A Cortina de Cana Caiana
Um dia, nem se sabe que
parte da sociedade, mas pequena por certo, sem perguntar nada ao povo, enfiou a
mão nas verbas públicas e resolveu fazer uma estátua em homenagem a um sujeito
“muito importante”. Uma não... Várias. Encheram o país de estátuas. Das verbas
públicas, saiu o dinheiro para o bronze, pagar as fundições, os moldes. O
artista ganhou uma casa para morar, porque não tinha nenhuma, duas caixas de
vodka e carnês com cupons para um ano. Os cupons garantiam a parca comida, dois
pares de sapatos dos que estivessem disponíveis, dois casacos de inverno e meia
dúzia de roupa além de sabonetes e lâminas de barbear, coisa quase
desnecessária porque era moda usar barba grossa.
Várias gerações de crianças
passaram sua primeira vez em frente às estatuas do herói e perguntaram quem
era. Em dois segundos lhes explicavam quem tinha sido. Era o tempo de dizer que
ele, o herói, lhes trouxera a liberdade, a igualdade, o bem estar. Da segunda
vez que passavam à frente da estátua, e a partir daí sempre que passavam, se
questionavam que liberdade era aquela, que igualdade era essa, porque o bem
estar era tão pouco, difícil e deprimente. Não tinham nada na verdade, e corria
notícia de que no mundo lá fora uma imensa maioria tinha quase tudo, e embora
houvesse desigualdades, pelo menos perante a lei todos eram iguais, e podiam
sair do país quando quisessem, viajavam, tinham automóveis. Quem contava a vida
lá fora – sempre em sussurros e em confidência - eram os atletas que competiam
em jogos internacionais, jornalistas, funcionários em férias de embaixadas no
exterior, gente privilegiada cujas funções lhes permitiam saber do “mundo lá
fora” por detrás do muro de concreto e arame farpado com postos militares de
vigia, por detrás da cortina de ferro. Havia outra cortina, mas era em outro
país. Era de bambu.
Das ultimas vezes que essas
crianças viram essas estátuas, estavam sendo derrubadas. As próprias crianças
de antigamente, agora feitos adultos, as derrubavam. As estátuas incomodavam. O
herói os enganara. E os enganara tanto que até a bandeira do país foi lavada
das cores e uma velha bandeira, surrada, usada antes do grande movimento de
libertação, de igualdade teve suas cores reavivadas e tremula agora nos prédios
públicos. A era da grande mentira terminara. O herói agora já estava até
esquecido. O mundo lá de fora triunfara a grande guerra fria. Hoje, tal como
antes no regime do grande camarada, havia os protegidos do sistema e os não
protegidos. Mas a diferença era muito sutil. No tempo do grande camarada, havia
proteção sim, e a divisão entre os que passavam melhor e os que passavam pior
eram fruto do companheirismo protetor. Quem era protegido do grande partido
passava bem. Quem não era passava pior. Nem os empregos se conseguiam por mérito,
mas por “confiança”. No mundo vencedor, o que ficava para além dos muros, das
cortinas, a diferença era mais uma questão de capacidade Uns tinham, outros
não. Diplomados sem mérito não tinham futuro. Diplomas de formação eram
atestados de capacidade que deveria ser comprovada na prática.
E o mundo mudou. Mudou, mas
não completamente. Na América do Sul, vinte e poucos anos depois, há grupos de
“camaradas” e “companheiros” que querem resgatar os tempos do Grande Camarada,
da Revolução, sem sequer se perguntarem porque mais de noventa países no mundo
a abandonaram e derrubaram as estátuas. Marx, Lênin, Stalin, são figuras
históricas de quem se fala em salas de universidades por um par de aulas e isso
é tudo o que resta de sua lembrança. Seus sistemas – ou os sistemas baseados em
suas filosofias, não funcionam. São como relógios sem corda, sem baterias que
nem o tempo marcam mais. A América do Sul é o único país que quer resgatar o
passado ou, por falta de consistência na alegação, porque todos sabem que o sistema
não funciona, talvez o façam por outros motivos, como, por exemplo,
aproveitar-se da ignorância política e funcional das populações para, com
falsas promessas, tomarem o poder e nele se perpetuarem. Mas no fundo há uma
grande dose de ignorância nessa meia dúzia de governantes resgatadores de
filosofias falidas e mortas: As populações aprendem como aquelas crianças que
passaram pela primeira vez em frente às estátuas, que hoje sabem que não
representavam heróis, mas opressores com certa dose campônia de credulidade
ignota por falta de educação.
Inauguraram uma estátua dedicada
a um ET – Extra Terrestre – numa povoação. Ninguém sabe qual o nome do ET, não
fez nada por ninguém, não se sabe de que planeta veio. O presidente foi à
inauguração mesmo antes de estar acabada. Na América do Sul, além da ignorância campônia
que os da cortina de ferro demonstravam, deve creditar-se um certo grau de
demência ou exagero na demonstração de imbecilidade como meio de expressão de
igualdade entre governo e povo, assim como quem diz: “Vejam! Sou igual a vocês
e vos entendo”. Um dia ainda dirão que vivemos numa cortina de cana caiana na
longa fila do armazém do estado para troca de cupons, sabendo perfeitamente que
em palácio se comem lagostas do Maranhão com molho de castanhas de caju e calda
de chocolate. Sem charutos porque é proibido fumar. Mas com pó do bom. Da
Bolívia e do Afeganistão.
® Rui Rodrigues