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quinta-feira, 30 de julho de 2015

Mais do que duas viagens no tempo


Não há ninguém neste mundo que possa dizer que não respeitei os idosos e que não os ouvi, sempre, atentamente. Aprendi muito com eles, hoje sou idoso também.
 

Um dia peguei o possante Renault Clio 1.0, “vermelhão francês cansado”, mais que suficiente para as estradas portuguesas, e pus-me a caminho, com minha família, desde Lisboa até o Algarve. Abalamos da Quinta do Junqueiro onde vivíamos, até Armação de Pêra onde ainda vivem meus tios (amados) Miguel e Nilde.
 
Lembro que pelo caminho ainda dissertávamos sobre aqueles casos de pessoas que pegavam carona e eram encontradas abandonadas à beira da estrada, ainda desacordadas, depois de terem passado por cirurgias que lhes tinham extirpado um rim, parte do fígado, ou um pulmão, para serem vendidos no mercado negro das “doações” de órgãos. Muita fantasia, em que as vítimas eram anestesiadas por “boas noites cinderelas” ou com clorofórmio durante as caronas. Por aquela época eu andava pelos 45 anos e meus tios pelos sessenta.
 
Quando chegamos a Armação de Pêra vimos uma vila simpática, bem algarvia, casas na maioria brancas com aconchegantes chaminés típicas, e lá estava, numa esquina com alto muro, de frente para uma plantação de amendoeiras ainda não em flor, a casa de meus tios, com pomar, vinha, horta e até um mamoeiro protegido por plástico para combater o frio, para ver se vingava e dava frutos. Uma vez brasileiro, é como vício... Gruda no corpo, na alma. Creio que se todos os europeus pudessem ou se arriscassem, morariam aqui no Brasil. O problema são as políticas e os políticos que estragam a beleza da terra. Por lá também, mas parece que são mais comedidos, ou têm mais medo das leis.

Ficamos lá num final de semana mais extenso, não me lembro se sábado domingo e segunda, ou sexta sábado e domingo. Pois por incrível que pareça, ainda aprendi com eles várias coisas.

O que mais nos interessa a nós, aqui no Brasil, que convivemos com uma inflação galopante, foi a arca que compraram. Arca é aquele freezer horizontal, enorme. Estava cheio... Aliás, creio que nunca se esvazia. É uma lição de economia doméstica. Sempre que saem a passeio pelos supermercados, ou por granjas, e vêem produtos com preço “bom” e sabem que precisam repor estoques, compram. Tática que faz parte da batalha contra a inflação. Mas não era só desse modo que economizavam enquanto se divertiam.

 
O vizinho em frente, quando colhia as amêndoas, dessas que se compram pelo natal, não colhia todas porque nem todas estavam maduras, e não contrataria ninguém para recolher os restos porque não valiam a pena. Para meus tios sim, e com permissão do vizinho, lá catavam uns bons baldes de amêndoas... E com outros vizinhos, cachos de uvas remanescentes para fazer vinho, azeitonas para fazer conservas e azeite... Bebi vinho do “Miguel & Nilde”, azeite da mesma “marca”, ambos excelentes, amêndoas torradas como aperitivo, que não eram apenas as amêndoas. Eram deliciosas as alcachofras colhidas a monte. 


Meus tios nascidos no Norte e a meio caminho entre Algarve e Norte (ela é brasileira de Coimbra), são e sempre foram o meu aperitivo para as coisas boas da vida, um belo exemplo de companheirismo. Mas tenho minhas imperfeições, ou não, e não aprendi tudo. Claro! Sei muito de sua vida, mas não sou eles, nem sei tudo nem tenho que saber. Armação de Pêra tem praia, pescadores, redes, o clima não é tão frio, uma casa, uma família, vinho às refeições, uns passeios a pé, calor humano até no inverno, lembranças quase seculares. Muita coisa mudou lá fora. Dentro da casa, quase nada. Só uma adaptação aos tempos e á idade.
 
Aprendi muito com eles. Dou-lhes minha gratidão e lhes agradeço boa parte dos meus prazeres da vida. A felicidade não é coisa simples, mas não tem nada de complicada. Basta ficarmos felizes conosco mesmos, se nossa moral não nos condena. E muitas vezes nossos "pais", nossos maiores exemplos, nem são os pais, mas os tios, os avós, os primos, e até casais de amigos... E fico imensamente grato a Fornelos onde eu, meu pai, minha tia Elisa e meu tio nascemos. Obrigado, Brasil, e Rio Grande do Sul, Brasil inteiro, que tão bem, mas tão bem me acolheste e à minha família. 




® Rui Rodrigues.        

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