Iludida desilusão ou o amor e a razão num
copo ?
Eram cerca das quatro da
tarde, o tempo estava nublado e não iria só. Peguei minha mochila, uma garrafa
de vinho, um queijo, pão, uma garrafa de água e no espaço que sobrou, a minha
gata Sarkye, cabeça para fora da mochila para apreciar a paisagem. Ela é um
animal sentimental e eu também. A diferença está no pelo dela que é muito mais
bonito do que a minha pele. Não fosse a roupa que uso, eu nu seria muito mais
impressionante do que ela que nem usa roupa, mas certamente menos natural do
que ela que não conhece tecnologia e tem saber limitado. Depende de quem olha
para quem, se eu para ela, se ela para mim. Um de nós estamos certos.
Fomos passear. Eu para
meditar, ela para dormir e curtir um sol ao meu lado, com seu faro curto
procurando algo que se mexesse e representasse perigo. Miaria e certamente eu
não daria importância a menos que fosse um cachorro. As onças que aqui
habitavam, outros animais muito mais parecidos comigo do que com ela, já as
tinham exterminado há muito. Animais não destroem a natureza, mas os animais
parecidos comigo destroem e muito. São mais animais que minha gata animal.
Ao pegar o copo e verter-lhe
o vinho, me ocorreu a primeira indagação: Porque não nos acertamos – na verdade
eu queria dizer porque é que eu não me acerto, mas isso não é característica
apenas minha, ou seria prerrogativa? – com as mulheres por muito tempo. Fiquei
pensando nisso enquanto olhava as ondas do mar. Eram ondas sucessivas umas
atrás das outras, sempre num ritmo de sete, como se fosse uma menorá, Não de
chamas do Eterno, mas de espumas semoventes encristadas em água. Água e espuma
juntas, inseparáveis. Tinha ficado casado por 31 anos, e nem antes nem depois
as mulheres duravam muito em minha vida. Muitas e várias explicações como
dezenas de menorás ardentes me ocorreram, de reminiscências dos livros
sagrados, do meu quotidiano, de livros de ontem de hoje e até de amanhã que
abordaram, abordam e abordarão o mesmo tema. Porque não nos acertamos para toda
a vida? E já ia no quarto copo, o pão pela metade, minha gata sem aviso de que
ficaríamos até o sol se por e sem ração, sem reclamar. Parece que os animais
entendem nossas necessidades e não reclamam, apenas se adaptam às
circunstâncias. Dei-lhe um pedaço de
queijo em resposta a um seu miado, como se fosse um rato. Ratos gostam de
queijo e Sarkye também, o que não faz dela um rato, assim como também não me
faz a mim, mas nós somos muito simplistas e lineares. Somos capazes de
identificar as pessoas por sua aparência sem nos aprofundarmos muito, ou o
necessário, em nosso íntimo. Vestiu como
puta, é puta. Desmunhecou, é viado. É o poder do “conhecimento”, típico de quem
não consegue reconhecer a diferença entre uma menorah e uma chanukiá [1],
com mais dois braços que a menorá.
A garrafa estava chegando ao
fim, o Sol poente era agora cor de salmão, misturado com tons de laranja e
rosa. Havia muitas mulheres numa praia vazia sem ninguém. Eram quase todas as
que passaram na minha vida, de algumas não me lembrava. Umas me chegaram sem
saber o que queriam, outras sem saber o que podiam querer, outras nada queriam,
outras ainda queriam querer mas não podiam. Algumas choravam, outras riam,
santa diversidade dentro da diversidade da natureza que somos. Uma infinidade
de sutilezas da vida, tão sutis que não costumamos enxergar o óbvio. Podemos
ser simples ou complicados que a vida jamais será alguma coisa muito simples, e
sempre acabamos por achar que são as mulheres ou nós mesmos que somos
complicados. Mas não, simples é a vida que complicamos porque somos assim
mesmo: Vida tentando aprender e apreender a vida, algo de que conhecemos muito
pouco. A simplicidade das palavras de nada adianta para um animalzinho
simpático carente e dependente como Sarkye que gosta de queijo como os ratos, e
entre nós, os outros animais, quanto mais simples as palavras, mais perguntas
costumam gerar. Não enxergamos o óbvio, o simples. Sempre pensamos que há algo
de mais complicado do que a simplicidade que assim perde o seu interesse como
mistério e ganha a importância de coisa complicada, elaborada, inteligente, mas
é exatamente o contrario, porque a simplicidade é a sublimação do complicado.
