Eu era ainda um garotinho, lá pelos idos dos anos 50, que pouco passara dos nove anos e não sabia quase nada da vida. O que mais
sabia é que tinha matemática e meninas para me divertir, cada uma de um jeito
(a matemática pela precisão e as meninas pela imprevisibilidade), vinhedos e
vinho, animais diversos, e gentes com costumes e aparência tão diferente, que
achei que, se um dia não me sentisse bem num lugar, haveria gente agrupada em
continentes, em cujo meio me poderia situar de modo feliz. É que santos da porta
não fazem milagres e percebi isso muito rapidamente. Como português nato,
aprendi a comer peixe e crustáceos com minha tia Elisa e com meu tio, que casou
com ela, de nome Adolfo Manuel Rodrigues Melo Marques Durães. È um nome muito
comprido o do meu tio postiço que foi como um pai e do qual sinto saudades. Não
tive coragem de vê-lo quando estava no leito de morte. Senti-me um covarde! Não
me perdôo. Para me salvar um pouco da covardia, não me fiz presente para não
ter que chorar a sua morte, e guardar coisas tristes a seu respeito. Preferi
guardar apenas os bons momentos. Senti-me covarde e egoísta! Mas foi com ele
que pela primeira vez tomei conhecimento de um país chamado Chile.
Costumava
levar-me numa rua ali no centro de Lisboa, a Rua Barros Queirós, muito estreita, ligando o largo de Martim Moniz ao Rossio, e onde havia uma loja que vendia revistas em quadrinhos do
Brasil. Havia uma lei segundo a qual não se podiam editar livros em literatura
do Brasil porque não havia acordo ortográfico, uma lei bárbara, idiota,
retrógrada. Naquela rua podia vender-se. Acho que o dono era amigo dos amigos
do Salazar ou dele mesmo. Numa das revistas que me comprou, havia uma do Walt
Disney falando sobre o Chile. Memorizei o país.
Muito pouco tempo depois,
já que lia fluentemente, minha prima Alice nos visitou na Rua de Arroios, em
frente á Praça onde fica ainda a Igreja de Arroios, a um quarteirão da Praça do Chile. Morávamos no numero 147,
num rés-do-chão com área de serviço enorme que ia de lado a lado do prédio, um
jardim aos fundos que pertencia aos donos do quarto andar. Ao lado a Esquadra
da Polícia. O prédio já foi abaixo. A rua ainda está lá. Meu tio já faleceu há
bastantes décadas, Salazar já não existe, o acordo ortográfico agora permite
livros brasileiros. Portugal progrediu muito. Minha tia foi-se também, mas ela
é que era a “dura”, mais que alemã, na minha educação. Tirando os exageros, que
descanse em paz. Nada a reclamar. A culpa foi de meu pai que me deixou tantos
anos com ela. Um amigo meu quando me viu em Lisboa décadas depois me perguntou
se a “jararaca” de minha tia ainda era viva. Foi o Pedro, um vizinho na época
que morava no quarto andar, mas não era o dono do jardim, que era umas dez
vezes maior que a área do jardim do nosso apartamento. Só havia dois jardins
naquele prédio de quatro andares, dois por andar... Uma merda arquitetônica,
com 13 dependências, feita provavelmente por amigos do regime de Salazar, que
fizeram a distribuição das áreas como bem lhes aprouve por interesses escusos.
Com aquela idade senti o cheiro da problemática, mas só depois percebi como se
faziam apartamentos daqueles. Meu tio era de família tradicional e se explica
porque ganhou uma área daquelas, mas não a do jardim do quarto andar. Um par de
anos depois, minha prima Alice me ofereceu de aniversário, um livro
extraordinário que devorei em um par de dias: “Vinte mil léguas submarinas” do
Julio Verne. Permitam-me uma breve pausa para segurar um par de lágrimas pela
recordação saudosa de meu tio e de minha prima Alice, e pelo bem que me
fizeram, por sua contribuição para o meu conhecimento de poder ver para o lado
bom da vida. A vida é um rosário de penas que deve ser aliviado com bons
momentos sem que nela se pense. No livro do Julio Verne faz-se menção a Pucón,
creio, uma cidade chilena. Se não era essa era outra do sul do Chile, mas
“cheirava” a mar, a peixe e a mariscos. É bom ler livros tentando identificar
os hipotéticos cheiros. São os fígados de peixe que mais têm cheiro de peixe. Nada
melhor para realçar o sabor de peixe do que um pouco de fígado, como por
exemplo, num caldo. Certo dia, li num livro de geografia que o Chile era o
único país fora do Mediterrâneo que tinha clima mediterrâneo. Isso, aliado ao
sentido de aventura, aos vinhedos, aos peixes e mariscos, ao oceano Pacífico, aguçou
minha curiosidade pelo Chile.
Pelo final do ano de 1973
saí da empresa Contal no Rio Grande do Sul para onde tinha ido – do Rio de
Janeiro - como gerente da Empresa, e fui para São Paulo convidado por uma
outra: A Formaespaço. Fui morar na Avenida Paulista com minha esposa e uma
filhinha de 11 meses de idade. Conheci então um casal chileno que vivia num
apartamento em frente ao meu: Jaime Irigoyen e sua esposa Letícia Nicoletti,
também com uma “nena”, a Valentina. Fizemos amizade no dia em que Letízia bateu
á nossa porta e se ofereceu para o que fosse necessário. Um gesto muito lindo,
raro em qualquer cidade do mundo. Nossa vida, a partir daí, foi uma série de
coincidências de trabalharmos em mesmas cidades ou países, ainda que em
empresas diferentes. Foi assim que conhecidos em São Paulo, nos mudamos para o
Rio, para Barranquilla na Colômbia, para Lisboa e Madrid, para Santiago do
Chile. Parece que seja o que for que possa estar traçando destinos – e não
acredito nisso – nos estivesse juntando as famílias, para nos dizer: Ficai
juntos!
Em 1999, A família
Irigoyen estava no Chile, em Santiago, morando no bairro El Golf. E para onde me manda uma empresa
brasileira com origem americana, a Becthel do Brasil? Para Santiago, para
ajudar na solução de problemas de contratos na Mineria Los Pelambres. Fui para
o escritório em Santiago do Chile e lá estavam os irigoyen, agora com Felipe,
meu sobrinho postiço, melhor, meu filho “postiço” por questões de amizade. E
conheci o Chile com tudo o que tem, de norte a sul por força de trabalho e de
lazer nos tempos vagos. Ao final do trabalho a empresa me deu, como
gratificação ou agrado, uma viagem ao sul do Chile, por quinze dias, com tudo
pago, até a Patagônia.
Entre amigos chilenos,
costumes, vinho, peixe e mariscos, cultura, o Chile é dos países de meu
coração, ao qual nem passaporte chileno me faz falta. Sou da casa, sinto-me em
casa. Na Colômbia também, mas Chile tem clima mediterrânico, peixe, mariscos e amigos que na
Colômbia não tenho iguais.
® Rui Rodrigues
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