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sábado, 24 de agosto de 2013

Iludida desilusão ou o amor e a razão num copo ?



Iludida desilusão  ou o amor e a razão num copo ?


Eram cerca das quatro da tarde, o tempo estava nublado e não iria só. Peguei minha mochila, uma garrafa de vinho, um queijo, pão, uma garrafa de água e no espaço que sobrou, a minha gata Sarkye, cabeça para fora da mochila para apreciar a paisagem. Ela é um animal sentimental e eu também. A diferença está no pelo dela que é muito mais bonito do que a minha pele. Não fosse a roupa que uso, eu nu seria muito mais impressionante do que ela que nem usa roupa, mas certamente menos natural do que ela que não conhece tecnologia e tem saber limitado. Depende de quem olha para quem, se eu para ela, se ela para mim. Um de nós estamos certos.

Fomos passear. Eu para meditar, ela para dormir e curtir um sol ao meu lado, com seu faro curto procurando algo que se mexesse e representasse perigo. Miaria e certamente eu não daria importância a menos que fosse um cachorro. As onças que aqui habitavam, outros animais muito mais parecidos comigo do que com ela, já as tinham exterminado há muito. Animais não destroem a natureza, mas os animais parecidos comigo destroem e muito. São mais animais que minha gata animal.

Ao pegar o copo e verter-lhe o vinho, me ocorreu a primeira indagação: Porque não nos acertamos – na verdade eu queria dizer porque é que eu não me acerto, mas isso não é característica apenas minha, ou seria prerrogativa? – com as mulheres por muito tempo. Fiquei pensando nisso enquanto olhava as ondas do mar. Eram ondas sucessivas umas atrás das outras, sempre num ritmo de sete, como se fosse uma menorá, Não de chamas do Eterno, mas de espumas semoventes encristadas em água. Água e espuma juntas, inseparáveis. Tinha ficado casado por 31 anos, e nem antes nem depois as mulheres duravam muito em minha vida. Muitas e várias explicações como dezenas de menorás ardentes me ocorreram, de reminiscências dos livros sagrados, do meu quotidiano, de livros de ontem de hoje e até de amanhã que abordaram, abordam e abordarão o mesmo tema. Porque não nos acertamos para toda a vida? E já ia no quarto copo, o pão pela metade, minha gata sem aviso de que ficaríamos até o sol se por e sem ração, sem reclamar. Parece que os animais entendem nossas necessidades e não reclamam, apenas se adaptam às circunstâncias.  Dei-lhe um pedaço de queijo em resposta a um seu miado, como se fosse um rato. Ratos gostam de queijo e Sarkye também, o que não faz dela um rato, assim como também não me faz a mim, mas nós somos muito simplistas e lineares. Somos capazes de identificar as pessoas por sua aparência sem nos aprofundarmos muito, ou o necessário, em nosso íntimo.  Vestiu como puta, é puta. Desmunhecou, é viado. É o poder do “conhecimento”, típico de quem não consegue reconhecer a diferença entre uma menorah e uma chanukiá [1], com mais dois braços que a menorá.

A garrafa estava chegando ao fim, o Sol poente era agora cor de salmão, misturado com tons de laranja e rosa. Havia muitas mulheres numa praia vazia sem ninguém. Eram quase todas as que passaram na minha vida, de algumas não me lembrava. Umas me chegaram sem saber o que queriam, outras sem saber o que podiam querer, outras nada queriam, outras ainda queriam querer mas não podiam. Algumas choravam, outras riam, santa diversidade dentro da diversidade da natureza que somos. Uma infinidade de sutilezas da vida, tão sutis que não costumamos enxergar o óbvio. Podemos ser simples ou complicados que a vida jamais será alguma coisa muito simples, e sempre acabamos por achar que são as mulheres ou nós mesmos que somos complicados. Mas não, simples é a vida que complicamos porque somos assim mesmo: Vida tentando aprender e apreender a vida, algo de que conhecemos muito pouco. A simplicidade das palavras de nada adianta para um animalzinho simpático carente e dependente como Sarkye que gosta de queijo como os ratos, e entre nós, os outros animais, quanto mais simples as palavras, mais perguntas costumam gerar. Não enxergamos o óbvio, o simples. Sempre pensamos que há algo de mais complicado do que a simplicidade que assim perde o seu interesse como mistério e ganha a importância de coisa complicada, elaborada, inteligente, mas é exatamente o contrario, porque a simplicidade é a sublimação do complicado.

