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quinta-feira, 13 de junho de 2013

O mendigo ilustrado


 Papo particular com Drummond
O mendigo [1] ilustrado


Não sabem o que é o inferno de passar todas as semanas três dias seguidos sem dormir, trabalhando numa REVAMP. Revamp é a reforma contínua de uma fábrica sem que ela pare de produzir: Os trabalhos se realizam nas interrupções para manutenção e aquela era enorme, lá em Cubatão numa época em que era o esgoto do mundo, de tão poluída. Por vezes, se os trabalhos de reforma demorassem até um dia mais, podia negociar-se com a produção da fábrica esse dia a mais para trocar outros equipamentos até então não previstos, mas planejados como alternativas. Trabalhar sem cochilar, sem tomar qualquer remédio ou droga exige força de vontade, determinação, e a atenção têm que ser redobrada para que não nos aconteça nada de grave subindo e descendo escadas de marinheiro, passando por debaixo de equipamentos, aspirando gases letais ou tocando num cabo energizado desencapado. O alívio vinha quando ia para casa descansar, completamente arrebentado. Havia, a meu nível, quem fosse para casa dormir, e voltasse de madrugada. Passava a mão numa estrutura suja de fuligem e graxa e passava no rosto. Mas os olhos não estavam fundos, havia 450 operários que nem os viam pelo empreendimento, testemunhas caladas porque em nada lhes atrapalhava a vida. Um dia foram contar que o sujeito roubava rolos de fios de cobre e cabos além de outros utensílios. Descobriram até a loja onde eles vendiam esses artigos em Minas Gerais. A Revamp era em Santos, mas eu já não estava mais na REVAMP... Saí quando faltava apenas 30 dias para terminar. Meu saco havia torrado. O salário não era condizente. Mandei a empresa e os filhos da puta tomarem no cu e desapareci na noite a bordo de um ônibus com minha mulher e meus dois filhos. O que mais me marcou em Santos não foi a obra nem o inferno que era. Foi uma notícia de radio que ouvi sobre uma reportagem de uma emissora santista, sobre a população de mendigos na cidade. Em alguns fins de semana que tive que passar por lá, num apartamento alugado pela empresam de frente para a praia, e que quase não usava, aproveitei para bater um papo com uns mendigos. Nesses dias receberam uma gorda ajuda. Há algo que me identificava com eles: A dúvida do que vale ou não a pena, mas só eles tinham certezas. Desses, conto a história de um.

A barra na gata[2] era pesada e eu dividia o apartamento de Santos com um boliviano. O boliviano não entendia nada de montagem metalo-mecânica, não sabia como dimensionar uma solda nem como calcular uma treliça. A maioria dos engenheiros comia na mão dos encarregados e mestres. Naqueles tempos já de final de ditadura, as admissões se faziam ora por indicação, ora por imposição “comercial” de mandados de soldados de patente, mesmo que o diploma de engenheiro fosse comprado, falsificado. Eu me garantia com as cadeiras de Estruturas Metálicas e de Mecânica, do meu curso de engenheiro civil da Fluminense. O boliviano que dava suas saídas para descansar mesmo durante o dia, só tinha duas coisas boas: Não me roubava nada e se preocupava comigo, aconselhando-me a não trabalhar tanto. Eu entendia o seu ponto de vista. Um dia, desabafei com ele quando saí da Usina, numa sexta feira em que tinha que fazer plantão no sábado e no domingo. Estes plantões exigiam apenas olhos atentos e percorrer todas as instalações para verificar se tudo estava em ordem, porque somente havia pessoal da limpeza e algum pessoal de escritório colocando seu trabalho em dia. Disse ao boliviano:

- Bolívar... Estou de saco cheio e vou sair desta merda...
- Não faça isso... Disse-me sorrindo. Tem família, não tem?
- Claro que tenho.
- Então pensa na tua família. Eu tenho a minha em Santa Cruz de la Sierra que já não vejo há três meses. É duro, mas o sustento está garantido. E vou te dizer uma coisa... Se você sair essa obra pára. Nunca vi ninguém como você ter moral para ir ao puteiro de Kombi, tirar o encarregado de cima da garota no motel, e trazer o cara para trabalhar às duas da manhã... O que você deveria fazer era pedir aumento de salário. Agora era a hora.
Não me lembro do que lhe respondi, mas lembro-me do que me disse em seguida.

- Vem comigo... Vou te apresentar a um amigo que fiz aqui em Santos.

E me levou duas quadras abaixo, em plena avenida até chegarmos perto de um bar cheio de gente. Pela calçada, havia mendigos. Poucos, mas havia. Um deles abriu um sorriso quando viu o boliviano e olhou depois para mim, como quem diz: Quem é este? A barba estava crescida, maltratada, seu cabelo era gorduroso e poeirento, a pele dava sinais de crostas escuras de sujeira. Trazia um pulôver que já deveria ter sido moda e agora já era apenas quente. Os pés descalços, a bainha da calça lustrosa cheia de fiapos. Ele mesmo era um fiapo de uma coisa muito grande chamada humanidade. Seu cenho se franziu imediatamente, adotando o olhar de cachorro pidão, e pediu:

- Bolívar... Tem um trocadinho[3] hoje para o amigo? Tem?

Bolívar olhou para mim, enfiou a mão no bolso e tirou uma nota que já tinha preparada. Estendeu-lha dizendo para ter cuidado e não ir gastar em cachaça. O mendigo sorriu. Difícil não beber com uma vida daquelas. Bolívar tirou do bolso um sanduíche embrulhado em papel celofane e deu-lho também.
Não lembro dos detalhes iniciais a seguir, mas a conversa se estendeu. Fomos parar num banco de calçada da avenida, de frente para a praia. O mendigo nos contou a sua historia.
Tinha sido casado. Tinha filhos, não sabia onde a família estava nem queria saber. Por vezes sentia saudades das crianças que já eram adultos, e suas lembranças eram sempre de quando eram pequenas. Nem queria imaginá-las adultas. Trabalhara feito um filho da puta como médico até os quarenta e cinco anos. Agora vivia de esmolas há 12 anos, desde então. 
- E o que o fez largar a profissão? – Perguntei.
- Olha... Uma série de coisas... Nada que acontece na vida se deve a uma causa só. É como desastre de automóvel. Só estar bêbado não produz desastre. É preciso que venha outro distraído perto de você, ou um poste ou gente no caminho e os freios façam o carro parar no tempo certo. Foram muitas coisas que se sucederam. Casei e não consegui entrar em sintonia com minha mulher. Pelas minhas contas o dinheiro deveria sobrar, mas ela, que cuidava da casa, sempre dizia que não dava. Quanto menos dava a grana, mais plantões eu fazia, e quantos mais plantões fazia, mais tempo ficava longe de casa. Volta e meia ela me dizia que eu não ia para casa porque tinha que ter algum caso no trabalho ou fora dele. Não era verdade. Eu chegava cansado, e ao ouvir críticas injustas, eu perdia a vontade de transar. Ela se aproveitava disso para me criticar e me fazer perder ainda mais a vontade. Ela estava jogando na relação e eu não. Depois vim a saber que ela tinha não só um amante, como também já tivera vários. Mas quando eu soube disso, já tinha perdido a vontade de continuar trabalhando para fazer mais patrimônio que teria que dividir com ela, os filhos já estavam com a cabeça feita pela mãe que sempre dizia que eu estava errado, ou que o que eu dizia não tinha importância. Suas palavras eram sempre como facas. Agindo dessa forma ela tinha sempre a sua “consciência” tranqüila, de que o cafajeste era eu. As crianças também achavam embora não me dissessem nada, mas quando eu lhes pedia para fazerem alguma coisa, notava-lhes uma inconformidade ou um questionamento nos olhares dispersivos. Todos pensavam que me enganavam. Claro que quando a clínica em que eu trabalhava me pôs na rua, eu já estava preparado. Lutar para quê? Só para mim? Ora... Só para mim, a rua era o bastante...
Ficamos todos em silêncio por uns momentos, questionando-nos a nós próprios sobre o que era a vida e a motivação para vivê-la ou torná-la muito extensa.  Sobretudo, e depois conferimos, tanto Bolívar quanto eu pensávamos não na mulher e filhos porque tudo estava bem conosco, assim esperávamos e tínhamos confiança nisso. O que nos preocupava era o tal do “pontapé na bunda” da clínica, no caso do médico mendigo, ou da gata onde trabalhávamos. Isso poderia acontecer a qualquer instante. Certamente que nos relatórios escritos ou verbais diários, o mérito do trabalho deveria ir para os caras que passavam a noite em casa, e pela madrugada passavam fuligem no rosto. Esses caras falam muito e trabalham pouco. São espertos. Detectam uma falha mesmo sem importância e a relatam aos superiores. Inquirido, o cara que trabalha duro e eficientemente, mas não sabe disso, pode ser apanhado sem choro nem vela. Eu não tinha falha e os 450 homens e algumas poucas mulheres que trabalhavam sob minhas ordens poderiam atestar o meu trabalho, e o atestariam se inquiridos, mas esse dia poderia chegar assim mesmo. Quando cheguei a Cubatão, os salários estavam atrasados assim como as horas extras. Foi um trabalho duro conseguir que os pagassem, mas consegui. Sempre se lembravam disso. Companhias que trabalham para o governo têm sempre as costas quentes com a justiça do trabalho. Quando as obras com o governo terminam, têm que enfrentar o mercado privado, e então se deparam com um enorme problema: Não estão preparadas para enfrentar a concorrência, para trabalhar de forma mais honesta.

Não sei o que foi feito do bom Bolívar, do bom mendigo que ainda vi mais um par de vezes tentando convencê-lo a voltar para a ativa, e só muito mais tarde soube que a gata tinha encerrado suas atividades logo que o mercado mudou do estado para a iniciativa privada.

Mas eu já tinha saído há muito tempo e já estava na Colômbia. Quando a gata investiu numa empresa de Gerenciamento de Construção, também não estava preparada e também encerrou as portas mais um par de anos depois.

A vida constrói-se com atitudes do dia a dia, em torno do pilar de vida que somos nós próprios. Nada pode cair. Nem nós nem a família, embora sempre haja um “pobre” dentro de cada um de nós, até dos mais ricos. E, se viver com a família, for de todo impossível, então que se abandone o ninho quando todos estiverem aptos para voar.

© by Rui Rodrigues















[1] Os nomes são fictícios para evitar constrangimentos.
[2] “Gata” era o nome dado às empresas que nos contratavam... Trabalhava-se na gata. Minha gata era a Montreal Engenharia, na REVAMP da Cosipa.
[3] Trocadinho, notas pequenas, moedas, de pouco valor como se fossem um “troco” de alguma compra. 

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