O Jogo de ser Humano
Crianças de dezenas de
milhares de anos atrás nas pradarias do Norte da América e Europa não assistiam
a jogos de futebol em enormes estádios iluminados. Divertiam-se vendo de longe
a luta de bisões, de ursos, os animais da pradaria, pela posse de suas fêmeas.
Lutas mortais. Também eles brigavam entre si, normalmente por defeitos expostos
de moralidade. Cada tribo tinha um conselho de anciãos para julgar os casos e
não raro os culpados eram punidos com a morte. Em tempos de paz faziam jogos
para se divertirem e a cada jogo deveria haver um vencedor. Não era diferente
de seus congêneres do sul do Continente americano e nem sabiam da existência
deles. Também não sabiam da existência de um mar imenso que suas pirogas feitas
de varas de madeira, cobertas com peles de animais, jamais poderiam atravessar,
e muito menos sabiam que havia outras terras, para lá do primeiro mar, onde
pessoas e crianças tinham exatamente estes mesmos hábitos, de observar os
animais, caçá-los, jogar buscando a vitória, punir os culpados por atos
ilícitos segundo sua moralidade. E muito menos sabiam que passado o primeiro
mar, e o outro continente, havia mais um mar que, atravessado, os levaria de
volta a casa, às suas pradarias. Um longo e extenso caminho por mar e terra,
onde encontrariam gentes semelhantes, vestidos de formas diferentes, usando
utensílios semelhantes, hábitos parecidos, mas onde todos jogavam, com maior ou
menor seriedade, e aplicavam o jogo da morte como punição aos apanhados em
erros inadmissíveis.
Perceberiam que a vida é um
jogo? Não se pode afirmar. Os homens das naus e caravelas que um dia chegaram
lá aos milhares, não tinham feito o jogo da vida para atravessar esses mares?
Certamente que sim. Sabiam dos perigos de atravessar os mares sem fim, onde
havia monstros terríveis, ventos impiedosos, tempestades mortais, mas se
conseguissem sobreviver poderiam viver o resto de suas vidas sem trabalhar,
vivendo dos rendimentos auferidos, proporcionais aos riscos enfrentados. A vida
tinha um valor que se estendia da riqueza à morte em todos os seus melhores e
piores tons. A vida um jogo e um prêmio: Riqueza para os vencedores, a morte
para os perdedores. Não poderia ser diferente?
Esses mares já foram
atravessados. As naus e caravelas modo geral chegaram sempre a bom porto, os
monstros foram vencidos, as tempestades aplacadas, os ventos dominados. O jogo
não. Por aquelas épocas, desde dezenas de milhares de anos atrás, passando
pelas centenas de anos em que naus e caravelas atravessaram os oceanos de água
ou caravanas atravessaram os de areia, até nossos dias recentes de um par de
dezenas de anos, as nações da terra não eram tão densamente povoadas. Os
aspectos morais do comportamento humano eram resolvidos por conselhos de
anciãos e havia pequenos exércitos de homens armados para garantir a ordem, mas
recentemente algo mudou o equilíbrio no jogo da vida: As nações da Terra tornaram-se
super povoadas, bisões e ursos e animais das pradarias quase foram extintos, e
em seu lugar surgiram enormes plantações de alimentos para sustentar tão
tremendas quantidades de roedores humanos. Chegamos a um ponto de necessitarmos
abrir mão de nossas noções de nojo e passarmos a roer insetos devidamente
apresentados com arte em tragáveis pratos decorados. Esse senso humano de jogar
buscando recompensa que tanto pode ser premiada com a riqueza ou alimentos, ou
castigada com a morte, perdura sempre. Esse jogo sempre será jogado, ainda que
seja decorado e apresentado com roupas interessantes e adequadas, sorrisos,
arautos, shows de artistas ou armas que se inventaram para mais facilmente se
garantir a vitória nesse jogo da vida. Desenvolveram a ciência para poderem
descobrir novas armas mais eficientes e potentes, e para curar de doenças as
populações necessárias para usarem essas armas. O jogo da vida foi-se tornando
cada vez mais letal, porém mais saudável aos corpos ansiosos por jogar esse jogo.
