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quinta-feira, 13 de novembro de 2014

A Cortina de Cana Caiana


A Cortina de Cana Caiana



Um dia, nem se sabe que parte da sociedade, mas pequena por certo, sem perguntar nada ao povo, enfiou a mão nas verbas públicas e resolveu fazer uma estátua em homenagem a um sujeito “muito importante”. Uma não... Várias. Encheram o país de estátuas. Das verbas públicas, saiu o dinheiro para o bronze, pagar as fundições, os moldes. O artista ganhou uma casa para morar, porque não tinha nenhuma, duas caixas de vodka e carnês com cupons para um ano. Os cupons garantiam a parca comida, dois pares de sapatos dos que estivessem disponíveis, dois casacos de inverno e meia dúzia de roupa além de sabonetes e lâminas de barbear, coisa quase desnecessária porque era moda usar barba grossa.

Várias gerações de crianças passaram sua primeira vez em frente às estatuas do herói e perguntaram quem era. Em dois segundos lhes explicavam quem tinha sido. Era o tempo de dizer que ele, o herói, lhes trouxera a liberdade, a igualdade, o bem estar. Da segunda vez que passavam à frente da estátua, e a partir daí sempre que passavam, se questionavam que liberdade era aquela, que igualdade era essa, porque o bem estar era tão pouco, difícil e deprimente. Não tinham nada na verdade, e corria notícia de que no mundo lá fora uma imensa maioria tinha quase tudo, e embora houvesse desigualdades, pelo menos perante a lei todos eram iguais, e podiam sair do país quando quisessem, viajavam, tinham automóveis. Quem contava a vida lá fora – sempre em sussurros e em confidência - eram os atletas que competiam em jogos internacionais, jornalistas, funcionários em férias de embaixadas no exterior, gente privilegiada cujas funções lhes permitiam saber do “mundo lá fora” por detrás do muro de concreto e arame farpado com postos militares de vigia, por detrás da cortina de ferro. Havia outra cortina, mas era em outro país. Era de bambu.

Das ultimas vezes que essas crianças viram essas estátuas, estavam sendo derrubadas. As próprias crianças de antigamente, agora feitos adultos, as derrubavam. As estátuas incomodavam. O herói os enganara. E os enganara tanto que até a bandeira do país foi lavada das cores e uma velha bandeira, surrada, usada antes do grande movimento de libertação, de igualdade teve suas cores reavivadas e tremula agora nos prédios públicos. A era da grande mentira terminara. O herói agora já estava até esquecido. O mundo lá de fora triunfara a grande guerra fria. Hoje, tal como antes no regime do grande camarada, havia os protegidos do sistema e os não protegidos. Mas a diferença era muito sutil. No tempo do grande camarada, havia proteção sim, e a divisão entre os que passavam melhor e os que passavam pior eram fruto do companheirismo protetor. Quem era protegido do grande partido passava bem. Quem não era passava pior. Nem os empregos se conseguiam por mérito, mas por “confiança”. No mundo vencedor, o que ficava para além dos muros, das cortinas, a diferença era mais uma questão de capacidade Uns tinham, outros não. Diplomados sem mérito não tinham futuro. Diplomas de formação eram atestados de capacidade que deveria ser comprovada na prática.

E o mundo mudou. Mudou, mas não completamente. Na América do Sul, vinte e poucos anos depois, há grupos de “camaradas” e “companheiros” que querem resgatar os tempos do Grande Camarada, da Revolução, sem sequer se perguntarem porque mais de noventa países no mundo a abandonaram e derrubaram as estátuas. Marx, Lênin, Stalin, são figuras históricas de quem se fala em salas de universidades por um par de aulas e isso é tudo o que resta de sua lembrança. Seus sistemas – ou os sistemas baseados em suas filosofias, não funcionam. São como relógios sem corda, sem baterias que nem o tempo marcam mais. A América do Sul é o único país que quer resgatar o passado ou, por falta de consistência na alegação, porque todos sabem que o sistema não funciona, talvez o façam por outros motivos, como, por exemplo, aproveitar-se da ignorância política e funcional das populações para, com falsas promessas, tomarem o poder e nele se perpetuarem. Mas no fundo há uma grande dose de ignorância nessa meia dúzia de governantes resgatadores de filosofias falidas e mortas: As populações aprendem como aquelas crianças que passaram pela primeira vez em frente às estátuas, que hoje sabem que não representavam heróis, mas opressores com certa dose campônia de credulidade ignota por falta de educação.

Inauguraram uma estátua dedicada a um ET – Extra Terrestre – numa povoação. Ninguém sabe qual o nome do ET, não fez nada por ninguém, não se sabe de que planeta veio. O presidente foi à inauguração mesmo antes de estar acabada.  Na América do Sul, além da ignorância campônia que os da cortina de ferro demonstravam, deve creditar-se um certo grau de demência ou exagero na demonstração de imbecilidade como meio de expressão de igualdade entre governo e povo, assim como quem diz: “Vejam! Sou igual a vocês e vos entendo”. Um dia ainda dirão que vivemos numa cortina de cana caiana na longa fila do armazém do estado para troca de cupons, sabendo perfeitamente que em palácio se comem lagostas do Maranhão com molho de castanhas de caju e calda de chocolate. Sem charutos porque é proibido fumar. Mas com pó do bom. Da Bolívia e do Afeganistão.

® Rui Rodrigues

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