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quinta-feira, 11 de junho de 2015

Um conto “fiquitiço” de 13 anos de solidão.


Ou... De lembranças sujas do colégio.

(Nota: Contado por um casal no Bar do Chopp Grátis, num dia em que a seleção do Brasil perdeu para a Alemanha por 7x1 e se ouviram as mesmas vaias que se vinham repetindo amiúde nas ruas e nos estádios e que agora foram substituídas por tremendos panelaços. Este texto é um resumo)



Vandita não era bonita na verdadeira acepção da palavra, mas não era feia. Tinha um leve buço, é verdade, coisa herdada de sua família originária da Macedônia, e um rosto meio para o grandalhão que acompanhava as proporções do resto do corpo. Sabia perfeitamente que quando a convidavam para festas no colégio, o faziam para que as outras meninas pudessem ter com quem comparar a sua beleza. Elas eram mais disputadas pelo universo masculino. Ela compensava isso com a sua fé nos caminhos que traçara para o futuro. Teria seu futuro independentemente da beleza. Não queria seria notada pelos homens. Queria notar os homens e escolher os que desejasse. Não nascera para dona de casa. Também não nascera para ser doutora ou prêmio Nobel. Para ela, havia muitos modos de ser feliz, e a falta de instrução, educação, podia ser compensada com algo que lhe desse mais independência e lhe permitisse sobrepor-se a essa classe média instruída, esnobe, segura nos passos e no olhar altivo, com cara de quem sabe tudo. Ela sabia que eles sabiam quase tudo, mas sobreviveria bem mesmo sem saber nada. Seus pais comunistas vieram para o Brasil onde fizeram modesta fortuna. Falavam maravilhas do comunismo, mas gostavam de ter dinheiro. Ela achava que dinheiro não era necessário ganhar: Bastava que os outros o compartissem com ela, pouco ou muito, de acordo com a sua camaradagem. Tinha certeza que havia sempre gente com bom coração neste mundo, disposta a dividir e muitos mais idiotas que queriam mostrar seu bom coração, muitas vezes por um falso orgulho de mostrar que podem ajudar estando, portanto, por cima como a nata no leite. Pelo menos naquela oportunidade. Com muito jeito se poderia conseguir tudo: Documentos falsos, diplomas falsos, para ter o que todos à sua volta tinham, mas, tal como os cleptomaníacos, o teria fazendo esforço, sim, mas sem os procedimentos longos, cansativos, como por exemplo estudar, trabalhar. Mesmo no trabalho, os outros trabalhariam para ela. E foi assim que foi fazendo amizades onde poderia encontrar o que tanto buscava: A árvore da vida, que, em se abanando com força, tudo que se queira cai: Marido, amante, dinheiro, aventura. Adorava aventuras, fazer o papel de “intrusa vencedora”, a “coração valente feminina”. E completamente sem escrúpulos. De modo geral sua vida se baseava em alguns princípios fundamentais, tais como ser independente, diferente, ter sempre razão por desistência de opositores da arena de discussões, nunca levar adiante discussões em que perderia fatalmente, não dar importância a discussões perdidas, fingir-se de morta para depois dar o troco, fazer com prazer o que os outros detestam: Aborto, fumar maconha, mandar – interiormente - os padres pra puta que os pariu, mas beijar-lhes a mão se fosse conveniente. Podia facilmente tornar-se um capacho de alguma outra pessoa se vislumbrasse que depois poderia tirar partido dessa situação. Representava na vida como ator de famosa peça de teatro. E copiou de alguns filmes a que tinha assistido aquele olhar superior que transforma um inútil num prêmio Nobel, técnica apreendida da juventude de então com a qual convivia na alta sociedade brasileira no tempo do uísque com guaraná. Deve ter sido na Universidade Cândido Mendes que a polícia do Estado, em pleno regime militar, fez um corredor polonês na saída de estudantes “revolucionários” que protestavam contra a censura e a liberdade. Queriam democracia. Algumas estudantes tiveram o fígado rompido, algumas perderam a virgindade, muitos machucados, é o que diziam e foi o que ela disse a todos sem sequer ter estado lá. Não há uma única foto dela mostrando que tenha participado em algo contra o regime militar nessas manifestações corriqueiras de rua, universidades, instituições, mas, no entanto, a todos disse que participara. Uma coisa era certa. A aulas ela não ia. Pensavam alternativamente que estaria participando de reuniões, em grupos de “baderna”, ou no trabalho para sobreviver. Ela realmente não tinha queda pelos estudos. Eram completamente desnecessários, e os diplomas apenas serviam para dar “status” para engravatados “black-tie”. Ganhou fama nesse meio e um dia foi abordada para fazer parte de um movimento revolucionário. Era uma aventura que a poderia levar muito longe se a célula do movimento a que se afiliara fizesse um bom trabalho e o movimento assumisse o poder. