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sábado, 7 de setembro de 2013

A lenda da Lagoa do Feitiço

A lenda da Lagoa do Feitiço


Rio de Janeiro, em tempos de imprefeitura e despresidencialidade é algo que brada aos céus, nos faz tomar banhos a fio para tirar uma ziguizeira inexistente, porque acabamos por nos sentir sujos mesmo logo depois do primeiro banho da manhã. É o calor quando falta energia elétrica, ou bueiro explode na rua em que moramos, ou o caminhão do lixo não aparece para recolher o que jogamos fora. Então vêm as moscas que nem nos cumprimentam nem pedem licença, apropriam-se do ambiente e ficam zunindo feito elétrons em torno de invisíveis núcleos atômicos numa zoeira de gozação implícita. Até as moscas riem de nossos impostos desperdiçados, amaldiçoados. Sem ar condicionado e sem ventiladores (se temos ar condicionado para que precisaríamos de ventiladores?) o calor aumenta e se torna berço para a procriação de moscas que transam desprevenidamente na frente de todos, num porco atentado ao pudor. Transam em qualquer lugar como se fosse o primeiro dos últimos dias de suas vidas  Nem eu com a Clarinha naquelas noites em que fechamos o caixa do mês e ficamos no bar até bem depois que os empregados saem, conseguimos tal performance. O suor úmido é insuportável e tudo gruda na nossa pele. Mas convenhamos que no calor os órgãos ficam mais úmidos e tornam o prazer mais gostoso.

Estávamos funcionando à luz de velas e de um lampião sobre o granito carijó do balcão onde alguns clientes mais apressados tomavam, em pé, seu chopp de serpentina. Chopp gelado, que lhes descia agradavelmente pela garganta e um esgar de contração num arregalar de olhos, de tão gelado que estava. Depois se ouvia o infalível e prolongado  “háaa.....” de puro prazer. Alguns clientes passavam o copo longo de chopp pela testa para refrescar. Num desses “ah..” a porta do bar se abriu com um estrondo, o vento entrou num rompante avassalador e o bafo morno e úmido da rua trouxe respingos de chuva. Um clarão cortou os ares e em seguida um trovão de ensurdecer como uma chicotada divina se abateu sobre os olhares esgazeados dos clientes. Durante momentos ficamos cegos e surdos, e depois amedrontados. Um sujeito enorme estava na porta de braços abertos olhando em minha direção. O seu corpo literalmente tapava a porta de entrada do bar. Um segundo relâmpago iluminou a rua lá fora, iluminando o sujeito enorme na porta, ainda de braços abertos como se fosse um Jesus Cristo de vitral de Igreja presbiteriana.  Na mesma intensidade do trovão que se seguiu, ouvi-se sua voz gritando:

- Portuga feladaputa... Branquela de merda... Dá-me um abraço que estou com saudades...

Fez-se silêncio no bar. O meu barman apanhou um copo e levantou a mão pronto para lho atirar no meio da testa, mas quando ouviu a palavra “abraço” e “ saudades”, sorriu, depois caiu na gargalhada e baixou o copo começando a limpá-lo com o pano que sempre usa pendurado na cintura, enquanto meneava a cabeça de um lado para o outro. Nunca nenhum imbecil tinha entrado no meu bar me chamando de feladaputa e branquela. Aquilo era novidade no bar.
Imediatamente me caiu a ficha... Era o Carlos Calunga, um brasuca, amigo de minha infância que de certa forma me acompanhava na vida desde Lisboa, passando por Angola, e pelo mundo. Era jornalista internacional de um grande periódico inglês.   
- Crioulo viado, filho de uma égua... – respondi-lhe... E nos encontramos a meio do caminho entre o balcão e a porta de entrada, esquecendo raios e trovões, envolvendo-nos num grande abraço.
A vozearia do bar voltou ao normal e sentamo-nos numa mesa. Como por encanto, a luz voltou e começamos a falar de nossos encontros, reavivando memórias, completando-nos as lembranças com detalhes que um de nós esquecera. Então Carlos falou sobre Angola.
- E aí, cara...Lembra em Angola quando fomos pescar na Lagoa do Feitiço? (E deu uma sonora gargalhada)... Lá no Uíge...

Eu lembrava. Como não?... A lagoa fica na comuna da Aldeia Viçosa pertencente ao município de Dange Quitexe, a meio caminho entre Dambi e Ngola. Aquelas terras já tinham pertencido ao Reino do Congo antes da chegada dos portugueses. Calunga me lembrou do dia em que lhe falei que tinha que ir lá e ele me acompanhou. Aproveitaria a carona para fazer uma reportagem sobre o lago. Pelo caminho contou-me a história do lago. Reza a lenda que quem toca nas águas da lagoa desafia Ikú [1]. Ignorante, eu, ri quando kalunga mencionou este Orixá, e eu nem sabia que era um Orixá. Representa a morte. Depois que soube, respeitei. Não que eu acreditasse, confesso, mas respeitei. As populações que conhecem a lenda nem se atrevem a chegar perto da lagoa do Feitiço, e o acesso só é permitido aos habitantes que vivem entre Dambi e Ngola. Basta falar na Lagoa do Feitiço e as pessoas tremem, viram o rosto e o corpo, baixam a cabeça.


Os raios continuavam do lado de fora do Bar do Chopp Grátis. Ouvidos atentos, das mesas mais próximas cadeiras se arrastaram e outros clientes escutavam nossa conversa sobre a Lagoa do Feitiço, enquanto bebericavam suas cervejas, suas caipirinhas. Alguns estavam assustados.

Kalunga continuou a descrever a Lenda:

- O Uíge é um lugar muito especial, porque o povo de lá acredita muito em mitos. Sobre a lagoa dizem que nela vivem sereias. Ali relativamente perto, a população rural dos Tucôkwe proíbe as crianças e adolescentes de irem muito cedo, pela manhã, ou muito pela tarde até ao rio Iwiji ou até a lagoa Citende[2] porque, segundo dizem, Samutambyeka [3]uma figura enorme maior que os eucaliptos mais altos, costuma beber muita água nesses períodos evitando sempre a aproximação de pessoas enquanto não estiver saciado. E enquanto bebe, vai soprando pelas narinas e pela própria boca jatos de água que se transformam em nevoeiro. Quem se aproxima e vê o nevoeiro, sabe que Samutambyeka está por perto bebendo sua água.


Mais relâmpagos lá fora. Rostos se voltaram para as janelas e para a porta que voltara a abrir-se. Era um casal de clientes, mas por fração de segundos pareciam mais os Yikixikixi ou espíritos das águas, forças invisíveis que sempre auxiliam e acompanham Samutambyeka. Quando as crianças vêm o Cezangombe [que normalmente aparece pelas tardes e quando chove, perto dos rios e lagoas, já sabem quem está por perto: O temível emissário da morte, a própria morte, Samutambyeka e os maus espíritos. Um velho freqüentador do bar, com o estômago meio inchado de cerveja, os lábios meio tortos com olhos de peixe morto, perguntou:

- Mas mesmo assim vocês foram pescar na lagoa? (Provavelmente ouvira nossa conversa desde o início)

- Fomos sim – Respondeu Calunga – Mas vocês não sabem ainda porque a Lagoa ganhou o nome de Lagoa do Feitiço. Foi um português que lhe deu o nome, e provavelmente incluiu sereias no feitiço do lago, porque sereias só aparecem no mar. O lugar onde existe a  lagoa era antes povoado. Havia no local uma aldeia chamada Ngungo Indua antes ainda da chegada dos portugueses ao Reino do Congo. Por essa época chegou na aldeia um homem idoso cheio de chagas que a aldeia desprezou. A duas crianças que o haviam tratado bem, o velho as avisou que a aldeia seria submersa, iria desaparecer sob uma nuvem negra. Então, logo que as crianças fugiram da aldeia, apareceu uma chuva muito fina que a pouco e pouco encheu o lugar submergindo a aldeia e criando a lagoa.  

Muitos anos depois, séculos, um português fazendeiro, chamado José Dinis se instalou em terras próximas à lagoa. Por essa altura, os nativos já sabiam do feitiço e o avisaram, mas ele não deu importância e usava as águas da lagoa como os fazendeiros costumam fazer, quer para beber, quer para lavar as roupas ou dar água ao gado. Então pessoas da família e trabalhadores começaram a morrer.  Foi então que José Dinis passou a chamá-la de “Lagoa do Feitiço”.
Desde então é preciso fazer alguns rituais para que o acesso esteja livre, e as autoridades religiosas tradicionais jogam vinho, champanhe, refrigerante e maruvo [5] em suas águas enquanto dizem palavras dirigidas aos tais espíritos os Yikixikixi.
- E a pescaria?  Voltou a perguntar o velho cliente, enquanto a porta do bar voltou a abrir-se com a tempestade que lá fora fazia balançar sinais de trânsito, impedia a visão do outro lado da rua como se uma enorme cortina de água desabasse sobre a cidade que começava a alagar. Muitos clientes sairiam do bar já meio “tocados”, chamando táxis por telefone, que demorariam a chegar.

- Pois é... (Calunga estava animado)... A pescaria. Nós, eu e o Portuga tínhamos combinado que sairíamos de noite para pescar sem que ninguém nos visse. Na verdade não acreditávamos na lenda. Pegamos o carro, um velho Renault de alavanca embutida no painel perto do antigo acendedor de cigarros, e chegamos na Lagoa por volta da uma da manhã. Acendemos um lampião e começamos a pescar. Por sorte levamos repelente de mosquito, mas mesmo assim ainda fomos mordidos por alguns. Quando estávamos começando a pescar ouvimos uns cantos agudos que logo identificamos com baleias, mas baleias não existiam na Lagoa. Seriam sereias se acreditássemos nelas, mas também não poderiam ser. Vimos então na beira do lago uns seres enormes que emitiam aqueles sons. Levamos um tal susto, apanhados que fomos de surpresa, que saímos correndo mata adentro até chegarmos ao carro.


A porta do bar voltou a abrir-se ao som de um raio de chicotada brilhante e sonoro quase juntamente com o  barulho do trovão. Todos os clientes olharam para a porta. Dois seres enormes exatamente iguais aos que tínhamos visto na Lagoa do Feitiço estavam agora na porta do Bar, emitindo os mesmos sons. Alguns clientes se agarraram uns aos outros. O meu barman agachou-se atrás do balcão e Carlos Calunga ria a bandeiras despregadas... As duas figuras na porta riam também, e entendi finalmente que meu amigo Carlos Calunga tinha-me “metido uma peça”, feito uma gozação, por duas vezes: No Uíge em Angola, e agora no meu bar, tudo combinado com dois amigos dele vestindo roupas esquisitas sobre “andas”, aqueles tocos de madeira em que subimos para ficarmos mais altos.

Carlos Calunga é um dos meus melhores amigos, e um gozador de primeira.


© Rui Rodrigues






[2] Fala-se Tchitende...
[3] Também chamado de Espírito Perdido.
[4] O arco-íris. Lê-se Tchezangombe.
[5] O Maruvo é uma bebida resultante da seiva das palmeiras (palmito, bordão ou matebeira).Muitas vezes ingerida já em estado de plena fermentação (que pode durar até 5 dias) quanto mais fermenta, mais aumenta a percentagem de álcool.Muito apreciada em Angola, sobretudo no Norte, onde tem funções sociais precisas, como a cerimônia do alambamento (cerimônia de noivado)  óbitos, no final de uma maka ou agradecimento ao voluntariado comunitário nas zonas rurais.

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