O mendigo [1]
ilustrado
Não sabem o que é o inferno
de passar todas as semanas três dias seguidos sem dormir, trabalhando numa
REVAMP. Revamp é a reforma contínua de uma fábrica sem que ela pare de
produzir: Os trabalhos se realizam nas interrupções para manutenção e aquela
era enorme, lá em Cubatão numa época em que era o esgoto do mundo, de tão
poluída. Por vezes, se os trabalhos de reforma demorassem até um dia mais,
podia negociar-se com a produção da fábrica esse dia a mais para trocar outros
equipamentos até então não previstos, mas planejados como alternativas.
Trabalhar sem cochilar, sem tomar qualquer remédio ou droga exige força de
vontade, determinação, e a atenção têm que ser redobrada para que não nos
aconteça nada de grave subindo e descendo escadas de marinheiro, passando por
debaixo de equipamentos, aspirando gases letais ou tocando num cabo energizado
desencapado. O alívio vinha quando ia para casa descansar, completamente
arrebentado. Havia, a meu nível, quem fosse para casa dormir, e voltasse de
madrugada. Passava a mão numa estrutura suja de fuligem e graxa e passava no
rosto. Mas os olhos não estavam fundos, havia 450 operários que nem os viam
pelo empreendimento, testemunhas caladas porque em nada lhes atrapalhava a
vida. Um dia foram contar que o sujeito roubava rolos de fios de cobre e cabos
além de outros utensílios. Descobriram até a loja onde eles vendiam esses
artigos em Minas Gerais. A Revamp era em Santos, mas eu já não estava mais na
REVAMP... Saí quando faltava apenas 30 dias para terminar. Meu saco havia
torrado. O salário não era condizente. Mandei a empresa e os filhos da puta
tomarem no cu e desapareci na noite a bordo de um ônibus com minha mulher e
meus dois filhos. O que mais me marcou em Santos não foi a obra nem o inferno
que era. Foi uma notícia de radio que ouvi sobre uma reportagem de uma emissora
santista, sobre a população de mendigos na cidade. Em alguns fins de semana que
tive que passar por lá, num apartamento alugado pela empresam de frente para a
praia, e que quase não usava, aproveitei para bater um papo com uns mendigos.
Nesses dias receberam uma gorda ajuda. Há algo que me identificava com eles: A
dúvida do que vale ou não a pena, mas só eles tinham certezas. Desses, conto a
história de um.
A barra na gata[2] era
pesada e eu dividia o apartamento de Santos com um boliviano. O boliviano não
entendia nada de montagem metalo-mecânica, não sabia como dimensionar uma solda
nem como calcular uma treliça. A maioria dos engenheiros comia na mão dos
encarregados e mestres. Naqueles tempos já de final de ditadura, as admissões
se faziam ora por indicação, ora por imposição “comercial” de mandados de
soldados de patente, mesmo que o diploma de engenheiro fosse comprado,
falsificado. Eu me garantia com as cadeiras de Estruturas Metálicas e de
Mecânica, do meu curso de engenheiro civil da Fluminense. O boliviano que dava
suas saídas para descansar mesmo durante o dia, só tinha duas coisas boas: Não
me roubava nada e se preocupava comigo, aconselhando-me a não trabalhar tanto. Eu
entendia o seu ponto de vista. Um dia, desabafei com ele quando saí da Usina,
numa sexta feira em que tinha que fazer plantão no sábado e no domingo. Estes
plantões exigiam apenas olhos atentos e percorrer todas as instalações para
verificar se tudo estava em ordem, porque somente havia pessoal da limpeza e
algum pessoal de escritório colocando seu trabalho em dia. Disse ao boliviano:
- Bolívar... Estou de saco
cheio e vou sair desta merda...
- Não faça isso... Disse-me
sorrindo. Tem família, não tem?
- Claro que tenho.
- Então pensa na tua
família. Eu tenho a minha em Santa Cruz de la Sierra que já não vejo há três
meses. É duro, mas o sustento está garantido. E vou te dizer uma coisa... Se
você sair essa obra pára. Nunca vi ninguém como você ter moral para ir ao
puteiro de Kombi, tirar o encarregado de cima da garota no motel, e trazer o
cara para trabalhar às duas da manhã... O que você deveria fazer era pedir
aumento de salário. Agora era a hora.
Não me lembro do que lhe
respondi, mas lembro-me do que me disse em seguida.
- Vem comigo... Vou te
apresentar a um amigo que fiz aqui em Santos.
E me levou duas quadras
abaixo, em plena avenida até chegarmos perto de um bar cheio de gente. Pela
calçada, havia mendigos. Poucos, mas havia. Um deles abriu um sorriso quando
viu o boliviano e olhou depois para mim, como quem diz: Quem é este? A barba
estava crescida, maltratada, seu cabelo era gorduroso e poeirento, a pele dava
sinais de crostas escuras de sujeira. Trazia um pulôver que já deveria ter sido
moda e agora já era apenas quente. Os pés descalços, a bainha da calça lustrosa
cheia de fiapos. Ele mesmo era um fiapo de uma coisa muito grande chamada
humanidade. Seu cenho se franziu imediatamente, adotando o olhar de cachorro
pidão, e pediu:
- Bolívar... Tem um
trocadinho[3]
hoje para o amigo? Tem?
