sinceridade, condescendência, ou em tom de crítica?
- Com sinceridade… De preferência que seja aquela sinceridade Freudiana, sem muita conversa. Como estou indo nos meus 70, quase 71?
- Vais bem… Nada garantido, nunca, mas vais bem. O passado não te pesa e dormes tranquilo porque o futuro não te preocupa. Poderias ser um idiota em não te preocupares com o futuro, mas sempre estiveste preparado para enfrentar dificuldades. Nasceste e conviveste com elas desde garoto e vives sem sustos. Quanto a respostas freudianas, sei que admiras muito o Freud, mas não tens diploma. O que te salva é que sempre pensas em todas as hipóteses antes de dares um passo. Quem te vê nem percebe e chega a pensar que és mais um desses que "se julga".
- Esquece o Freud… Não creio que seja assim tão fácil, apenas por estar preparado para as dificuldades. Creio que estou preparado, sim, mas apenas para aceitá-las e com disposição para enfrentá-las… Freud estudei a fundo. Freud desvendou os íntimos da humanidade, que agora conheço também.
- Conheces... Assim como “Ave-César, que os que vão morrer te saúdam”? (E deu-me um lindo sorriso)
- Sim… Mais ou menos isso… Como um gladiador que sabe o que o espera entre gritos de uma Babel anônima, indiferente e absurda… Mas também pode ser como aquele grego que foi obrigado a tomar cicuta. Todos eles para satisfazerem a demanda do poder.
- Sim. Mas no nosso caso, teremos que atender algo muito maior, com o maior poder do Universo… As leis, aquelas imutáveis, que valem para todos e tudo…
- Sei. Creio que nunca ninguém se atreveu a formular a lei que mais assusta quem vive neste mundo e que o rege…
- E qual seria? (Perguntou-me ela, na esperança de ouvir algo brilhante, que ficasse na história da humanidade)
- Que no Universo, incluindo-o, tudo nasce, se desenvolve e morre… Ele mesmo morrerá, esse imenso universo. Esse não... Este...
- Creio que nunca ninguém disse isso, generalizando tanto, e coloca uma dúvida sobre o que significa a vida e a morte. Se tudo o que “nasce” vive, como o Universo também nasceu, seria um “ser vivo” e estaria também sujeito à morte… Mas não me parece que seja já o tempo de falar sobre a morte. O que achas? ( E me sorriu mais uma vez com aquele olhar de malandrinha)
- Acho que "fama" pode ser muito intensa, o trabalho profícuo, o conhecimento algo transcendental de infinito valor, mas que... Não valem nada ao final de tudo quando este tudo acabar... Ninguém se lembrará, de nada vale o que passou, nem todo o esforço... Então a minha pergunta é: PARA QUÊ?
E minha vida não soube responder nem, com toda a razão, admitiu que alguém, quer fosse profeta, mentiroso, filósofo, politico ou também charlatão, pudesse responder de forma cientifica e cabal de forma insofismável.
4- Uma nova entrevista a marcar?
Perguntei-lhe finalmente, porque razão a via como uma mulher de perna aberta, provocativa, escrachada... Ela me respondeu que a vida deve ser agradável e interessante, e não havia coisa nesta vida mais agradável e interessante que uma mulher muito gostosa, me provocando para viver a seu lado para "toda a vida", até que a morte nos separe...
® Rui Rodrigues