Ou... De lembranças sujas do colégio.
(Nota: Contado por um
casal no Bar do Chopp Grátis, num dia em que a seleção do Brasil perdeu para a
Alemanha por 7x1 e se ouviram as mesmas vaias que se vinham repetindo amiúde
nas ruas e nos estádios e que agora foram substituídas por tremendos panelaços.
Este texto é um resumo)
Vandita
não era bonita na verdadeira acepção da palavra, mas não era feia. Tinha um
leve buço, é verdade, coisa herdada de sua família originária da Macedônia, e
um rosto meio para o grandalhão que acompanhava as proporções do resto do
corpo. Sabia perfeitamente que quando a convidavam para festas no colégio, o
faziam para que as outras meninas pudessem ter com quem comparar a sua beleza.
Elas eram mais disputadas pelo universo masculino. Ela compensava isso com a
sua fé nos caminhos que traçara para o futuro. Teria seu futuro
independentemente da beleza. Não queria seria notada pelos homens. Queria notar
os homens e escolher os que desejasse. Não nascera para dona de casa. Também
não nascera para ser doutora ou prêmio Nobel. Para ela, havia muitos modos de
ser feliz, e a falta de instrução, educação, podia ser compensada com algo que
lhe desse mais independência e lhe permitisse sobrepor-se a essa classe média
instruída, esnobe, segura nos passos e no olhar altivo, com cara de quem sabe
tudo. Ela sabia que eles sabiam quase tudo, mas sobreviveria bem mesmo sem
saber nada. Seus pais comunistas vieram para o Brasil onde fizeram modesta fortuna.
Falavam maravilhas do comunismo, mas gostavam de ter dinheiro. Ela achava que
dinheiro não era necessário ganhar: Bastava que os outros o compartissem com
ela, pouco ou muito, de acordo com a sua camaradagem. Tinha certeza que havia sempre
gente com bom coração neste mundo, disposta a dividir e muitos mais idiotas que
queriam mostrar seu bom coração, muitas vezes por um falso orgulho de mostrar
que podem ajudar estando, portanto, por cima como a nata no leite. Pelo menos
naquela oportunidade. Com muito jeito se poderia conseguir tudo: Documentos
falsos, diplomas falsos, para ter o que todos à sua volta tinham, mas, tal como
os cleptomaníacos, o teria fazendo esforço, sim, mas sem os procedimentos
longos, cansativos, como por exemplo estudar, trabalhar. Mesmo no trabalho, os
outros trabalhariam para ela. E foi assim que foi fazendo amizades onde poderia
encontrar o que tanto buscava: A árvore da vida, que, em se abanando com força,
tudo que se queira cai: Marido, amante, dinheiro, aventura. Adorava aventuras,
fazer o papel de “intrusa vencedora”, a “coração valente feminina”. E
completamente sem escrúpulos. De modo geral sua vida se baseava em alguns
princípios fundamentais, tais como ser independente, diferente, ter sempre
razão por desistência de opositores da arena de discussões, nunca levar adiante
discussões em que perderia fatalmente, não dar importância a discussões
perdidas, fingir-se de morta para depois dar o troco, fazer com prazer o que os
outros detestam: Aborto, fumar maconha, mandar – interiormente - os padres pra
puta que os pariu, mas beijar-lhes a mão se fosse conveniente. Podia facilmente
tornar-se um capacho de alguma outra pessoa se vislumbrasse que depois poderia
tirar partido dessa situação. Representava na vida como ator de famosa peça de
teatro. E copiou de alguns filmes a que tinha assistido aquele olhar superior
que transforma um inútil num prêmio Nobel, técnica apreendida da juventude de
então com a qual convivia na alta sociedade brasileira no tempo do uísque com
guaraná. Deve ter sido na Universidade Cândido Mendes que a polícia do Estado,
em pleno regime militar, fez um corredor polonês na saída de estudantes
“revolucionários” que protestavam contra a censura e a liberdade. Queriam
democracia. Algumas estudantes tiveram o fígado rompido, algumas perderam a
virgindade, muitos machucados, é o que diziam e foi o que ela disse a todos sem
sequer ter estado lá. Não há uma única foto dela mostrando que tenha
participado em algo contra o regime militar nessas manifestações corriqueiras
de rua, universidades, instituições, mas, no entanto, a todos disse que
