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quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

A vida continua, sempre, na nova cidade.

A vida continua, sempre, na nova cidade.

Não vou dizer o nome, mas ela fica bem perto daqui. Chamo de cidade porque é uma grande comunidade com cerca de 35 mil habitantes. Conheço-a há uns doze anos, de passar a caminho da loja de conserto de bombas hidráulicas, de um ou outro artefato para o uso diário, recarregar um celular ou fazer compras de emergência nos dois supermercados.

Ontem faltou água e energia elétrica aqui no bairro à beira mar, e de tão comum, já sei o que fazer nessas largas horas: Saio de casa e vou até essa cidade para passar o tempo, comprar alguma coisa que precise em casa. Ir sem as pressas habituais nos alivia o caminhar, temos mais tempo para apreciar o que passa ao alcance de nossos olhos. Como a menina simples, simpática, que nos dá um leve sorriso sem comprometimento apenas porque somos idosos e lhe somos simpáticos. Mexia em sua bolsa enquanto caminhava de sandálias havaianas, duas argolas de pano em volta dos tornozelos. Passou sem som, assim como quando apreciamos a paisagem e não escutamos nada do que se passa em volta, e depois ela sumiu no meio de outras pessoas que passavam perto do Supermercado. Antes de entrar, vi na porta do mesmo bar os três fregueses habituais sentados, a perna cruzada, um copo e uma garrafa de cerveja, os olhos apreciando também a paisagem, só que, para eles, era sempre a mesma. Quando muito vieram de longe num ônibus, assentaram praça na cidade, viajam até Cabo Frio de vez em quando, e desde então ali ficaram até hoje. Devem saber da vida de todo mundo, coisas que não dizem, histórias que não contam. Talvez nem lembrem do que viram a cada dia que chegam em casa. Do que vivem ninguém pergunta. Nem eu! Nunca tinha falado com eles. Pedi que cuidassem de minha mochila que guardava uma cadeira na calçada, enquanto entrei para pedir também uma cerveja em lata. O dia estava quente.


Uma criança de seus 13 anos passou com outra de cerca de nove meses no colo e entraram no Bar. Eram mãe e filha. Não sei o que foram comprar, nem me perguntei naquela hora, mas fiquei pensando como se interrompem fases de nossas vidas que deveriam ter uma continuidade natural de paz e tranqüilidade sem muitas dificuldades para viver decentemente. As dificuldades deveriam ser apenas dos que querem ficar descomunalmente poderosos, ou roubar e matar os outros, mas jamais para quem não tem grandes “aspirações”. A menina perdeu parte de sua adolescência, ficou mulher muito jovem, dirá em poucos anos que era muito jovem, não sabia o que fazia e que seu marido não a entende (nem ela ao marido). A criança crescerá num meio em que ouvirá todos os dias que “os homens são todos iguais”, porque a cada novo companheiro da mãe, surgem novos desentendimentos. Não é diferente quando pais ficam com a guarda dos filhos. Sei disso porque o meu ficou.


