O contrato de Convivência Consentida
Todo
contrato deve atender ambas as partes de forma a que se satisfaçam, fiquem
satisfeitas. Se ficarem mutuamente satisfeitas, melhor ainda.
Foi
o caso de Isabel de Garcia y Albuquerque, de sessenta e oito anos ao assinar o
“contrato de convivência consentida” com Pedro da Cunha Alves, um sexagenário
de 69 anos. Para todos os efeitos um casal moderno que assistira até às
barricadas de Paris por uma melhor educação e ao festival de Woodstock pela
liberdade total e indiscriminada.
Ambos viviam solitários, nestes duros tempos de falta de credibilidade interpessoal, cada um em sua casa, mas ainda sentiam fôlego para uma relação final até que a terra os comesse. O passado de Isabel contemplava dois maridos, três amantes e segundo suas contas, mais ou menos uns setenta e cinco casos eventuais na base do supetão: a presa passava por seus olhos, ela lançava-lhe todas as suas armas físicas, gestuais e intencionais, e depois de uma rapidinha que não demorava mais do que uma hora, lavava-se, arrumava-se, ajeitava-se, perfumava-se, passava batom e ficava com a nítida sensação de que “lavou tá novo”.
Pedro
da Cunha casara uma vez só, e segundo sua contabilidade já meio duvidosa pela
memória que a idade ainda permitia mais de duzentas, e não se lembrava se
alguma delas teria sido realmente sua amante, ou caso eventual simples ou
casualmente repetitivo. Uma coisa era certa e comum aos dois: Não gostavam
muito de viver sós e precisavam juntar-se a alguém, mais que não fosse para
terem motivos para arranjar novos amantes, novos casos eventuais, como que num
processo de rejuvenescimento que só as cirurgias plásticas também proporcionam.
Ambos eram muito experientes de vida. Ambos sabiam também que a discussão dos
termos do contrato de convivência consentida não seria coisa fácil.
Perante
um escrivão do cartório que a cada termo do contrato se emocionava, sentia
raiva, sorria de puro gozo ou apresentava discreto olhar de incredibilidade ou
admiração, os dois se sentaram para acertar alguns detalhes e finalmente
assinarem o documento que lhes garantia a independência na dependência, a
liberdade nas limitações, e a convivência sustentável nas constantes
divergências que logo começariam a aparecer.
-
Concordo com a divisão em partes iguais das despesas da casa – disse Isabel –
mas temos que ter uma geladeira grande e duas pequenas. Na grande, os alimentos
comuns. As outras são uma para mim e outra para você guardarmos o que cada um
comprar só para si. Podemos até dividir, mas há coisas que você gosta que eu
não gosto e vice-versa. Assim não haverá discussões. Virou-se para Pedro da
Cunha e lançou-lhe um olhar interessado, deu-lhe um sorriso simpático e
perguntou: - Concorda?
Pedro
da Cunha assentiu com a cabeça, devolveu-lhe o sorriso e passou ao ponto
seguinte. Disse: Cada um tem a sua conta no banco para despesas particulares e
uma para as despesas comuns. Quanto aos bens adquiridos a partir de hoje, serão
sempre adquiridos meio a meio e no caso de um de nós se ir antes do outro – o
que é mais provável- o outro fica com a parte do que se foi... Concorda? Isabel
pensou um pouco. Não pretendia adquirir nada. A vida tinha sido difícil e
pretendia gastar tudo antes de se ir. Foi franca com ele. Concordava, mas não
pretendia comprar nada de imóvel. Só trocar de carro e alguns móveis para
inaugurar o apartamento novo que estavam alugando. Viveriam nele enquanto
vigorasse o contrato.
-
Querida, sobre nossas relações íntimas... Temos sido muito francos um com o
outro e isso deve transparecer no Contrato -Disse Pedro da Cunha- Creio que
temos que garantir um mínimo de relações. Sabe como é... Dor de cabeça,
indisposição, tudo bem, mas imagine que a partir de certa altura isso aconteça
todos os dias de todas as semanas do mês, meses a fio... Ou que eu mesmo negue fogo
da mesma forma... Salvo motivo de força maior... Como ficaríamos?
-
Nós não precisamos dar desculpas um para o outro como se fossemos casados
“normalmente” ou como antigamente. Se isso acontecer, e não pudermos aguentar a
desgraça, abrimos o jogo e denunciamos o contrato. Separamo-nos e damos o trato
como acabado.
Isso
fazia sentido para Pedro da Cunha. Foi assim, em pleno entendimento, que se
acertaram nos outros itens contratuais:
Art.8º
- Se qualquer um dos dois passar a roncar, o outro tem o direito de dormir com
quem não ronque ou ronque menos ou de forma menos desagradável enquanto
persistir a roncação.
Art.9º
- Todos os anos se trocará de gênero de empregado. Um ano uma empregada e no
outro um empregado para agradar a ambos os Conviventes. Se o empregado ou a empregada
consentirem, podem passar a mão à vontade.
Art.
10º - Cada uma das partes terá direito a um(a) suplente, de sua livre escolha,
para os casos de discórdia por incompatibilidade de gênios ou vontades, como por
exemplo ir a um baile ou tomar chope com os amigos. Se uma das partes quiser
fazer algo do gênero e a outra não quiser acompanhar, usa o suplente ou a
suplente.
Art-
11º- Conceito da “semana um semana outro”. Este artigo dispõe sobre as
alternativas nas responsabilidades. Se um dos membros do casal lava a louça
numa semana, o outro a lavará na semana seguinte. Aplica-se este artigo a todas
as atividades do dia a dia.
Elege-se
o Foro Íntimo de cada um para resolver as pinimbas decorrentes da aplicação dos
termos deste Contrato, que em casos extremos dispensa o Julgamento arbitral.
Casos denunciados por ele serão julgados na cidade de Amsterdam, e denunciados
por ela em Timbuctú para assegurar que a união teria uma última oportunidade de
continuar.
E
nem sei se foram felizes por muitos anos ou algumas horas. Sei apenas que
buscaram a felicidade durante toda a vida, experimentando todos os caminhos
possíveis para garanti-la. Até por um contrato de intenções.
No
testamento dos dois constava bem claramente que os vibradores que ela deixara
eram legado para a neta e que a bonequinha inflável que se chamava “Minha
gostosinha” ficaria para o neto dele...
Rurodroguix