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sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

As marcas.


As marcas.

Algum adulto criança, ou mesmo uma, em minha ausência do condomínio provavelmente no dia (23 de dezembro de 2014) em que minha gata com quem convivia há 13 anos sumiu, se divertiu com o meu galo arrancando-lhe penas do rabo, reluzentes, brilhantes, coloridas, uma obra de arte. Alfredo é um galo naturalmente belo, uma obra prima da engenharia genética da natureza que nem usou de laboratórios nem de equipamentos sofisticados, embora tenha demorado milhões, bilhões de anos, para transformar pequenos dinossauros em aves. Tenho uma das penas que caíram no galinheiro como uma marca de um momento, de uma tragédia. Se há coisa que um galo preza são suas penas do rabo, uma distração para as fêmeas, um aviso aos outros galos de quem manda no terreiro.

A vida nos deixa muitas marcas. Colecionamos marcas. Umas delas me impressionaram bastante e eram tão simples... Marcas de rodas de carroça nas ruas empedradas de Pompéia, na Itália. Fui numa excursão saindo de Roma. Não tinha muito tempo para ver todo aquele mundo de outrora, colhido de surpresa pelas cinzas do Vesúvio quando entrou em erupção no ano de 49 DC. Fiquei ali sentado por momentos, vendo fantasmas vivos vestidos a rigor de tanto ver os figurinos em filmes e ilustrações de história, fugindo a esmo, na direção do Porto perto de Nápoles, sufocados, sem saber se chegariam na próxima esquina. Vi também os bares, as casas de prostituição com “grafites” da época fazendo propaganda para os dotes de prostitutas, propaganda para lutadores nas arenas de coliseus romanos: “Ave César, os que vão morrer te saúdam...” A vida de braços dados com a morte, uma fatalidade assumida, viver o momento enquanto se pode, e me pergunto quão longe estamos desses tempos de precariedade. Sexo era algo como comer, andar, sem restrições ou maledicências... Trepava quem queria com quem queria, como quem toma um chope com amigos ou amigas nos dias de hoje. Deixaram marcas... Muitas!

Quando visiteamos Citânia de Briteiros (eu e minha ex-esposa) no norte de Portugal, onde nasci, parei numa daquelas muitas construções de bases circulares, apreciando o que deveria ser a vida Celta naquele Castro. Crianças brincando, cavalos passando pelas ruas empedradas, o rio lá embaixo, mulheres lavando roupas, e numa das casas um druida usando plantas para curar um enfermo que sofria de sezões. Dava-lhe vinho para afinar o sangue, passava-lhe panos de linho umedecidos em água fresca de bilha, pedia um carneiro para lhe ler nas entranhas o futuro do doente, um homem rico que possuía terras rio abaixo onde cultivava vinhas. A mulher, jovem ainda, era bela, de lindos cabelos ruivos, olhos claros, e já não havia muitas assim, por se terem mesclado com os iberos. Só os costumes ainda perduravam. A genética, essa, já não era exatamente a mesma. E meu meditar sumiu como por encanto, quando ouvi e vi, claramente visto e ouvido, uma sentinela gritar: “Alerta!... Uma hoste romana se aproxima...” E deixaram suas marcas nas terras, nos costumes, em tudo e até na genética. Até hoje.

Um dia, em plena guerra mundial, a segunda, meu pai largou o radio onde escutava a BBC de Londres e as notícias da guerra. Deveria ser um sábado ou um domingo, porque tinha tempo livre, e saiu de casa. Encontrou-se com minha futura mãe no Caminho da Fonte. Foi ele quem me contou. Na verdade gostava da irmã dela, mas acabou se apaixonando pela minha mãe. O Caminho  da Fonte é um simples caminho, muito importante para mim, que aprecio tanto as coisas imateriais quanto as materiais. Um belo caminho idílico, nas proximidades da Serra do Marão, logo ali ao lado, encostada, visível, cheia de neve em muitos invernos. Como nasci em setembro, o dia em que meu pai se encontrou com minha mãe, deveria ter sido em dezembro, por volta do dia 08. Tento seguir-lhes os passos nesse dia, frio de inverno, um chegando depois do outro e não sei quem chegou primeiro ao lugar marcado. Sei que se amaram como se fosse a primeira e ultima vez. Quando minha mãe e meu pai se separaram nesse dia, o espermatozóide vencedor de meu pai já corria a caminho do útero de minha mãe, procurando freneticamente um óvulo acolhedor, pronto para ser penetrado e se fundirem num só elemento criador de vida. Que inteligência a desse espermatozóide e desse óvulo. Um, porque sabia perfeitamente o que procurar e o que fazer, como se tivesse “vida” própria. O óvulo, porque logo que o espermatozóide vencedor o penetrou, se fechou definitivamente para qualquer outro espertinho que tentasse penetrá-lo. Não há nada como se saber o que se tem que fazer. Quando meu pai chegou na aldeia, já minha avó materna gritava a plenos pulmões que meu pai tinha desgraçado a filha dela. A promessa veio em seguida á gritaria de minha avó, o casamento se consumou, mas só durou dois anos. Fiquei órfão de mãe por duas vezes. Uma foi essa, ao final de dois anos de casamento. A outra foi quando ela veio a falecer quando eu tinha dez anos. Deixaram marcas desde o Caminho da Fonte que tentei percorrer agora, tantos e tantos anos depois...

Mas voltemos ao passado...

O que somos realmente? Creio que somos produtos naturais importados da genética do passado, exportados para o mundo fora das origens e limites de nossas aldeias, lugares de nascimento. Movemo-nos num mundo onde ejetamos espermatozóides com mais ou menos amor, muitas vezes sem a intenção de procriar, outras sem se importar que se procrie, e na maioria das vezes desejando que do ato sexual não venha prole. Prefiro que se faça com amor, querendo mesmo que se procrie, com o fim de uma união e não porque seja “interessante” ter um filho ou uma filha. Jamais para ter um “troféu”... Meu pai ou queria ter um filho, ou não se importava de o ter. Para mim, vale. E carrego suas marcas, as marcas de minha mãe, minhas próprias marcas e outras familiares, de convivência onde já tive de ouvir uma frase destas: “Os outros que fazem os filhos e eu que tenho de os criar”. Sei perdoar e perdôo, mas não posso esquecer. Ainda mais quando ela dizia para a minha professora, já em Lisboa: “ Se ele chegar suado depois do recreio, dê-lhe umas boas palmatoadas”... Apanhei muitas, com uma palmatória de madeira cheia de furos, até o dia em que  de iniciativa própria estendi suado minha mão suada para a palmatória da professora. Nunca mais me bateu, e acabei com a vontade “dela”. Não se pode impedir uma criança determinada marcada por marcas, com genes de pai e mãe que se amaram.

O Caminho da Fonte  ainda existe, Pompéia e Citânia de Briteiros são museus a céu aberto, as marcas viajam no tempo, e só sabe delas quem delas avalia.

Agradeço a meu pai e minha mãe a minha existência feita de forma feliz. Estejam onde estiverem, saibam que me fizeram feliz e que sempre vivi feliz mesmo quando, aparentemente, não deveria estar. As marcas são mais fortes que qualquer coisa, até que religião, coisa forçada pelos costumes e não pelo raciocínio, pela racionalidade. 

® Rui Rodrigues 

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