Crianças que hoje não têm a oportunidade de ver bisões e ursos, ou leões e
hienas disputarem seus jogos pela vida, aprendem a jogar em competições
infantis esportivas ou em simples jogos de cabra-cega, relativamente fáceis,
até os mais complicados de futebol, artes marciais viagens espaciais, jogos de
guerra. A diversão do dia a dia é fingir que não se tratam de jogos de vida, e
apregoar a paz, a bondade, o seguimento de leis morais ou religiosas. Os fiéis
às leis e á religião têm suas compensações morais, dormem relativamente
tranqüilos, muitas vezes com fome, com falta de instrução, de serviços
públicos, mas sem riquezas mensuráveis. Os que fazem as leis e as fazem
cumprir, dormem relativamente tranqüilos porque estão, também relativamente,
protegidos pelas leis e pelos exércitos com as armas inventadas sob a égide do
jogo da vida. Comunidades unidas são mais fortes. O que as une? Traços
fisiológicos, aspectos legais e religiosos, o medo de jogar o jogo da vida, a
vontade de vencê-lo, uma pintura multicolorida de outros fatores, mas sempre o
jogo da vida. O maior problema que parece quebrar este sistema até agora
relativamente controlável foi o crescimento populacional.
As planícies foram
invadidas, as florestas derrubadas, os mares enredados por redes mortais,
extraiu-se da natureza o que se podia até se sentir que essa natureza estava
mais que morrendo, desaparecendo. Nenhum sistema político – o que é evidente
porque se trata de um jogo – conseguiu deter as tendências do crescimento
populacional e a ocupação de terras vitais, delimitar o uso das redes de
pesca. A cadeia alimentar do planeta transformou-se
numa prisão alimentar em cadeias, cada uma com seus predadores. O controle das
massas humanas tornou-se assim mais difícil, grupos isolados desafiam as ordens
e a Ordem. O jogo exige que se atribuam culpas entre grupos, e para se
encontrar culpados, basta descobrir um motivo que pareça justo, mesmo sendo
apenas parte do jogo da vida. Se não existe lei para defini-lo, inventa-se uma,
dez, cem, alteram-se constituições, compram-se senadores, empresas, porque há
dinheiro. Quando o dinheiro é um bem considerado abominável, compram-se os
indivíduos com qualquer outro bem do jogo da vida: Cargos, benefícios, cupons,
liberdades, serviços, um pouco de açúcar, sal e farinha, um ponto de táxi,
liberdade para fabricar fritar e vender seus pastéis no meio da rua pagando imposto
ao estado que se diz dono dos pastéis.
O limite do jogo da vida é
alcançado quando o indivíduo serve o estado de forma quase que em dedicação
integral e com ele divide de forma subalterna e desproporcional a sua própria
existência, quando se anula como individualidade. Humanos podem subsistir sem o Estado e sem a religião, mas não
podem ser tão numerosos que não se conheçam uns aos outros pelo nome. Em quantidades maiores do que cerca de 100 indivíduos, o estado se faz necessário porque não haveria forças que os segurassem em suas revoltas constantes. O jogo da vida é duro, e das
riquezas à morte vai um século ou um segundo na vida de cada um.
Quem manda em instituições,
sejam elas religiosas, governamentais, sob qualquer tipo de filosofia moral ou
política, está e sempre esteve bem, ao lado das maiores e melhores riquezas
disponíveis desde o tempo dos faraós, de Salomão, Nero, e Ciro. Artistas e
cientistas sempre tiveram suas regalias desde que agradassem, mas foram sempre
os donos de exércitos que ganharam, por tempo mais curto ou extenso, o jogo da
vida. Esses donos de exércitos são os governos da Terra, os que movem os peões
no tabuleiro do jogo. Uns são reis, outros rainhas, outros fortes e lineares
torres, alguns são bispos, e outros se movem como cavalos. A maioria é
constituída de peões que têm seus movimentos completamente lentos e limitados a
um passo de cada vez, jogando sempre á frente em proteção das peças superiores.
