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segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Antiguidades - Feira da Ladra, Pulgas de Paris, Praça XV

Antiguidades - Velhos e velharias
Feira da Ladra – Pulgas de Paris - Praça XV

Antes que me crucifiquem, sou velho. Farei 69 anos em setembro do ano que vem, 2014, e não tenho problema algum em dizer que sou velho e não “idoso” ou que estou na “melhor idade”... Eufemismos e sinônimos que não tiram o conceito de que já passei a idade da juventude. E dizer que sou velho, não quer dizer que esteja faltando ao respeito comigo mesmo nem com ninguém. Significa apenas que conheço razoavelmente bem a língua portuguesa. Nada mais. Mas vamos ao que interessa...

Há coisas boas neste mundo. Aliás, este mundo está cheio de coisas boas além da experiência adquirida com a idade, claro. O problema maior é a falta de conhecimento, de vontade, de tomarmos para nós um pouco de tempo livre para apreciarmos tudo o que nos rodeia. São cheiros, comidas, perfumes, paisagens, amigos e amigas, conversas, lembranças. Ah!... Nada como boas lembranças em momentos de contemplação. Se gostar deste tipo de coisa, continue lendo e espero que lhe provoque lembranças que só você pode ter. São suas e não ocupam lugar, ninguém as pode roubar. Mas para isso é necessário ter “idade”. Sem idade não há como ter muitas lembranças para lembrar, a maioria dos objetos em feiras não lhe dizem absolutamente nada, porque nunca as usou, não sabe para que serviam nem se eram acessíveis ou apenas coisas de ricos. A propósito, peças antigas, de ricos, não se encontram em feiras como as que visitei: A da praça XV no Rio de Janeiro junto à estação das barcas Rio - Niterói, a Feira das Pulgas em Paris, e a Feira da Ladra em Lisboa. Vamos viajar...



Quem lembra, por exemplo, de um fogareiro a querosene? Naqueles tempos de 1950, cinco anos após o término da segunda guerra mundial, eram poucos os fogões, a maioria a lenha, havia limpa-chaminés, e muitos quartos alugados a famílias em Lisboa. Quem quisesse um pouco de privacidade, tinha que cozinhar nos quartos. Usava então um fogareiro a querosene como o que se vê na foto, e havia uma lâmina de metal com um fio duro de aço na ponta, para desentupir os furos de queima do querosene que entupiam constantemente com fuligem. Como eram feitos de cobre, era necessário polir constantemente. Nos dias de inverno, a sopa esfriava antes que se pudesse cozinhar as batatas que também esfriavam antes de fritar o bife. Foram de muito uso no pós-guerra. Depois vieram os fogões a gás, em botijão ou encanado. Esquentaram muita água para colocar dentro de botijas para aquecer os lençóis frios no inverno, porque a maioria esmagadora das casas não tinha calefação.


E quem se lembra da velha vitrola, que tocavam velhos discos de vinil de 45 ou 78 rotações por minuto (RPM) com selo “Polidor” ou “His master voice”, aquele do cãozinho sentado de frente para um aparelho desses? Podem ainda ser encontrados, alguns ainda tocam, mas o som nos parece horrível, saído de túnel do tempo com falta de graves, de estereofonia, com chiados e trancos. Isso porque já temos coisa muito melhor, mas naquele tempo fizeram a alegria de muita gente, embalaram muitos namoros ao luar, transas noturnas, mas não transmitiam notícias. Os rádios vieram com a segunda guerra mundial. Afinal, as guerras sempre servem para se descobrir alguma coisa de útil. Há rádios antigos que ainda funcionam, mas não têm nada da tecnologia moderna, e os modernos já saíram de moda. Já não se usam. Até nossos amigos duram por épocas. São raros os que nos acompanham até o final da vida, talvez porque saímos ou saíram de moda e agora usam novas tecnologias. Por vezes a vida nos empurra a mudar de lugar, de cidade, de país, e lá se ficam os amigos que em breve tempo acabam por esquecer-nos ou que acabamos por esquecê-los. Há que curtir as coisas e pessoas enquanto estão à disposição, não é?
Jarras de cerâmica, mas nenhuma original que seja da dinastia Ming.  Peças caríssimas como essas, só em leilões especiais, onde se dão lances de milhões. As feiras livres de antiguidades são feiras “populares”, onde raramente, mas acontece, se pode descobrir um pequeno “tesouro”. Antiguidades nos lembram histórias do passado, tesouros, nos fazem imaginar quem teria possuído aquelas peças que vemos, algumas de prata maciça que já ninguém quer, porque quando foram fabricadas não havia poluição, e atualmente é tanta que a prata fica negra rapidamente e há que limpar sempre, todas as semanas. Peças de ouro, nem tente comprar se por acaso encontrar á venda. Provavelmente serão falsas, porque ouro antigo é normalmente derretido: O desenho das peças saiu de moda, e broches, por exemplo, já não se usam. Mas ainda a propósito da imaginação de se encontrar tesouros em feiras de antiguidades, sempre me lembro de algumas revistas em quadrinhos, como as de Hergé, que até se encontram também à venda como “antiguidades”, e em especial aquela do “segredo do licorne”, em que Tin-Tin, o jovem jornalista herói, descobre uma miniatura de um galeão antigo, chamado justamente Licorne e o chifre se desprende deixando cair um mapa de tesouro enrolado. Spielberg fez um filme sobre esse tema, aliás, excelente.


Livros, mapas, revistas antigas, costumam ser vendidos em “sebos” espalhados pela cidade. Isto é, antigamente. Hoje são raros, mas ainda se encontram livros bons em feiras da ladra, das pulgas ou da Praça XV. E roupas há muitas, por todos os lados, juntamente com sapatos, chapéus, colares, relógios de pulso, um mundo de lembranças perdidas por uns, que outros encontram. Uma antiguidade numa residência, por menos que valha financeiramente, é sempre um troféu, sobretudo uma lembrança que nos lembra da precariedade do tempo, que passa, não volta, e leva tudo o que valia e já não vale mais a não ser para decoração. Costumes se perdem também com o desuso dos objetos. Basta prestar atenção na velha máquina de escrever, tão caras que foram no passado, servindo em departamentos de estado, em repartições públicas, datilografando penas e sanções, ordens de prisão justas e injustas, notícias de jornais, poemas de escritores, declarações de guerra, livros de Agatha Christie, Ellery Queen. Cartas de amor, algumas captadas por maridos ou mulheres traídos, contando sobre chapéus antigos deixados na janela, de forma estratégica para avisar se o marido ou os pais estavam ou não em casa. A traição faz parte do mistério, dos contos, dos objetos, da vida, é um molho especial como a pimenta, que tanto pode alegrar um jantar, como desarranjar os intestinos, um jogo. E nos objetos das feiras de antiguidades, há histórias de vida escondidas. 

Alguns objetos já foram guardados com carinho, outros vendidos sem que a família soubesse para pagar dívidas, outros já foram empenhados por várias vezes para que os donos se livrassem de sufoco financeiro, outros ainda foram roubados. Alguns dos santinhos de igreja foram, certamente, porque igrejas não são museus, não têm guardas na porta, e estão mais sujeitas ao vandalismo do dinheiro fácil, não de mérito. Aliás, dinheiro é coisa que todos queremos, independentemente de nossas preferências religiosas ou políticas. Dinheiro é um objeto de desejo até dos mais ferrenhos comunistas, que por falta dele, quando não está disponível, usam favores como moeda de troca. Logo após a queda do muro de Berlim, encontrava-se facilmente em Lisboa condecorações das forças armadas da Alemanha oriental, e russas, bonés, botas, fardas inteiras.
Ás vezes, pelos idos de 1957, eu ia a pé para o Liceu Gil Vicente, ou voltava a pé, normalmente nos dias em que não havia aulas pela tarde por um motivo ou por outro. Costumava parar num armazém de “ferro-velho” que pertencia a minha prima Alice, uma das minhas paixões em minha vida. Não era uma paixão sexual, porque ela era bem mais idosa, mas porque era uma pessoa fabulosa, simpática, do tipo que não fazia mal a uma mosca, se assustava com trovões e raios de tempestade, não podia ver sangue nem violência, e tinha a casa sempre arrumada. Por vezes dormia por lá, na Av. Pascoal de Melo, num quarto andar – os apartamentos eram de um por andar, daqueles que tinham um “interfone” de cobre ligando-o à portaria. Tirava-se uma tampa de um bocal na portaria, depois de tocar a campainha, e encostava-se o ouvido ao bocal para escutar: - Quem é? , e colocando a boca no bocal, dizia eu: - Sou eu, prima. Então ouvia um ”clac” e o portão se abria automaticamente. Era uma maravilha. Eu até gostava das sopas que ela fazia, sem sal, porque sofria da vesícula e da pressão alta, e ia-se cedo para a cama. A educação era germânica, e nem para conversar com minha prima Fernanda havia tempo depois do horário estabelecido para dormir. A cama era dos deuses, com edredom de penas de pato. Nunca vi o esqueleto de um pato em feiras de antiguidades, por mais que os patos sejam habitantes usuais deste planeta, e sirvam para tantas coisas úteis, ainda, nestes tempos modernos, cheios de coisas novas. Mas lá está. Não são raridades e por isso mesmo não estão à venda em feiras de antiguidades, e tenho que me perguntar quanto valeria eu se um dia me pusesse a mim mesmo à venda como raridade nessas feiras. Nada. Não valeria nada porque somos muitos os idosos e temos o defeito de sermos contemplativos, de analisar o passado, avaliar o presente e tentar mudar e adivinhar o futuro.

A raridade é o segredo da valorização.



© Rui Rodrigues 

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