participara. Uma coisa era certa. A aulas ela não ia. Pensavam alternativamente
que estaria participando de reuniões, em grupos de “baderna”, ou no trabalho
para sobreviver. Ela realmente não tinha queda pelos estudos. Eram
completamente desnecessários, e os diplomas apenas serviam para dar “status”
para engravatados “black-tie”. Ganhou fama nesse meio e um dia foi abordada
para fazer parte de um movimento revolucionário. Era uma aventura que a poderia
levar muito longe se a célula do movimento a que se afiliara fizesse um bom
trabalho e o movimento assumisse o poder. Aquele povo pobre, campestre ou
trabalhador das cidades, bucólico e sem instrução, se bem dirigido poderia
formar um exército. Quem sabe, até países do leste europeu pudessem ajudar no
movimento. Cuba certamente. Mais tarde se regozijaria de ver como entrava
dinheiro desses países para ajudarem na causa. Uma boa parte era gasta em
diversão pelo grupo. Vandita faria qualquer coisa. Qualquer coisa mesmo, para
viver sem ter que ir todo dia para o escritório, preparar almoço para o marido,
costurar um par de meias. Seu corpo se bem arrumado, tanto poderia parecer o de
uma mulher bem apessoada ou de um guerrilheiro feroz. Era uma aventura viver
num completo disfarce, saber que os outros pensavam que ela era uma coisa e era
na realidade o oposto completo . Disfarçar-se, passar desapercebida, ser
perseguida por todas as forças militares e mesmo assim se dar ao luxo de ir
tomar uma cerveja no Amarelinho, em pleno centro da cidade, dirigindo uma moto.
Era tarada por motos. O que a deixava mais feliz era quando algum rapaz da
classe média a convidava para sair no carro dele, crente que no meio do passeio
transaria com ela. Naquele tempo não havia motéis. Só havia um prédio meio
moderno ali na Barra da Tijuca que alugava quartos para transar. Ficava no
final da ponte no sentido de quem ia pela Niemeyer, mas não havia ponte por
aquela época. A viagem até a Barra da Tijuca se fazia pelo Alto da Boavista.
Vandita fazia-se de menina difícil, mas aos poucos ia permitindo uma mão aqui,
outra lá, mas não em seus órgãos genitais a princípio. Então de repente,
permitia, mas interrompia-lhe os movimentos. O desejo do rapaz aumentava até
quase a loucura. Fazia-o sentir que a qualquer momento transariam, mas enquanto
ele fechava os olhos quando a beijava, enternecido, amoroso, entregando-se ao
desejo, ela os mantinha abertos, com um leve sorriso no rosto. Para ele, o
sorriso dela era de picardia, de conivência, de condescendência e
companheirismo, mas ela sabia que não. O que ela sentia era um prazer
antecipado pela frustração que o rapaz sentiria um pouco mais tarde, ao final
do passeio. Durante o jantar num restaurante que havia no começo da subida para
o Alto da Boavista, do outro lado da rua onde havia uma capela, falavam de
muita coisa relacionada com música, cantores, festivais da canção, movimentos
estudantis nas ruas de Paris, Jean Paul Sartre, cujos livros ela jamais lera.
Nem do Neruda. Nunca lera ou leria algum livro. Para ela os livros eram uma
babaquice melosa, fosse qual fosse o conteúdo, totalmente incompreensível para
ela. Nesses momentos, quando ela percebia que o rapaz tinha simpatia pela
esquerda, até poderia transar como transou algumas vezes. Porém, se ele se
mostrasse de direita, ela prosseguia em seu plano de se divertir e finalmente
gozar com a cara dele. Esse rapaz conseguiu que ela fosse até a porta do prédio
de três andares na Barra que alugava quartos. Ficaram no carro uns instantes se
beijando, acariciando-se. No fundo o rapaz em si não lhe interessava, mas ela
estava a fim de ir o mais longe que pudesse sem se entregar. Seu prazer maior
seria não se entregar para o mauricinho, ou Teddy Boy como se chamava na época
aos mauricinhos. Acariciou e chupou-lhe o membro, parando antes que ele
gozasse. O rapaz convidou-a então para saírem do carro e subirem para um
quarto. Ela disse que não, que não podia porque já era tarde, se tinha perdido
no tempo e teria que voltar antes que seu pai, com quem ela vivia e que trabalhava
de noite, chegasse em casa. Ele entrou em delírio. Tentou convencê-la a subir.