Quem inventou o jogo de xadrez, um dos
pequenos, inocentes e divertidos jogos da vida, não gostava de reis porque os fez
se moverem a um passo de cada vez como os peões. Deveria gostar muito de
rainhas, tal como deveria ser nas cortes reais, reais, onde elas se moviam de
forma independente, para qualquer lugar do palácio desde que fosse em linha
reta, e é impressionante neste jogo que bispos não se possam esconder nas
torres, reis não possam montar cavalos, peões não possam voltar para trás, mas
se transformar em rainhas, jamais em reis. O jogo não permite dois reis, e cada
rei tem que ter direito a uma outra rainha caso fique viúvo.
Neste jogo da vida tudo é
ilusão e poucas as realidades. As ilusões não se vêem... Ficam escondidas,
prontas para se tornarem realidades, e num só bote, nos darem o xeque-mate. Se
você tem alguma filosofia política, comece a vê-la de forma mais real: Ela se
contrapõe a outras filosofias não por que sejam melhores ou piores, que
certamente serão, mas porque se trata de opções no jogo da vida onde você será
sempre, provavelmente, peão. Você protege os campeões ou os pretendentes a
campeões. Uns chamam até de posição aos campeões e de oposição aos pretendentes
a campeões. Bateis-lhes palmas, incentivais o jogo. Alguns chamam a este jogo o
jogo do poder, mas não é. É o jogo da vida e nós, peões, estamos perdendo-o.
Mas lembre-se, a título de consolo e esperança: O jogo termina sempre com a
queda do Rei mesmo que a Rainha ainda exista. No jogo de xadrez, claro, porque
no jogo da vida, não há fim, nem vencedor perene nem perdedor que não possa vir
a vencer. É tudo uma questão de jogo de sorte que pode ser de azar. Ganham-se
riquezas ou perde-se a vida. Muitos doam sangue e órgãos do corpo, além de
pagarem impostos, doar dízimos, pagarem multas, trabalharem mais de oito horas
por dia para sobreviver, fazem doações de caridade, trabalham sem receber em
instituições de caridade, dão aulas em escolas por salário irrisório e
insuficiente, movidos pela vontade de ajudar o próximo. Somos uma humanidade
demasiado boa, mas nos exigem cada vez mais. Nós mesmos, ou a natureza nos
encarregaremos de pôr fim a sistemas, a governos, à natureza, mas, sempre, sem
deixarmos de jogar o jogo da vida. Rindo ou chorando, acariciando ou
rejeitando, ainda que imbuídos dos melhores ou piores sentimentos, tudo faz
parte do jogo.
O mundo é naturalmente
irrequieto, cada peão servindo as castas superiores (ainda que temporariamente)
que se escondem em pompa na retaguarda, fortalecidas por torres, bispos,
cavalos. São os reis e rainhas, ela podendo até ter ascendido de peão vencedor,
mas rei, com linhagem sem duvidar, só o Rei. Quando perde, tomba. Pelo menos
era assim no jogo de xadrez. Pode ser que no futuro tenhamos reis rainhas e
rainhas reis, sem mudarmos absolutamente nada. Nada mesmo. E até as cores do
jogo de xadrez, preta e branca, não seria necessário serem tão
discriminatórias. Bastaria que fossem numeradas de 1 a 16 de um jogador, e de
17 a 32 do outro. Seriam diferenciadas apenas pelos números.
Surreal é vermos um mundo momentaneamente
real com fundamentos em irrealidades, sabendo que existem realidades que não
vemos nem sentimos, e, mesmo assim, acharmos que tudo é absolutamente real como
se fosse eterno. Pior ainda, se acharmos que existe algum laivo de
imutabilidade, a qualquer momento, em qualquer coisa deste universo, que não se
altere a cada micro fração de segundo. Só não se nota quando estamos juntos,
pessoas paisagens e coisas, em modo continuado ao longo de um período de tempo.
A cada período se notam diferenças. Basta olhar sem temor, em tom de desafio ao
jogo da vida e manter o rei em pé.
® Rui Rodrigues.
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