O pescador de bicicleta
estava passando agora no sentido inverso sempre olhando o mar. Talvez levasse
na bicicleta a sua tarrafa para a pesca da tainha, mas nunca o vi pescar. Na
minha simplista forma de pensar, cri que era um “olheiro” dos outros pescadores
que costumam visitar a praia, mas esses vêm com suas redes olhando as ondas
para ver se há tainhas nadando ao longo das ondas, buscando o seu plâncton
levantado pelo movimento dessas cristas espumosas. Lugar de tainha é no mar,
nas redes uma opção descuidada. Somos também descuidados tal como as tainhas,
mas não podemos reclamar: Somos tão animais quanto elas e há sempre redes em
nossas vidas, tentando capturar-nos. O coração é cego, a razão vê demasiado, e
nunca sabemos em que acreditar, se no coração ou na razão. Minha razão estava
num copo de vinho ao sabor das ondas do mar enquanto mastigava um pedaço de
queijo com pão, sem me preocupar com as redes do coração. Sempre acabamos por
ficar imunes, com aquele olhar tranqüilo que caracteriza o olhar da Sarkye, a
minha gata, que sabe perfeitamente o mundo em que vive, ela um simples animal,
eu um animal complicado. Nós que não sabemos, somos outros animais imberbes se
comparados com a gata. Alguns de nós raspamos os pelos do púbis, mas em que
isso muda as nossas vidas, senão pelo estereotipo cultivado por uma sucessão de
regras de beleza que surgem e desaparecem como ondas de uma menorá aquosa?
Mas porque razão sempre me
vem uma comparação com a menorá divina? Porque o amor é uma deficiência
coronária do coração que a razão sempre nega. Não há realmente aquilo a que
chamamos amor. Há sim, uma solidariedade que nos aproxima de uns e nos afasta
de outros, de acordo com o grau de solidariedade que encontramos em troca do
que oferecemos. Algo parecido com um negócio cujo capital é a amizade, e lá se
foi o suposto pescador empurrando sua bicicleta pelas areias leves da praia,
quase sumindo no horizonte. Também ele, por solidariedade, percorria
habitualmente aquele mesmo percurso. Se visse algo de interessante nas ondas,
avisaria, e no dia seguinte a praia se encheria de pescadores com tarrafas, uns
quatro ou cinco, que numa praia com sete quilômetros de extensão pareceria
vazia, mas cheia de pescadores. É a relatividade do que sendo pouco parece
muito, e sendo muito, parece pouco. Não é apenas o espaço tempo que se contrai
ou expande, mas também o nosso entender do que somos seguindo as próprias
regras que estabelecemos para a razão agindo sobre o coração. Sem regras não há
censura válida, ainda que complacentemente, sobre o coração, e coração livre
sem razão é como um pedaço de queijo e um copo de vinho jogados ao mar com
ondas de menorá aquosa.Talvez em função de uma maior ou menor agitação dos
neurônios provocada por uma garrafa de vinho, e pão com queijo. Uma alimentação
corporal que sobe até cada neurônio, os agita, os faz trabalhar até produzir
coisas tão simples como esta: Se Deus não existisse, teríamos que inventá-lo. E
certamente o seria com o coração e a razão, num copo de vinho com pão, queijo, e
vontade de perscrutar o mundo que nos cerca, envolve, como úteros quentes das
mães que fazemos neste mundo.
© Rui Rodrigues
[1] Chanukiá ou Chanuquiá (hebraico חנוכיה - hanukiah, pronunciado
"ranuquiá") é um candelabro de nove braços, usado durante os oito dias do feriado judaico de chanukiá,
também chamado de Festa das Luzes.Nesta celebração, os judeus de todo o mundo comemoram a libertação
do templo de Jerusalém do domínio dos Gregos no século II a.C. sob a liderança dos Macabeus e o milagre do azeite que havia numa
botija - que duraria um dia só - e que queimou no candelabro do Templo por oito
dias. Este é o motivo dos nove braços da Chanukiá, sendo o braço do meio, mais
proeminente, denominado Shamash (servente), pois a vela que é colocada
neste braço é usada para acender as velas que são colocadas nos outros oito
braços.
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