Bolívar olhou para mim,
enfiou a mão no bolso e tirou uma nota que já tinha preparada. Estendeu-lha
dizendo para ter cuidado e não ir gastar em cachaça. O mendigo sorriu. Difícil
não beber com uma vida daquelas. Bolívar tirou do bolso um sanduíche embrulhado
em papel celofane e deu-lho também.
Não lembro dos detalhes
iniciais a seguir, mas a conversa se estendeu. Fomos parar num banco de calçada
da avenida, de frente para a praia. O mendigo nos contou a sua historia.
Tinha sido casado. Tinha
filhos, não sabia onde a família estava nem queria saber. Por vezes sentia
saudades das crianças que já eram adultos, e suas lembranças eram sempre de
quando eram pequenas. Nem queria imaginá-las adultas. Trabalhara feito um filho
da puta como médico até os quarenta e cinco anos. Agora vivia de esmolas há 12
anos, desde então.
- E o que o fez largar a
profissão? – Perguntei.
- Olha... Uma série de
coisas... Nada que acontece na vida se deve a uma causa só. É como desastre de
automóvel. Só estar bêbado não produz desastre. É preciso que venha outro
distraído perto de você, ou um poste ou gente no caminho e os freios façam o
carro parar no tempo certo. Foram muitas coisas que se sucederam. Casei e não
consegui entrar em sintonia com minha mulher. Pelas minhas contas o dinheiro
deveria sobrar, mas ela, que cuidava da casa, sempre dizia que não dava. Quanto
menos dava a grana, mais plantões eu fazia, e quantos mais plantões fazia, mais
tempo ficava longe de casa. Volta e meia ela me dizia que eu não ia para casa
porque tinha que ter algum caso no trabalho ou fora dele. Não era verdade. Eu
chegava cansado, e ao ouvir críticas injustas, eu perdia a vontade de transar. Ela
se aproveitava disso para me criticar e me fazer perder ainda mais a vontade.
Ela estava jogando na relação e eu não. Depois vim a saber que ela tinha não só
um amante, como também já tivera vários. Mas quando eu soube disso, já tinha
perdido a vontade de continuar trabalhando para fazer mais patrimônio que teria
que dividir com ela, os filhos já estavam com a cabeça feita pela mãe que
sempre dizia que eu estava errado, ou que o que eu dizia não tinha importância.
Suas palavras eram sempre como facas. Agindo dessa forma ela tinha sempre a sua
“consciência” tranqüila, de que o cafajeste era eu. As crianças também achavam
embora não me dissessem nada, mas quando eu lhes pedia para fazerem alguma
coisa, notava-lhes uma inconformidade ou um questionamento nos olhares
dispersivos. Todos pensavam que me enganavam. Claro que quando a clínica em que
eu trabalhava me pôs na rua, eu já estava preparado. Lutar para quê? Só para
mim? Ora... Só para mim, a rua era o bastante...
Ficamos todos em silêncio
por uns momentos, questionando-nos a nós próprios sobre o que era a vida e a motivação
para vivê-la ou torná-la muito extensa. Sobretudo,
e depois conferimos, tanto Bolívar quanto eu pensávamos não na mulher e filhos
porque tudo estava bem conosco, assim esperávamos e tínhamos confiança nisso. O
que nos preocupava era o tal do “pontapé na bunda” da clínica, no caso do
médico mendigo, ou da gata onde trabalhávamos. Isso poderia acontecer a
qualquer instante. Certamente que nos relatórios escritos ou verbais diários, o
mérito do trabalho deveria ir para os caras que passavam a noite em casa, e
pela madrugada passavam fuligem no rosto. Esses caras falam muito e trabalham
pouco. São espertos. Detectam uma falha mesmo sem importância e a relatam aos
superiores. Inquirido, o cara que trabalha duro e eficientemente, mas não sabe
disso, pode ser apanhado sem choro nem vela. Eu não tinha falha e os 450 homens
e algumas poucas mulheres que trabalhavam sob minhas ordens poderiam atestar o
meu trabalho, e o atestariam se inquiridos, mas esse dia poderia chegar assim
mesmo. Quando cheguei a Cubatão, os salários estavam atrasados assim como as
horas extras. Foi um trabalho duro conseguir que os pagassem, mas consegui. Sempre
se lembravam disso. Companhias que trabalham para o governo têm sempre as
costas quentes com a justiça do trabalho. Quando as obras com o governo
terminam, têm que enfrentar o mercado privado, e então se deparam com um enorme
problema: Não estão preparadas para enfrentar a concorrência, para trabalhar de
forma mais honesta.
Não sei o que foi feito do
bom Bolívar, do bom mendigo que ainda vi mais um par de vezes tentando
convencê-lo a voltar para a ativa, e só muito mais tarde soube que a gata tinha
encerrado suas atividades logo que o mercado mudou do estado para a iniciativa
privada.
Mas eu já tinha saído há
muito tempo e já estava na Colômbia. Quando a gata investiu numa empresa de
Gerenciamento de Construção, também não estava preparada e também encerrou as
portas mais um par de anos depois.
A vida constrói-se com
atitudes do dia a dia, em torno do pilar de vida que somos nós próprios. Nada
pode cair. Nem nós nem a família, embora sempre haja um “pobre” dentro de cada
um de nós, até dos mais ricos. E, se viver com a família, for de todo
impossível, então que se abandone o ninho quando todos estiverem aptos para
voar.
© by Rui Rodrigues
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