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sábado, 3 de dezembro de 2011

Um homem na Vitrine



O ano tinha sido bom para Amália. Trabalhara todos os dias sem uma falta sequer, nem mesmo por TPM. Não tirara férias, pouco saíra para se divertir, absorta pelo trabalho. Quase todos os dias passava por uma casa que vendia artigos sexuais, porque ficava em seu caminho de ida e volta para o trabalho. Preferia andar a pé para movimentar os músculos, beneficiar a sua saúde corporal. Mas naquele dia algo lhe chamou a atenção: Havia um homem na vitrine. Ou era um homem perfeito, real, ou então a mais magnífica das imitações que já havia visto. Não se detivera a olhar da primeira vez, mas a partir desse dia, sempre perdia alguns segundos para admirar a obra. Num mundo educado, com instrução obrigatória e paga pelo Estado, não havia cidadão ignorante. Isso permitira que o nu pudesse ser exposto em praças públicas, em vitrines. O Homem estava completamente nu, sem qualquer pêlo pelo corpo, a não ser o dos cabelos. Tinha uma aparência de quarenta e cinco anos, um metro e setenta e cinco de altura. Um pênis de 18 cm.

Aos quarenta e sete anos ainda não tivera filhos, mas não tinha pressa. Mulheres podiam procriar até os sessenta anos, num mundo em que a expectativa de vida rondava em média os cento e dez anos. Sexo? Para isso, Amália tinha os mais modernos recursos da tecnologia moderna: prepúcios pequenos e grossos, pequenos e finos, grossos e grandes, grandes e finos, que podia introduzir em qualquer lugar obtendo o prazer de que necessitava. Nos finais de semana, usava os serviços sexuais do Alfredo. Alfredo é um sexineco, ou seja, como o próprio nome diz, um boneco usado exclusivamente para sexo. Não apenas para sexo, mas também para desfilar pelas ruas, mostrando a todas as outras mulheres como seu boneco sexual era avantajado, bonito, feliz. A indústria e a tecnologia haviam proporcionado ao reino feminino réplicas quase perfeitas de homens, com uma vantagem: Não reclamavam, não discutiam. Apenas serviam.

Lá atrás, séculos já passados, as mulheres em todo o mundo se haviam deparado com um grande problema: haviam ascendido ao poder, obtido a igualdade perante os homens, eram independentes. O que fazer com os homens, se toda a tecnologia sexual estava ao seu dispor? A própria pílula, que engordava, causava varizes e dependência diária, havia sido abolida. As mulheres já não precisavam dela. Nem da pílula do dia seguinte. Nem de pomadas e géis para impedir a fecundação ou preservar contra doenças. Noventa e cinco por cento do mundo feminino usava instrumentos sexuais para o prazer, sexinecos. Homens faziam o mesmo. Eram raros os contatos sexuais entre homem e mulher, reservados para procriação. Na fila dos Centros de Procriação Assistida, havia homens que pretendiam ter filhos de mulheres estranhas e interessantes, mas que pretendiam ficar com eles após o nascimento. Mulheres faziam o mesmo, mas a diferença na população era de cerca de 80% de mulheres para apenas 20% de homens. Isso em muito contribuía para o controle de natalidade. A população mundial continuava em regressão. O objetivo era baixar dos atuais 25 bilhões de seres humanos para cerca de cinco bilhões nos próximos duzentos anos.

Todas as vezes que passava pela vitrine, Amália olhava e olhava com toda a atenção para o homem da vitrine. Já lera muita literatura sobre o comportamento humano, e em particular sobre o relacionamento entre homens e mulheres. Tirando o sexo, conversas interessantes e passeios, o relacionamento com os homens era muito problemático. Sabia disso. Não estava disposta a dividir os seus momentos de lazer com um homem que a irritasse, que não fizesse o que ela desejava. Nesses momentos de conflito, homem era um completo estorvo para ela. E se ainda dependesse financeiramente dela, isso era o fim. Não queria passar por isso. Lembrava-se de algo que havia lido, sobre o calor humano e o calor do corpo humano. Calor humano ela tinha de suas companheiras de trabalho, de suas amigas, e até de alguns amigos gays, mas o calor físico, esse os sexinecos também tinham. Seus corpos eram preenchidos por canais cheios de água, aquecidos através de uma tomada elétrica. Os sexinecos tinham um capacitor interno, e um termostato. A temperatura do corpo dos sexinecos era sempre de 37 graus.
Relutava em entrar na loja para saber do preço e das condições do homem da vitrine. Outros tipos de mulher tinham os seus homens, mas as relações não duravam muito. A maior parte deles eram apenas doadores de esperma – obrigados pelo Estado, para manter níveis populacionais ou de relações entre quantidades de homens e mulheres- os outros, raros, cada um tinha a sua dona. Não queria arrepender-se um dia de tomar uma decisão tão importante como aquela. Sabia que havia um contrato para adquirir um homem. Normalmente ele deveria obedecer em tudo ao que ela determinasse, mas também tinha a sua liberdade de dizer o que desejasse. Jamais de fazer o que desejasse, mas podia reclamar á vontade desde que não ferisse qualquer susceptibilidade feminina. Aliás, a manutenção de níveis baixos de homens na população tinha apenas uma função única: impedir que os homens se revoltassem contra as mulheres. Em pequeno e ínfimo número, jamais poderiam justapor suas forças ás da imensa maioria feminina, cujos postos de comando das forças armadas eram pertença sua, cargos esses dados sempre pelo senado, onde noventa e cinco por cento dos membros eram mulheres.

