A capacidade de sentir o mar das ilhas.
Somos ilhas de vida cercadas
de paisagem e semelhantes nossos, outras ilhas, por todos os lados. Não é um
ambiente muito tranqüilo, e nos primeiros anos da infância cognoscível, chega a
causar medo. A multidão de desconhecidos é muito grande, nem todas as nossas
necessidades são atendidas, os prédios onde se vive são enormes, os tampos de
mesa parecem inalcançáveis, não se pode abrir portas, nem fechá-las, as
máquinas que rodam velozes pelas ruas são pesadas, enormes, e barulhentas. Um
brinquedo largado inadvertidamente fica estraçalhado quando as rodas dessas
máquinas lhes passam por cima. Os adultos à nossa volta ora gritam ora nos dão
beijos e nos dão presentes, lançando confusão em nossas cabeças inquietas, tentando
se adaptar a tudo isso, agradar para não ser rejeitado. Crianças entendem bem
esta situação, e quando num grupo uma delas chora, todas choram em
solidariedade. Adultos não entendem quase nada.
Algumas crianças aprendem
mais rapidamente do que outras a dominar a paisagem. Sentem-se tão à vontade
que pensam ser exclusivamente delas. Em suas ilhas particulares tudo lhes
pertence: Os brinquedos, a bola, a escola, as ruas, os amigos devem servi-las.
É um exercício que só termina se alguém as parar ainda na fase de pesquisa
sobre a sua competência em dominar o mundo. Se não forem paradas, ficarão
adultas dominadoras. Adultos não costumam intrometer-se em assuntos de criança.
Por isso, algumas que aprendem mais devagar, ou são mais pressionadas a
comportar-se, despertam mais tarde. É deste grupo de ilhas que surgem os que
mais sentem e conhecem os seus limites e os das outras ilhas, e destas se fazem
continentes de amigos, o solo fertilizante de respeito num oceano amorfo,
imprevisível, até hostil com maior ou menor gravidade. Ilhas unidas são mais
fortes sem usar a força, navegam melhor e mais facilmente pelas trilhas do
conhecimento, da moral e da ética, porque enxergam em todas as direções. Raramente
fazem inimigos, e os adversários agem apenas por inveja, uma forma de violência
contida que raramente explode em agressão. Ilhas invejosas normalmente são
covardes. E é das ilhas de covardia que vêm os slogans, quando não se concorda
com elas, que são “prepotentes”.
Mas as ilhas crescem em meio
a dias quentes, dias frios, dias de tempestade, dias claros ou escuros como a
noite. Há raios e trovões, terremotos, vulcões, convulsões da natureza ou
vindas de outras ilhas. Muitas afundam enquanto outras navegam, algumas com
rumo fixo, outras à deriva. Ilhas que afundam continuam vivas em nossa memória
de forma latente. A cada ano a luz da vela que as ilumina enquanto mergulham no
oceano vai ficando mais fraca, até que se esfuma na profundidade dos mares onde
o tempo dura para sempre mas nada nele vive. É triste ver ilhas se afastando no
horizonte provocando a mesma sensação das que afundam e se transformam em
tempo. É triste ter de se afastar de ilhas que tentam afundar-nos ou nos
afastam, quer seja através de sopros ou de atitudes. Mas sempre há as vinhas
que outras ilhas, há muito no passado cultivaram, e que produzem bons vinhos. Assim
também o centeio que produz bom pão e ambos nos alimentam a alma cada um de sua
forma. Mas por causa das vinhas e do centeio dividiram o mar das ilhas
impondo-lhes fronteiras, sem se importarem se as ilhas que vivem de um lado de
uma fronteira são família das que vivem do outro lado. Chovem chuvas de
tristeza de ambos os lados das fronteiras e são muitas nesta condição. Questiona-se
sobre quem fez o mar e a as ilhas, como se isso tivesse importância, que se
tivesse, não haveria tão absurdas fronteiras. E impuseram leis, algumas tão
absurdas que levantam ondas no mar, dificultam ou impedem a vida. Dizem, os que
mandam, que é para o bem das ilhas, mas a não ser por inovações tecnológicas que
lhes dão um ar de modernidade, afundam mais ilhas hoje do que antanho. Há
remédios e dispositivos para manterem as ilhas flutuando, mas mesmo assim
nunca as ilhas tiveram tanta dificuldade em se manterem flutuando como nestes
tempos dos quais dizem maravilhas. Os que mandam cobram altos impostos e dão-lhe
músicas às ilhas liberadas de pagamento, pagas com os impostos. Nunca as ilhas
fizeram tanto amor como agora que a moralidade, aquela que se impunha tempos
atrás e que diziam ser falsa, está tão livre como os vapores das velas que se
esvaem como prelúdio para o limite da liberdade, porque quando tudo for livre,
as ilhas estarão irremediavelmente presas, encarceradas. Então, dentro de
algumas fronteiras se proíbe quase tudo, e vivem nas trevas, porque não
entendem o equilíbrio que faz as ilhas flutuarem no mar em que navegam. Nunca
entenderão, porque não é entender que desejam. Tal como as crianças que crescem
e aprendem a dominar a paisagem, assim também algumas ilhas adultas não
controlam seu desejo de dominar as demais. Intitulam-se políticas essas ilhas,
e não querem saber de sentimentos. Dizem que as leis são cegas, surdas e mudas
e devem ser. Assim se alivia a consciência. E quando o navegar fica difícil, as
ilhas fazem amor, bebem vinho, ouvem música, recolhem-se em templos onde lhes é
oferecido um filme de ficção onde se oferecem momentos de lazer com sonhos de
um mundo melhor, inalcançável nesta regata de ilhas no oceano da vida.
Destes amores nascem
crianças que só perceberão que são ilhas quando forem quase adultas e nada mais
se possa fazer para que se transformem num continente, ou, no mínimo, que mudem
o rumo e vão para onde todas as ilhas desejam ir, sem fronteiras. Neste mar
limitado, uma ilha leva mais de um quarto de século em média para aprender
alguma coisa, limitada, para ter noção de que é uma ilha, do mar em que vive. É
governada por quem nem imagina o que é, onde está, nem o que tem que fazer para
governar tantas ilhas, todas diferentes entre si. Isso é tarefa para as
próprias ilhas, em conjunto, que conhecem o mar, sabem o que são e para onde
querem ir.
Rui Rodrigues.
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