O pescador de bicicleta estava passando agora no sentido inverso sempre olhando o mar. Talvez levasse na bicicleta a sua tarrafa para a pesca da tainha, mas nunca o vi pescar. Na minha simplista forma de pensar, cri que era um “olheiro” dos outros pescadores que costumam visitar a praia, mas esses vêm com suas redes olhando as ondas para ver se há tainhas nadando ao longo das ondas, buscando o seu plâncton levantado pelo movimento dessas cristas espumosas. Lugar de tainha é no mar, nas redes uma opção descuidada. Somos também descuidados tal como as tainhas, mas não podemos reclamar: Somos tão animais quanto elas e há sempre redes em nossas vidas, tentando capturar-nos. O coração é cego, a razão vê demasiado, e nunca sabemos em que acreditar, se no coração ou na razão. Minha razão estava num copo de vinho ao sabor das ondas do mar enquanto mastigava um pedaço de queijo com pão, sem me preocupar com as redes do coração. Sempre acabamos por ficar imunes, com aquele olhar tranqüilo que caracteriza o olhar da Sarkye, a minha gata, que sabe perfeitamente o mundo em que vive, ela um simples animal, eu um animal complicado. Nós que não sabemos, somos outros animais imberbes se comparados com a gata. Alguns de nós raspamos os pelos do púbis, mas em que isso muda as nossas vidas, senão pelo estereotipo cultivado por uma sucessão de regras de beleza que surgem e desaparecem como ondas de uma menorá aquosa?

Mas porque razão sempre me vem uma comparação com a menorá divina? Porque o amor é uma deficiência coronária do coração que a razão sempre nega. Não há realmente aquilo a que chamamos amor. Há sim, uma solidariedade que nos aproxima de uns e nos afasta de outros, de acordo com o grau de solidariedade que encontramos em troca do que oferecemos. Algo parecido com um negócio cujo capital é a amizade, e lá se foi o suposto pescador empurrando sua bicicleta pelas areias leves da praia, quase sumindo no horizonte. Também ele, por solidariedade, percorria habitualmente aquele mesmo percurso. Se visse algo de interessante nas ondas, avisaria, e no dia seguinte a praia se encheria de pescadores com tarrafas, uns quatro ou cinco, que numa praia com sete quilômetros de extensão pareceria vazia, mas cheia de pescadores. É a relatividade do que sendo pouco parece muito, e sendo muito, parece pouco. Não é apenas o espaço tempo que se contrai ou expande, mas também o nosso entender do que somos seguindo as próprias regras que estabelecemos para a razão agindo sobre o coração. Sem regras não há censura válida, ainda que complacentemente, sobre o coração, e coração livre sem razão é como um pedaço de queijo e um copo de vinho jogados ao mar com ondas de menorá aquosa.Talvez em função de uma maior ou menor agitação dos neurônios provocada por uma garrafa de vinho, e pão com queijo. Uma alimentação corporal que sobe até cada neurônio, os agita, os faz trabalhar até produzir coisas tão simples como esta: Se Deus não existisse, teríamos que inventá-lo. E certamente o seria com o coração e a razão, num copo de vinho com pão, queijo, e vontade de perscrutar o mundo que nos cerca, envolve, como úteros quentes das mães que fazemos neste mundo.

© Rui Rodrigues   












[1] Chanukiá ou Chanuquiá (hebraico חנוכיה - hanukiah, pronunciado "ranuquiá") é um candelabro de nove braços, usado durante os oito dias do feriado judaico de chanukiá, também chamado de Festa das Luzes.Nesta celebração, os judeus de todo o mundo comemoram a libertação do templo de Jerusalém do domínio dos Gregos no século II a.C. sob a liderança dos Macabeus e o milagre do azeite que havia numa botija - que duraria um dia só - e que queimou no candelabro do Templo por oito dias. Este é o motivo dos nove braços da Chanukiá, sendo o braço do meio, mais proeminente, denominado Shamash (servente), pois a vela que é colocada neste braço é usada para acender as velas que são colocadas nos outros oito braços.

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