Todas as
redomas do mundo são permeáveis. Sempre permitem que passe alguma coisa através
de sua superfície, em qualquer dos dois sentidos: De dentro para fora e
vice-versa. Passar passa, o problema é se é aceite, aplaudido, rejeitado,
execrado, bem ou mal interpretado. Tentam construir muros nas fronteiras das
nações, mas tal como as redomas, não vedam completamente e podem ser mal ou bem
interpretados. O mundo é simétrico, não de simetria perfeita, mas tem sempre os
dois aspectos: “Para mim é ruim”, ou “para mim é bom”, e, como nada é perfeito
realmente, erros de julgamento ou avaliação fazem com que o que parecia bom se
revele ruim, ou o contrário. Há redomas duras, flácidas, complacentes, e de
todos os tipos imaginários. Todos nós temos uma pensando que ela “nos protege”
do mundo exterior. De vez em quando lhe abrimos uma “janela” para deixar o
mundo entrar. Tenho vivido de janelas tão abertas, que minha redoma se
transformou numa tênue e transparente membrana. E há
redomas que não deixam passar a luz azul ou vermelha ou quaisquer outras. Não é
difícil aceitar que quem comanda as redomas só raramente somos nós mesmos.
Sempre
gostei de praias, largos horizontes, transparência atmosférica, revigorantes cheiros
marinhos á base de dimetil-sulfeto (DMS) liberado pelas algas marinhas [1].
Gaivotas no céu nos dizem sempre que também queremos e podemos voar, para
vermos o que elas vêem. Sobretudo nos dão a sensação de vida, de que não
estamos sós. Muitas vezes pensei que nossa imperfeição como “ser evoluído”
beirava o absurdo da quase completa imperfeição. Em meus devaneios deveríamos
ser funcionalmente aptos para voarmos e para nadarmos: Podermos sair de uma
praia voando, e quando cansados amerissarmos no oceano e continuar nadando até
o outro lado, desembarcar em outra praia, em outro mundo. Tivesse o mundo sido
assim desde o início, e tão fácil, e nosso pequeno planeta já estaria entupido
de seres acotovelados disputando até o espaço onde pudesse pelo menos se deitar
para descansar. As dificuldades nos mantêm “viáveis”, dentro de limites
aceitáveis pelas condições do ambiente em que vivemos. Para este ambiente, que
não tem olhos, mas tem “algo” invisível que o controla a si mesmo, não importa
quem é o inquilino nem o que faz, porque sempre se renova e adapta. Foi assim
que os dinossauros se foram, porque não estavam adaptados para mudanças
drásticas. Pelo contrário, seres que haviam evoluído em outra direção, peludos,
mamíferos, pequenos, rápidos, vivendo em sua maioria em grutas ou em ninhos
subterrâneos, conseguiram sobreviver ao holocausto de uma imensa pira de fogo
que se formou neste planeta quando um enorme meteoro e abateu no que é hoje o
atual mar do Caribe, no golfo do México. Não há redomas que protejam da
natureza. A natureza que nos parece aliada, por vezes parece trair-nos. Não se
alia nem trai. A natureza simplesmente é, nós complicadamente somos, embora
façamos parte dela. Para a natureza, somos assim como células de nossa pele que
mais dia menos dia morrem, se transformam numa farinha leve que os ácaros [2]
apreciam, e que não faz a mínima diferença se um dia estiveram vivas.
Quando
saí hoje para a praia, o dia estava nublado. Saio cedo, quando saio, ou ao
entardecer para não apanhar sol. Sol tenho no jardim de minha casa onde posso
gozar de suas propriedades durante uns quinze a vinte minutos por dia. Demais,
pode dar câncer, de menos nos obriga a comer mais queijo para termos a vitamina
D de que necessitamos. Sol produz vitamina D em nossos corpos e o queijo também
a tem. Não fui á praia apanhar queijo nem Sol. Fui exercitar os músculos, olhar
os horizontes, ver gaivotas, e perceber que alguém anda exterminando “marias-farinha”
[3]
e gaivotas. Cada vez vejo menos. Foi quando vi o casal e o cachorro bege ao
longe, quase nas pedras, ao final do Peró. Vinham caminhando em minha direção,
cada um segurando uma vara grossa com que se apoiavam na areia. O homem
caminhava com algum tipo de dificuldade. Primeiro foi o cachorro que chegou.
Parecia um “cão d’água” [4].
Chegou-se a mim, e tentou rodear-me passando para a parte de trás.
Imediatamente me voltei e ele ganiu (tinha sido descoberto) e se afastou. Logo
chegou o casal e então veio a surpresa. Eram conhecidos. Ele é meu patrício,
que tinha construído uma casa a uns vinte metros da praia. Uma casa enorme e
linda. Tinha sido dono de restaurante na zona norte do Rio. A ultima vez que o
vira, há cerca de dois anos, estava em seu carro a caminho de Cabo Frio e me
dera uma carona até o ponto de ônibus na portaria do Loteamento. Sempre fora
muito calado, e não conversamos muito, até porque em três minutos já nos
estávamos despedindo. Tinha-o visto também na reunião da Associação de
Moradores quando eu era o vice-presidente, o que não quer dizer muita coisa.
Aprendi que os caminhos mais fáceis parecem ser sempre os melhores, e que quase
nunca dão certo. Parei de dar idéias, de ir ás reuniões, afastei-me por
completo embora esteja sempre á disposição. Meu amigo tinha sofrido um AVC. Por
sorte caminhava, falava, embora ainda menos. Um casal francês lhes dera o
cachorro, que enquanto conversávamos já entrara na água umas três vezes, e
escavara freneticamente as areias á procura de algo que farejava dentro delas.
O abanar da cauda é simpático, mas nunca entendi essa escolha traseira canina para
transmitir sentimentos. Só soubera do falecimento da Carminha cerca de três
meses após o seu falecimento. Ela cozinhava muito bem. Mas se me perguntarem
qual a redoma que nos faz manter-nos tão isolados de vizinhos, amigos,
familiares, direi que não sei. Talvez seja algo tão complexo e sutil que leva
muita gente a ter amigos virtuais com os quais se comunica amiúde, por vezes
segundo a segundo dia e noite, e não permite cumprimentar os vizinhos, dar bom
dia, boa tarde, boa noite a não ser no elevador, e mesmo assim, por vezes com
apenas um abanar de cabeça pretensamente educado, parecendo “nobre”.
Tivesse
sido este encontro há dez anos atrás e se marcaria um jantar, um churrasco,
convidar-se-iam amigos do lugar. Mas os tempos mudaram muito. Há uma fábrica
“invisível” que produz e faz a manutenção de redomas. O Estado tem muita culpa
disso na verdade. Embora tudo se possa privatizar, e a tudo dar liberdade, há
coisas que têm que ser evitadas, controladas, e se infringidas, punir os
responsáveis. Não se pode ser “compreensivo” com todos de forma igual, o
exemplo vem de cima, e população desprotegida desconfia até de amigos. Quando
cheguei ás pedras havia um casal que chegara de bicicleta, agarrados aos
beijos. Não sei se me viram. Têm ainda muita areia para caminhar na vida, e
bons momentos devem ser aproveitados. Servem para lembranças quando a redoma
que separa jovens de idosos for criada. A minha está em plena formação. Promete
ser igual ás outras. Transparente, mas extremamente forte, exceto por uma
pequena, mas agradável janela chamada família á qual se juntam alguns raros e
remanescentes amigos. Há sempre amigos de papo, dos que sabem perfeitamente que
abusaram da amizade ou não lhe deram importância e teimam em dizer que são
amigos para terem uma redoma só de amigos, e os olham como que esperando que
brilhem como pirilampos para mostrar aos outros amigos. É um código, uma
mensagem a outras pessoas conhecidas dizendo-lhes: Vejam... Sou legal e tenho
amigos. Sejam meus amigos “também”...
Certo
mesmo estava o “el diablo”, meu amigo Romero Monteiro, quando me disse da primeira vez na Colombia:
Pareces-te com meu irmão Rui e até tens o mesmo nome. Acho que vamos ser
amigos... E quando me disse da segunda já no Chile: - Falas muito em “teus amigos”... Cai
na real, Rui... Não temos amigos. Há interesses em comum...No dia em que
precisares, não vais reaver nem o que já lhes deste. Festas servem para manter
a aproximação enquanto convir...Mas
sempre sobram amigos... Grande abraço, amigo Romero. Por aqui, logo acima das dunas, sempre há "amigos" ávidos que interrompem o fornecimento de água. Alguns têm criados que instalam e abrem e fecham registros quando lhes convém.
Nunca fomos mesmo de muitas festas, quer os Romero, quer os Rodrigues, mas de curtos, diretos e amigos papos que valem uma vida. Como daquela vez em que eu e minha família nos montamos numa Toyota, monitorados por radio da segurança do projeto, e nos abalamos de noite para a Mina para não faltarmos ao aniversário de teu filho. Foram 450 quilômetros de deserto, na verdade ainda mais protegidos pelo cacique índio e sua tribo que tinha um restaurante á beira da estrada chamado Casablanca em homenagem ao primeiro filme que ele vira na vida. Depois comprou um Betamax...
Nunca fomos mesmo de muitas festas, quer os Romero, quer os Rodrigues, mas de curtos, diretos e amigos papos que valem uma vida. Como daquela vez em que eu e minha família nos montamos numa Toyota, monitorados por radio da segurança do projeto, e nos abalamos de noite para a Mina para não faltarmos ao aniversário de teu filho. Foram 450 quilômetros de deserto, na verdade ainda mais protegidos pelo cacique índio e sua tribo que tinha um restaurante á beira da estrada chamado Casablanca em homenagem ao primeiro filme que ele vira na vida. Depois comprou um Betamax...
Há
sempre esperança de um mundo melhor. Sim... Podemos! Nas praias há menos
redomas, e nota-se até pelas roupas que se usam, mas há conchas. Precisamos
também ter cuidados com as conchas. Há quem se feche nelas.
®
Rui Rodrigues.
[1] Pesquisadores do
Instituto de Ciência Weizmann, em Rehovot, Israel, descobriram como essas moléculas de DMS são
produzidas.
[2] Aracnídeo invisível a olho
nu, com dispositivo para perfuração, e que vive em nossa pele, lençóis,
carpetes e que causam alergia. Há mais de 300 espécies.
[3] Pequenos caranguejos
esbranquiçados que fazem toca na areia, extremamente rápidos, mas que não têm
quase carne nenhuma. São os urubus da praia, comendo carne em decomposição.
[4] Raça portuguesa
caracterizada por ser de médio porte, pelos enrolados e meio longos, franja
sobre os olhos, agitados, inteligentes, olhar muito esperto, e grandes amigos
muito alegres.
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