Esperança é também desilusão, quase sempre. Lojas que vendiam certos produtos vendem agora outros e já venderam outros mais. É raro o comerciante que mantém o seu negócio por muito tempo: Os hábitos e as necessidades mudam a cada ano e é preciso ter a percepção do que a cidade precisa ou precisará a cada ano. Das lojas de material de construção sobraram apenas três, mas de dono, duas já mudaram, e anúncios de “passa-se este ponto”, ou “vende-se esta loja” são bastantes Também são muitos os comerciantes de ocasião, iniciantes, que tendo algum dinheiro resolvem aplicar  num tipo de negócio de sucesso numa loja do bairro pensando que dividirão os clientes, mas quem já chegou há mais tempo e conhece do ramo, leva vantagem e a nova loja fecha. Quem passa de ocasião pela cidade vê uma efervescência que não é “real”, ou melhor, que muda a cada dia em detalhes tão pequenos, que voltando duas semanas depois jurará que a cidade é igual, que nada mudou, até saber que o “sem queixo” do bar morreu, e que a loja de artigos sexuais acabou e agora vendem sorvetes lá. Mas se reparar melhor verá que não existe nenhuma livraria. Na verdade só há uma, é evangélica de propaganda maciça, em que o fiel se vê obrigado a comprar para mostrar que é da congregação, livrando-se de comentários no templo, como “esse aí nunca comprou nem uma bíblia na minha loja”. Outros da loja “Adonai” dirão que não comprou nem um saco de salgadinhos. Em horas de trabalho, a cidade está cheia de gente, homens e mulheres, fazendo alguma coisa, normalmente passeando, um passeio custa um sorvete que se come a meio do passeio. Sai barato. No verão vive-se da praia, no inverno o desemprego cai e não se pode trabalhar. Explicar é impossível sem esbarrar em conceitos, preceitos e preconceitos. Dirão que a explicação é pura propaganda, a novela ainda diverte, como a dona do bar que fica encantada no balcão, apreciando as cenas sem tirar os olhos da TV em frente, mas sem errar o troco. Quando acaba o capítulo, vai lá para fora pegar um ar, porque o balcão fica perto do banheiro, e quando alguém entra no bar, pergunta “o que quer ?”, porque dependendo do que o freguês quer, ela nem precisa perder seu tempo para o atender no balcão, lá nos longínquos fundos do estabelecimento...Freguês é apenas um consumidor que paga e a quem se tem que dar troco. Nunca aparece ninguém com dinheiro certo.


O centro comercial da cidade não tem Banco. Menos uma preocupação para os quatro pachorrentos guardas municipais de boné na mão, batendo um papo relaxante e alegre na soleira de uma loja, em frente à viatura. Não há Banco nem livraria. Que mais poderia estar faltando? Um cinema... Mas as lojas de aluguel de cds de filmes fecharam as portas. Não há mais nenhuma, nem nas grandes cidades. Se me perguntarem porquê, eu diria que a realidade que nos atravessa os dias já é um filme, por vezes de puro terror, outras de romance, e outras ainda de propaganda política feita por falsários com diploma e empresa. Dessa propaganda do que fariam se fossem eleitos, não se vê nada feito, o povo reclama por inteiro da candidata eleita, e ninguém consegue explicar por que ganhou. É o milagre sem redenção. Adonai por vezes faz tudo certo por linhas tortas, ou faz sair tudo errado por linhas certas, mas dizem, que o amanhã não é ainda o hoje, e que quando chegar trará a esperança do depois de amanhã, cortando o passado para sempre.


Não há doentes nem pobres nas ruas. Desses, uns ficam em casa porque não têm saúde, outros por vergonha de não terem dois reais para tomar um sorvete instantâneo que derrete imediatamente com o calor de quase 40 graus. E nem têm roupa por mais simples que seja que não os deixem envergonhados com as pessoas simples que passam pela rua, desocupadas. E se perguntam, esses envergonhados, o que não entendem de um mundo em que uns desocupados têm dinheiro e outros não têm. Será porque não têm partido, ou esqueceram que lhes venderam os votos? Não procurei saber nem perguntei, porque sem livrarias, não acredito que me pudessem responder. Nem universidade existe por ali.



Há um “lojão” na cidade onde se vende tudo a preço igual ou inferior ao de supermercado, e até pacotes de cigarro têm desconto. Não é das coisas para se entenderem, apenas para se saber que existem, mas as prateleiras que antes estavam cheias de pacotes, mostram suaves manchas de pacotes de tabaco cortado, a preço muito mais barato. Com um pacote daqueles se fazem cerca de 120 cigarros e custa 6,00 reais cada um incluindo dois livrinhos de papel para enrolar. A mesma quantidade de cigarros comuns, vendidos em pacotes de 20 custaria 40 reais mais dois livrinhos de papel de enrolar que custariam mais dois reais. Para alegrar a vida sem livraria, sem tabaco, sem cinema, só drogas, sexo e cerveja podem – mas não devem – substituir. É como se estivessem empurrando a sociedade para um novo tipo de consumo. Tudo na calada da política. A impressão que se tem é que foi um enorme desperdício todo aquele imenso dinheiro usado em propaganda política. Um desperdício. Nunca muda o que tem que mudar, como usar o nome de seu deus em vão para fazer comércio.  


® Rui Rodrigues    

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