Amália sentia-se segura, porque todo o sistema apoiava as mulheres, mas havia um código de ética e Amália não pretendia ser uma fora da lei por levar para casa um homem só para ter o prazer de ter um homem verdadeiro em casa, se um dia resolvesse ferir o contrato. Enchendo-se de coragem, um dia não resistiu. Entrou na loja e obteve informações. O homem tinha sua própria fonte de renda. Era carente: dependia da atenção feminina. Era alérgico aos produtos usados na confecção das sexinecas. Não se continha no prazer e quando aquela onda de prazer mal se desenhava ainda, ejaculava de repente, sem avisar. Havia tratamento para ejaculação precoce, mas ele não podia tratar-se, porque até o ser precoce fazia parte de seu prazer particular. Em compensação, podia dar prazer a noite inteira para qualquer mulher que lhe despertasse o prazer, com todos os seus membros, incluindo a língua - que prazeirosamente considerava como membro sexual alternativo. 


Passaram-se ainda muitos dias até que Amália resolvesse voltar à loja para assinar o contrato de relacionamento com o homem da vitrine. Encheu-se de coragem e caminhou a pé até a loja. Resolveu dar uma última olhada no homem. Quando chegou, viu consternada que o objeto de seu desejo já não estava lá. Entrou apressada, angustiada na loja e dirigiu-se á vendedora: 


- Havia um homem na vitrine! – balbuciou – Assinaram o contrato dele?

Com um olhar totalmente alheado, a vendedora disse em voz ausente de qualquer inflexão:


- Passou por aqui, ontem, uma senhora com os seus oitenta anos de idade. Leu o contrato e viu que o homem era encanador, carpinteiro, soldador, bom cozinheiro, e que fizera curso de relações humanas. Decidiu levá-lo porque mora numa casa muito grande que necessita de muita manutenção. Foi amor á primeira vista!

Rui Rodrigues

domingo, 27 de novembro de 2011

Os loucos

Os loucos!!


Só os loucos notam as flores,
Os normais não têm tempo.
Só os loucos vêem o por-do-sol,
Só os loucos se apaixonam pela lua, 
Só os loucos não se preocupam em enriquecer.
Os normais não tem amigos, e sim parceiros,
Os normais não têm prazer, têm disputa,
Os normais não buscam chegar junto,
Buscam vencer sempre.
Os normais não dividem,
Fazem caridade.
Os normais morrem ricos de dinheiro,
Mas pobres de perfumes do verde,
Cheios de pessoas à sua volta,
Mas com lágrimas inúteis, falsas.
Os loucos levam consigo, as cores, as flores,
As imagens, os sons, os perfumes.
Os normais vivem hoje, ganhando para amanhã.
Os loucos sabem que amanhã as flores serão outras, 
Que o pôr-do-sol será diferente, 
Os loucos sabem que cada minuto pode ser eterno,
E isso lhes basta.
Acho que sou louco!

domingo, 20 de novembro de 2011

Noite!!

Noite!
A noite é quente, nenhum ruído.
As músicas são antigas, das que gosto.
Dá saudade, dá vontade de viver de novo.
Dá vontade de dançar coladinho com ela
Dá vontade de beber um whisky com gelo,
Quatro pedras, num copo raso e largo,
De fundo grosso, pesado.
Dá vontade de andar sem rumo na noite,
Dá vontade de ter alguém agora.
Dá vontade de estar longe, num quarto enfeitado,
Num quarto de motel, banheira, som
As mesmas músicas, o mesmo whisky
O dançar colado, de olhos fechados,
A música que mata com suavidade,
Dá vontade de tirar a roupa dela, beijá-la.
Molhar-lhe os cabelos, na água quente da banheira.
Mais um whisky, mais gelo, mais músicas,
Outra vez promessas, outra vez crer,
Ouvir, crer, prometer, beijar, dançar, amar.
Pena ser impossível voltar, dizer de novo.
Traria de volta os bons momentos, os risos.
Traria de volta as promessas, os sentimentos,
Os perfumes, as músicas, os bailes, as noites de cheiros,
De abraços, de beijos, de orgasmos.
Traria de volta mentiras, das quais me livrei.
Das quais a vida me tirou, me salvou.
A solidão de uma noite me torna confuso,
Muito confuso, com a música a me confundir mais,
Sem o whisky pra me fazer dormir.
Confuso, muito confuso!!

Um imenso abraço, Paulo César Pacheco, 12/12/09!


quinta-feira, 17 de novembro de 2011

O nariz de maomé



Perfumes se fazem com extratos (óleos), água, álcool e fixadores. A palavra perfume vem do latim Pro Fumum, que significa “através da fumaça”. É interessante nos fixarmos no significado de “através da fumaça”.
O hábito do perfume vem do Oriente Médio, mais precisamente, do antigo Egito, há cerca de 4.000 anos, quando foi inventado. Nessa época, usavam-se ungüentos, ou seja, óleos de plantas, mas certamente os primeiros perfumes eram provenientes da queima do incenso, do benjoim, do galbano triturados e aglutinados com a mirra e o azeite de oliva. Esta mistura era queimada e seu fumo (Fumum) era naturalmente perfumado. Incrustava-se nas roupas. Quando se ia aos templos, onde se queimava esta mistura, associava-se o cheiro gostoso aos deuses, a alma e o corpo pareciam limpos. Certamente era muito agradável.

Por aquela época, como ainda hoje nas terras quentes durante o dia e frias durante as noites do Oriente Médio e Norte de África, os povos sempre usaram túnicas compridas – também chamadas de caftan, djellabia, dishdasha ou gallibia, em árabe - para reter a umidade do corpo e proteger dos raios solares. Vasos com misturas similares á acima descrita, eram postos para queimar. Quem desejava perfumar-se, colocava o vaso com a mistura queimando, e de pé, deixava que o fumo da queima lhe impregnasse a roupa, a pele. Era o perfume ou o Pro Fumum, através da fumaça, do fumo. Do oriente médio, atravessando o mediterrâneo, ou em lombos de camelos em caravana, o perfume chegou à Europa.

Todo o bom perfume deve ter equilíbrio. Não pode ser extremamente “ácido”, ou muito “doce”, e ao ser usado, não pode pecar pelo exagero. Para termos uma ideia do significado do equilíbrio nos perfumes, podemos comparar com a nossa percepção da essência das coisas, de qualquer coisa, e do sentimento que nos provoca. O equilíbrio dos perfumes é o equilíbrio da vida, dos sentimentos, e somos as melhores testemunhas, porque costumamos punir o exagero ou a deficiência no sentir das coisas da vida.

Mas o que seria dos perfumes sem não sentíssemos o cheiro?

Pessoas capazes de sentir grande número de aromas, contratadas pela indústria de perfumes, são capazes de reconhecer 2.000 aromas diferentes (uma pessoa comum reconhece apenas 12), Por isso não admira que pouco mais de 300 pessoas no mundo tenham essa capacidade.

É através de nosso nariz que sentimos os cheiros. Em 2004 o prêmio Nobel de medicina foi atribuído a Linda Buck e Richard Axel por terem explicado como o olfato funciona. Descobriram que os cílios de cada neurônio olfativo (temos cerca de 10.000.000 deles atrás de nossas fossas nasais, e os cílios desses neurônios estão em contato direto com o ar que inspiramos pelo nariz), são recobertos por apenas um tipo de cerca de mil proteínas detectoras de moléculas odorantes. Podemos identificar mais de 10 mil odorantes porque o nosso olfato usa essas proteínas de maneira combinada e, assim, conseguimos perceber uma variedade enorme de cheiros.

Buck e Axel demonstraram como o sinal detectado no nariz é transmitido para o cérebro. Em primeiro lugar, os sinais são enviados ao bulbo olfativo. De lá, a informação pode seguir dois caminhos. Um deles é ser enviada para regiões do cérebro consideradas superiores, onde a percepção consciente do aroma é gerada, isto é, detectamos a molécula odorante do maracujá – por exemplo-  e pensamos imediatamente: “Isso é maracujá.” Mas outro caminho é quando a informação segue para estruturas cerebrais consideradas primitivas, que comandam nossas emoções e memórias olfativas – é mais ou menos quando um cheiro nos faz lembrar de um lugar ou de alguém.

Chegamos assim à essência sobre os olfatos e os perfumes: o depoimento de Maomé. O profeta e fundador do islamismo, Maomé, acreditava no poder dos perfumes e, segundo dizem, teria afirmado certa vez: "Três coisas são importantes para mim na Terra: mulheres, perfumes e orações.Tirando as Orações, Maomé tinha um gosto perfeitamente atualizado do mundo em que vivemos. Em ambiente que certamente seria perfumado, cercado de belo harém, não nos podemos admirar de que tivesse razão. Teria dito também: "O perfume é o alimento que nutre meus pensamentos."

Por vezes nosso cérebro se engana quando cheiramos severamente a essência de uma frase que, dita por outra pessoa, nos pareceria perfumada. Alguns de nós só sentimos 12 emoções, outros conseguem distinguir 20.000...

Rui Rodrigues

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Mas onde está a produtividade da crescente e emergente economia brasileira?

Mas onde está a produtividade da crescente e emergente economia brasileira?

È com ufanismo e um orgulho incomensurável que escuto nos jornais constantes notícias sobre a emergência da economia nacional. Escuta-se de vez em quando que países da Europa estariam contando com o apoio financeiro do Brasil para ajudá-los a sair de uma crise que os próprios governos provocaram...

Finalmente o país do futuro, é o País do presente!

Como engenheiro formado sem padrinho, que subiu um morro para pedir emprego como engenheiro e que foi admitido depois de dois dias inteiros de demonstração teórica de que não tinha passado colando dos outros, fui admitido e comecei uma carreira durante a qual tive oportunidade de usar tudo o que tinha aprendido na Universidade Federal Fluminense e muito mais. Principalmente economia.

Empresas que não têm uma boa produtividade não dão lucro... Também não dão lucro as empresas que não invistam em tecnologia, seja desenvolvendo-a, copiando-a ou comprando-a... Para dar lucro, uma empresa precisa de tecnologia atualizada, ter produtividade. Para darem lucro, as empresas precisam de muitas outras coisas, mas apenas estas duas são suficientes para explicar porque razão estou pasmado...

Empresas e governos (como nação) são a mesma coisa: O governo também tem que dar lucro, caso contrário, a nação vai à falência. Alguns empresários não avaliam bem isto, e muitos governantes não entendem nada disto, mas como os governantes governam e não entendem do que têm que governar, há sempre quem lhes faça o trabalho, chamados de “equipe técnica”, esta também sem muita responsabilidade, porque o dinheiro que gerenciam não é deles.

Parte do meu espanto é por constatar que nossa nação não tem centros significativos de desenvolvimento e pesquisa tecnológica. Pagamos royalties, diminuindo seriamente o nosso “lucro”, porque são despesas. Nossas indústrias, em sua grande parte, não são nossas. São de grandes acionistas e empresas estrangeiras que impõem certas exigências, como redução ou isenção de impostos, em troca de sua instalação no país. Na verdade, é quase uma troca simples: as empresas se instalam de forma quase grátis, pagam pouco imposto, têm o lucro delas garantido, e em troca dão empregos. Parte substancial dos lucros vai para o estrangeiro, outra parte é aplicada rendendo juros exorbitantes, coisa que o governo não faz com o dinheiro que colocamos na poupança. Nossa poupança rende pouco, porque os juros que nos deveriam pagar são dados ao capital estrangeiro que aplica no Brasil. Nossas poupanças são usadas quase grátis pelos Bancos para cobrar juros altíssimos por empréstimos a quem o pede. Uso indébito de capital. Deveria dar cadeia, porque emprestam o nosso dinheiro e não nos pagam o que deveriam.

Espanto-me também por ver que  nossa produtividade não se pode igualar á da Itália, Alemanha, EUA, Europa... O que nos aumenta os custos de produção e nos reduz os lucros como nação. Deveria faltar dinheiro nos cofres públicos... mas pelos vistos, e a julgar pelas declarações do ministro da economia, Sr. Mantega, o Brasil tem dinheiro saindo pelo ladrão, a ponto até de poder controlar a baixa ou a alta do dólar... E isto apesar dos desperdícios com a corrupção, como toda a nação já sabe...

Mas de onde vem tanto dinheiro, se temos baixa produtividade, muito dinheiro se desperdiça pela corrupção, e pagamos royalties sobre quase tudo o que produzimos?

Só há uma explicação: As sobras de caixa da contabilidade nacional vêm dos altíssimos impostos sobre os produtos, sobre a renda, e do lucro em se pagar baixos salários, dos baixos juros sobre as cadernetas de poupança, e da deficiência nos serviços públicos, barateando a administração.

Em outras palavras, há dinheiro em caixa, porque, apesar da péssima administração, os impostos, os baixos salários, a exploração do capital popular, garantem o caixa...

Em outras palavras, estamos sendo enganados, roubados, por falta de capacidade de administração do Estado.  

Culpar FHC, Lula, Dilma, Collor?

Não!

Sempre foi assim, para mais ou para menos, mas sempre foi assim...

A culpa é toda nossa! Não fazemos nada objetivamente para mudar. Apenas nos limitamos a reclamar, a protestar, injustiça por injustiça, mas são tantas as injustiças que levaríamos uma eternidade para protestar todas elas com eficiência de modo a resolver uma por uma, definitivamente...

Precisamos fazer algo mais... Exigir uma nova constituição aprovada item por item pela população e que não possa ser alterada sem votação popular.

Com uma nova constituição, desta forma, não teremos o que reclamar. O governo terá de agir segundo a vontade dos cidadãos.

Rui Rodrigues

A Moça!

A moça!

A moça da pensão que eu morava
Era linda ela e eu a amava.
Cuidava de flores, num jardim suspenso
Por cordas imensas, presas a arvores
Grandes, imensas, folhosas, frondosas.
Era linda ela, com um rosto arredondado
Cabelos louros, macios, encaracolados.
Era linda ela, era apaixonante, era luz!
Valia voltar ainda que cansado, para
Para servir-lhe o vinho tinto na taça.
Beijar de novo o rosto lindo, radiante.
Sentar de novo naquele banco de madeira,
Enfeitado e perfumado
Pelo pequeno jardim suspenso nas arvores.
Na varanda, na tarde noite quente,
Ouvir e dizer juras eternas, sensíveis.
O caminho que percorria na volta,
Sempre foi enfeitado pela saudade,
Pela vontade de vê-la de novo!

Que chatice cúbica!
Não quero falar sobre isso!
Quero falar sobre quadros vermelhos
Pontes de concreto branco, nada floridas.
Quero que a vida seja abstrata, nada concreta
Nem mesmo o concreto do prédio azul,
É literalmente, realmente, concreto.
Ele, embora feito de concreto,
É abstrato na minha mente.
Não existem flores no vôo do avião de guerra
Não existe perfume do lado de baixo da ponte
Nem tampouco a moça mora naquela pensão.
Nunca me apaixonei por ela.
Nem os quadros que me passam na cabeça,
Nem os pássaros amarelos que pousam sobre
A estátua do herói na praça.
A música, a criança, o quadro, o avião
O pássaro, o abstrato, o concreto
A vida, a moça, o jardim, a flor vermelha,
Nada existe realmente, tudo é abstrato!

Um abraço, Paulo Pacheco, 24/08/09

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

a propósito de música ...



Sobre música, 

(Ou de como podemos ser cegos e surdos, mesmo quando vemos e ouvimos)

Quando em 1954 “Bill Halley & the comets” apareceu nas ondas do rádio, eu já tinha 09 anos de idade, e começava a querer namorar. Por onda passava, lá estava o conjunto tocando Rock around the clock...: nas ruas, em casa, nas festas. Não havia propaganda implícita na música, nenhuma conotação de qualquer tipo: era apenas música, poesia. O povo ouvia e dançava porque queria. Isso era suficiente.

Inicialmente despretensioso, o Rock around  the clock logo se transformou num conhecidíssimo “rock around the world”... Toda vez que a música terminava, dava vontade de escutar outra vez. O povo adotava a música, escutava, cantava, dançava. Para quem gosta de evolução da música, pode ainda escutá-lo em http://www.youtube.com/watch?v=-mZLpDuuf40 .

Desde pequeno, porém, eu tenho um enorme problema: consigo assobiar as músicas, mas decorar títulos e letras é um tormento. Foi por isso que segui engenharia e não medicina, porque sempre tive dificuldades de decorar, memorizar. Memorizei Rock around the clock porque o título provoca reflexão sobre o tempo... Movemo-nos no tempo, o tempo manda em nós, mas nós mesmos fazemos o tempo render ou se desperdiçar num sorvedouro desconhecido... marcou também o meu gosto pela música.

Bill Halley foi durante um par de anos o meu herói do mundo lúdico, que me aliviava as horas de estudo, da vida cheia de tarefas, da pressão de me adequar a uma sociedade por me ser total e compreensivamente impossível adaptar a sociedade á minha forma de pensar.

Em 1955 Elvis Presley arrebenta nas paradas de sucesso com “That’s all right mama” – está tudo certo, mamãe. Durante alguns meses rivalizaram nas emissoras de radio, nos anúncios, pequenos resumos filmados a cores que passavam antes do inicio dos filmes nas sessões de cinema. Competiam nos jornais, nos canais de televisão, ainda a preto e branco, nas festas familiares. Na prática, o rock nascera em 1954, e em 1955 já tinha dois ídolos, e duas canções: uma falando do tempo, outra falando das preocupações com a moral e a ética. Comecei a desconfiar, com 10 anos, que a música nos mandava recados, que se entendidos, poderiam mudar o mundo. Com “Follow that dream” (siga aquele sonho) em 1962, e ainda na década de 60 com “Nothingville” (cidade do nada) e “If I can Dream” (se eu puder sonhar), Elvis mandava novos recados ao mundo, durante os movimentos sociais contra a guerra do Vietnam e o racismo. Elvis ainda pode ser visto vivo em http://www.youtube.com/watch?v=9CMlYVu9J4g .

Porém fã de Elvis Presley, logo tive que dividir minhas preferências musicais – e pelos vistos das mensagens transmitidas pelos títulos e temas das músicas – Com um conjunto que desde 1960 vinha disputando as preferências do público: “The Beatles”, com Ringo Star, George Harrison, John Lennon, Paul McCartney. Juntos ou separados, produziram canções como  “All you need is Love” (tudo o que você precisa é de amor); “All together now” (todos juntos agora); “Peace of mind” (Paz de espírito) e outras. Quem desejar ouvir os Beatles pode ainda fazê-lo em http://www.dailymotion.com/video/x15f3t_the-beatles-all-you-need-is-love_music#rel-page-2.

Muitos outros grupos, muitos cantores e cantoras apareceram desde então, e um em particular: Pink Floyd com a música “Another brick in the wall” (Mais um tijolo na parede), dizendo que não precisamos de mais educação...  Pode ser ouvido em http://www.youtube.com/watch?v=lwTpZpwjtIE ...

Há muitas formas de “ouvir” música: impregnando-se de melodia e sons para incentivar a produção de substâncias químicas no cérebro que nos dão prazer; ouvir a melodia, os acordes, os instrumentos, e “viajar” no lúdico enquanto lembranças e desejos nos vêm á mente; ouvir por ouvir como se não existisse a música, a melodia, a letra, apenas como pano de fundo para o que estamos fazendo; entender o que a letra quer dizer e imaginarmos situações futuras ou passadas; analisar tecnicamente a composição como crítico de arte, sem a menor emoção, apenas a razão de cada timbre, de cada pausa, de cada escala, do conjunto, se fará sucesso ou não, ou simplesmente, se a melodia é ou não é boa para dançar, para ouvir, para ouvir depois do jantar, ir a um show. Alguns ainda não se importam com a melodia nem com a letra: Basta que seja cantada por seu artista de preferência.  

Isto não é uma crítica. É uma constatação de que cada ser da humanidade tem o direito de fechar os ouvidos ou os olhos, ou os dois, para o que não lhe interessa, quer o motivo do desinteresse tenha bases consistentes, ou se trate apenas de emoção, como quem diz que não gosta de peixe cru com molho shoyu e gengibre, sem nunca ter provado.

Casualmente, ou nem tanto por acaso, política também é assim, como a música... E embora a canção seja a mesma, cada um a interpreta como sabe, quer, ou deseja.

Um conjunto, muito especial, adotou o nome de “Faith No more” – Fé nunca mais!

Rui Rodrigues

sábado, 12 de novembro de 2011

As cigarras e a Primavera: O clima está mudando.





O clima está mudando e as cigarras são poucas

São poucas e cantam de modo diferente.

Décadas atrás, as cigarras eram muitas e quando uma começava a cantar, as outras lhe respondiam. Era sinal de primavera. Naqueles tempos não havia internet, muitas ditaduras iam pelo mundo, e as cigarras ficavam 17 anos enterradas no solo, sem cantar... Subiam à superfície na primavera, transavam freneticamente, e as fêmeas tinham tempo ainda de parir antes de morrer. Cigarra que ganhava asas para cantar e vinha á tona, não voltava às origens de seus subterrâneos.

Sempre gostei muito de cigarras, pelo cantar imperial, incisivo, forte, sonoro, começado a cantar baixinho, e elevando o tom, até se transformar num grito de guerra... São valentes as cigarras e muito pacientes... Ficarem caladas por 17 anos é sinal de grande paciência e perseverança.

Quando as ouvi cantar diferente, foi em Paris... Fazia uma semana que grupos de estudantes secundaristas e universitários se reuniam no Quartier Latin, bairro tradicional de Paris onde fica a Universidade de Sorbonne. Eles protestavam contra a Guerra do Vietnã, o autoritarismo do governo conservador de Charles de Gaulle e a prisão de estudantes em manifestações pela paz. Este cantar de cigarras francesas provocou movimentos semelhantes em todo o mundo e 1968 se transformou num dos anos mais agitados do século XX.  As cigarras voltaram a cantar com toda a força e em grande número na primavera de Praga (Praha). Coincidiu com o período de liberalização política na Tchecoslováquia durante a época de sua dominação pela União Soviética após a Segunda Guerra Mundial. Esse período começou em 5 de Janeiro de 1968, quando o reformista eslovaco Alexander Dubček chegou ao poder, e durou até o dia 21 de Agosto quando a União Soviética e os membros do Pacto de Varsóvia invadiram o país para interromper as reformas.

Desde essa época que associo as cigarras que anunciam uma nova primavera aos levantes democráticos de Paris e de Praha, duas lindas cidades que tive o prazer de visitar. Mas nessa época o cantar das cigarras tinha muito a haver com as ideologias. Talvez por isso cantassem diferente do que cantam hoje.

Começaram a cantar ainda diferente em 1986 quando Fernando Marcos, presidente das Filipinas após ter instaurado lei marcial e prendido opositores, se ter revelado como um defraudador das eleições políticas. Fugiu com Imelda Marcos, sua esposa, ex-miss Filipinas, idéia fixa em sapatos, dos quais tinha mais de 30.000 pares. Fugiram para o Havaí, porque naquela altura, os EUA não eram tão fixados em democracia representativa como são hoje. Naquele tempo, acobertavam e acolhiam ditadores.

Em 1989, as cigarras não se ouviram em outubro. Não era tempo delas, mas apareceram em Berlim sem gritos, sem avisos, sem violência, da noite para o dia, em 08 de novembro de 1989. Muito poucos cidadãos deste planeta, absorvidos ainda pelas ideologias e a guerra-fria, não perceberam que o cantar das cigarras não era ideológico. Era financeiro. Os países sob influência comunista da ex-URSS estavam falidos, tinham perdido a corrida espacial por falta de verbas para comprar tecnologia, materiais, pagar espionagem industrial... A Igreja Católica apressou-se a dizer que uma santa de sua preferência tinha convertido a URSS pelas orações dos fiéis... Gorbachev o grande mentor da virada russa com seu livro Perestróica, foi eclipsado por um bêbado, muito mais político que capitalizou o grande mérito de ter mudado a tendência política dessa grande nação, subindo em cima de um tanque, provavelmente de ressaca.  

Foi então que comecei a perceber que o canto das cigarras mudara profundamente. Não seguia uma linha clássica nem Rock de preferência, não era ideológico, mas dava lugar ao “rap”, ao hip-hop,  e às finanças, ao capital.

O cantar das cigarras na primavera modificava o mundo e modificava o seu cantar. Cantavam agora moralidade e ética. Cantavam agora moralidade e ética, nada de ideologias, partidos políticos, figuras de proa da política, encampadores de opinião. 

Foi assim que cantaram em 2007, em Israel, quando a justiça prendeu Moshe Katsav, culpado por estuprar duas vezes uma ex-funcionária do Ministério do Turismo, pasta da qual foi titular entre 1996 e 1999; por abuso e assédio sexual contra duas funcionárias da Presidência; e por delitos menores como abuso de poder, obstrução à Justiça e assédio a testemunhas.

Em 2010 e 2011 cantaram no Norte de África, na Tunísia, no Egito, na Líbia, e estão ainda cantando por lá, onde ditadores vitalícios fechavam suas sociedades ao progresso, á ética, á moral, e ao rap, ao hip-hop, e, sobretudo, a uma vida livre na expressão corporal e verbal.

Em 15 de maio de 2011, as cigarras de Madrid cantaram a mesma melodia do Norte de África: a Espanha, atravessando crise financeira sem precedentes, vai para as ruas, acampa com crianças, idosos, trabalhadores, gentes de todos os níveis, em protesto à deficiente, inconseqüente e depredatória forma de governar, que quase a levou á falência. O movimento 15-M se espalhou pela Europa, pelo mundo, e em 17 de setembro, em N. York, o povo acampou pelos mesmos motivos: O dinheiro público sumiu do tesouro nacional, foi entregue aos bancos a pretexto de uma crise, a qualidade do governo decaiu por falta de verbas.

Em novembro de 2010, hoje, exatamente, dia 12 de ovembro, Silvio Berlusconni, presidente da Itália, acumulando a presidência de um clube de futebol milionário, que necessita de verbas milionárias, pediu demissão, porque a Itália está á beira da falência.

Entre 2010 e 2011, no Brasil, as cigarras também cantaram. Pouco, muito pouco, mas cantaram. Seis ministros caíram sem devolver as verbas públicas desperdiçadas, e sem dizer onde estavam. A justiça omitiu-se e deu os casos por encerrados, continuando a população sem saber para onde foi tanto dinheiro. Aprovaram uma Medida Provisória para que não se tornem públicos os processos para as obras do Mundial e dos Jogos Olímpicos no Brasil. Põe-se em votação limitada ao Estado do Pará, a sua divisão em três, sendo os dois novos, de clara influência da “Vale do Rio Doce”, empresa mista, com subsidiarias que são particulares, de onde partiu em 1987, o escândalo da Ferrovia-Norte sul. Se verificarem o custo do km de ferrovia, a sociedade era um ataque de nervos, as cigarras ganharão as ruas, o planalto.

Mas por enquanto, as cigarras estão relativamente calmas e são poucas. Talvez ainda estejam enterradas nas profundezas da terra, som ligado num hip-hop, num rap.

A primavera está acabando. Talvez na próxima possamos ouvir as cigarras em todo o seu esplendor, numa algazarra sem precedentes.

Rui Rodrigues

domingo, 6 de novembro de 2011

Onde moro ! (Do amigo Paulo Pacheco)

(Do amigo Paulo Pacheco)
(Obrigado, Paulo)


Onde moro!

Vem isto a propósito que, 
No meu quintal, tenho de tudo um pouco.
Tenho graviola, bananas e mangas, 
Tenho mamoeiros, maracujás e macieira.
Vejam como clima mudou,
Permite-me ter uma macieira linda,
Na quente cabo Frio.
Tenho ainda um cachorro amigo e 
Uma amiga gata de quatro patas.
Tenho pés de pimenta dedo de moça,
Erva cidreira e uns condimentos, 
Temperos para os peixes e as carnes.
O sal, apanho na água do mar, 
Que é limpa e mais saudável.
Os nasceres e os pores do sol,
São das cores róseas que imagino,
O céu seja composto.
As nuvens soltas nesse céu colorido, 
Cada uma mais bonita e gostosa que a outra,
Esvoaçando corpos que se formam
E logo depois desaparecem, 
Tal como o é o espírito feminino
Do esconde-esconde, 
Do quero, mas não dou,
Do dou, mas não quero.
Cidades, prá que?
Já lhes dei tudo que podia dar, 
Já me retribuíram o que deviam, 
Abandonei-as, pois agora, 
Só me tiravam o que me tinham dado.

Abraços, Rui Rodrigues!

sábado, 29 de outubro de 2011

O Vulto




O vulto

O vulto jazia na pequena sala em frente a um computador da moderna tecnologia, controlável por seu pensamento através de pequeno dispositivo disfarçado entre os seus cabelos longos e desarrumados: um aro de cabelo eletrônico que em nada lhe prejudicava a silhueta. Do outro lado da sala, uma bicicleta ergométrica lhe permitia o controle do peso. A parede da sala era o seu monitor. Por ele controlava todos os equipamentos do lar, desde o forno de micro ondas à pequena máquina de lavar a seco, regular a temperatura do chuveiro elétrico.  Sentiu um desejo incontrolável de ver neve, esquiar, sentir frio. Não buscava explicações em seus desejos. Para ele, os desejos não necessitavam de explicação. Eram vontades que podiam ou não podiam ser concretizados. Se podiam ser concretizados, ficava feliz. Caso contrário, mudava sua vontade para desejos que pudesse concretizar e continuava feliz do mesmo jeito.

Ligou o ar condicionado para o frio máximo, vestiu um abrigo quente, ligou a parede-monitor num programa de esqui na neve nos Alpes suíços, e postou-se adequadamente no meio da sala. Logo estava esquiando a toda a velocidade, seu corpo acompanhando a velocidade vertiginosa na descida da montanha... Sabia que há muito tempo atrás isso era possível fazer ao vivo, mas os turistas deixavam muito lixo desde o caminho de acesso até a sua saída do parque, e os hotéis não tinham nada de politicamente correto em meio a essa natureza, e acabaram fechando as portas. A natureza deveria ser conservada virgem... Achava em particular que era isso que se buscava na humanidade: a virgindade do planeta, a natureza pura, sem nada que a pudesse poluir. Buscavam o mesmo na consciência humana, O planeta todo clamava por pureza de sentimentos.

O vulto sentiu-se cansado. Fazia meia hora que descia uma montanha que nunca tinha fim. Faltava naquele programa o “chegar ao fim”, tirar os esquis, colocá-los dentro de um carro, subir a montanha e tomar alguma coisa no bar do hotel. Desligou o programa, despiu os agasalhos, condicionou o ar para temperatura ambiente e foi até a geladeira. Apanhou umas pedras de gelo, e colocou num copo. No liquidificador bateu um tomate com sal, pimenta do reino, hortelã e coentro. Despejou tudo no copo com o gelo e tomou o seu “Bloody Mary” sem álcool. Tomar álcool era politicamente incorreto. O vulto  não fazia isso. Nem fumava qualquer tipo de qualquer coisa fumável. Não tomava drogas em absoluto. Sexo era coisa muito rara. Por vezes confundiam sua conversa com assédio sexual, e sentia-se desconfortável. Outras vezes constatava que não se tratava de uma mulher, como desejava, mas não podia reclamar, sem ser confundido com homofobico. Não tinha muitos prazeres diferenciados na vida. Limitara-se a viver dentro de uma estreita faixa de prazeres que podia alcançar, e qualquer outro que tivesse, por inesperado, era contabilizado como lucro do mais alto valor.

Acabou de tomar o drinque sem álcool, pousou o copo na pia da mini cozinha e apanhou uma folha de papel que passou cuidadosamente pelo copo até ficar limpo. Jogou o papel numa cesta de lixo, e apanhou outro com um forte cheiro de álcool. Repetiu a mesma operação. Agora o copo estava limpo e não gastara uma só gota de água, exceto pela que fazia parte do álcool adulterado que impregnara o segundo papel. Tinha consciência que adulterar o álcool não era politicamente correto, mas o governo estava trabalhando nisso com afinco. Um dia seria possível. Pensou no que poderia fazer para se distrair de uma forma diferente. Sentiu necessidade de sair. Precisava de companhia que não fosse virtual. Até recentemente fizera parte de grupos virtuais na NET, onde todos eram amigos. No início, quase todos expuseram as suas fotos, as fotos da família, dos amigos da vida real, e depois se arrependeram porque dos amigos virtuais, uns o eram, outros não. Com tantas perseguições que ocorreram já não se encontravam perfis virtuais que correspondessem a perfis reais. Aquela virgindade e pureza tão procuradas como modelos para a natureza do planeta e do espírito humano perderam muito com a realidade. Os grupos se transformaram, a NET se transformou. O mundo todo tinha mudado. Já não era possível usar um tipo de letra para postar. Era um modelo único, que despersonalizava, como se todos “falassem” impessoalmente. A NET agora servia apenas para consultas, comércio, e comunicação entre familiares e amigos no mundo real. O mundo ficara melhor nos conceitos, mas na pratica estava ainda pior. Era o que o vulto apreciava quando assistia a filmes antigos, reportagens antigas, descrição dos hábitos de um viver que ficara muito para trás, e que nem chegara a conhecer. Precisava sair e sorver um ar diferente.

Quando abriu a porta de acesso, junto ao muro do condomínio, relutou em prosseguir. A rua estava impossível de ser freqüentada. Estava quase vazia porque eram poucos os automóveis que eram permitidos circular por usarem combustíveis fósseis e poluentes. O uso de hidrogênio como combustível tinha sido banido por obrigar á decomposição da água, cada vez mais cara. O petróleo somente era usado por forças armadas por sua potência, que dava aos motores grande torque e velocidade. O álcool era impossível de usar por ser perigoso para a saúde humana: muitos o tomavam ou cheiravam e a falta de alimentos no planeta não podia desprezar mandiocas, batatas, milho, e outros alimentos desperdiçados para produzir álcool. Nada disto era politicamente correto, e as fábricas de automóveis foram á falência. Somente transportes públicos movidos a energia elétrica de proveniência eólica, da força das marés, de hidroelétricas eram permitidos. O mundo demorara quase duzentos anos para perceber isso, e alimentara muitas guerras pela posse de combustíveis fosseis caros e poluentes. Mas mesmo com as ruas quase vazias, o território da cidade era muito diferente daquele de que dispunha em sua casa com toda a privacidade. A rua não era lugar seguro. Ir a centros de convivência cultural, para que os seres humanos pudessem desfrutar do toque, da troca de informações reais, era quase o mesmo que o da NET e em pouco tempo deveria extinguir-se: A pessoas precisavam de muito tempo para se conhecer e adquirir aquela confiança que lhes permitia o abrir do espírito e o prazer de coexistir. No mundo, todos eram estranhos, difíceis de conversar, susceptibilidades á flor da pele.

O vulto deu alguns passos pela rua, até divisar numa esquina um assalto a um casal que passava desprevenido. Cautelosamente voltou sobre os próprios passos, e voltou a passar pelo portão que se abriu automaticamente. Subiu o elevador, entrou em sua mini sala, ligou a TV na parede monitora. Hora de noticiário. Uma agradável apresentadora dava as notícias do dia. Havia passeatas em frente ao Congresso reclamando por trabalho, uma guerra no Oriente Médio e outra em África, Um governador de Estado e dois senadores envolvidos em corrupção ativa e passiva dizendo que eram inocentes, e o Movimento pelo Direito das Crianças, com integrantes entre os oito e os 12 anos de idade, pediam liberdade de expressão, direito de liberdade em seus relacionamentos, e controle do próprio horário para estudos, para dormir, e de relacionamentos com privacidade total. Exigiam ainda independência completa para decidir sobre o que fazer com a mesada financiada pelo Estado, a ser paga quando se formarem e arranjarem emprego, ou protelar a dívida até que trabalhem, uma espécie de escravatura consentida disfarçava de legal por força de contrato que violava os direitos da criança.

O vulto desligou a TV escovou os dentes, e olhou-se no espelho antes de se deitar. Vivia sozinho e tinha apenas 13 anos  


Rui Rodrigues