Então, ela sacou de uma 9mm, encostou-a na cabeça dele e disse-lhe que a
levasse até o mais próximo ponto de ônibus. Antes de chegarem ao ponto, ela
baixou a arma e encostou o cano nas costelas dele. Já no ponto ainda vazio
àquela hora da madrugada, ordenou que ele saísse do carro e abalou a toda a
velocidade no caminho de volta. Havia um sorriso de pura felicidade quando ela
chegou à célula terrorista. Ninguém lhe perguntou onde andara, o que fizera,
nem ela contou. O seu prazer, o seu poder, eram coisas absolutamente pessoais,
segredos íntimos. Era dessas mulheres das quais ninguém sabe a vida que
realmente leva. Ri para dentro, normalmente em banheiros, ou em quartos onde
esteja sozinha. É capaz de aguardar o final do dia até que finalmente possa
rever os acontecimentos e dar sonoras gargalhadas. Os sorrisos e risos que dava,
para quem compartilhava sua vida, eram repetições de lembranças antigas de seus
tempos de criancinha. Agora, já mais madura não havia qualquer traço emotivo em
sua expressão corporal, embora pudesse haver indícios. Aprendera a representar.
Seu ídolo era Che Guevara. Fez uns dois ou três abortos por transar apenas pela
vontade de transar, porque nesses momentos nunca estava prevenida com
preservativos. Achava que ao natural era muito melhor, pele com pele, sentir o
jorro penetrar-lhe as entranhas e depois lhe escorrer pelas pernas. Era como se
também tivesse gozado. Um dia, depois de transar com um companheiro com quem
costumava fazer sexo para se distrair, limpou apenas as pernas e saiu de moto
pela noite. Largou-a na Praça Saens Peña na Tijuca e esperou no meio fio.
Apareceu um Teddy Boy que a convidou para entrar no carro. Ela entrou e disse
que queria dar uma rapidinha antes que seu noivo chegasse. Foram para uma rua
ali perto, escura, um beco, e disse-lhe que queria que ele a chupasse. Na
esperança de prêmio maior, o Teddy Boy deu-lhe todo o prazer que imaginava
estar lhe dando e mais um adicional que ele não sabia, mas ela sim:
Indiretamente ele estava chupando o gozo de um camarada de esquerda da célula
onde ela se escondia. Então lhe disse que tinham demorado muito, seu namorado
era muito desconfiado, perigoso, e que ficava para outro dia. Deu-lhe um
telefone falso que o rapaz anotou com toda a esperança. Ela cheirava bem, era
macia. Assaltou Bancos, fez seqüestros, mas nunca entrou na guerrilha do
Araguaia. Dizem que sim, mas só fez algumas visitas para ficar a par dos
acontecimentos, do que se passava por lá. Sabia manejar armas, deu alguns
tiros, mas nunca matou ninguém nem feriu. Sua vida era uma negação. Nunca
conseguiu atingir qualquer objetivo por si mesma, no que dependesse dela. Sua
vida sempre fora de “faz de conta” em tudo. Vivia de aparências. No colégio alegava
que trabalhava para viver e que por isso tinha que faltar às aulas. Colegas de
escola - se casou com um deles mais por gratidão do que por qualquer outra
coisa - davam-lhe cola, faziam-lhe as provas. Um ou dois apenas sabiam que ela
pertencia a uma célula terrorista. Quando a filha nasceu arrependeu-se, mas era
tarde. Tinha casado, e teve que dizer para o marido que seu filho nascera de
sete meses. Não era dele. Com o fim do regime militar, a esquerda assumiu o
poder. Convidaram-na para ser secretária em um ministério. Por total falta de
capacidade por falta de estudos, os companheiros arranjaram-lhe um diploma de
filosofia em Matemática. Não tinha a mínima idéia de como se resolvem equações
matemáticas e nunca soube como usar uma régua de cálculo, mas mesmo para o
simples posto de secretária lhe arranjaram uma auxiliar que fazia todo o
trabalho. Um dia, um chefão influente, com uma filosofia de vida muito similar,
que levara toda a sua vida apenas falando, fazendo palanques, passou pela
repartição e convidou-a para jantar. Não foi apenas um jantar nem apenas uma
vez que saíram, mas em um par de semanas ela já tinha sido nomeada e aprovada
como... Ah... Esta estória é apenas sobre lembranças de colégio. Já deveria ter
parado uns dois parágrafos atrás. Sinto muito!
Mas
porquê 13 anos de solidão? (Detesto quando faço uma pergunta para que eu mesmo
responda, porque podem pensar que o faço pra mostrar erudição que não
tenho...). Sim... Porquê? Pelo simples fato de ter sido durante 13 anos, de
militância nas células do terror que se habituou a não amar, a não ter amigos,
a viver só, mesmo acompanhada de um mar de companheiros.
Fim
da estória fiquitiça.
®
Rui Rodrigues.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Grato por seus comentários.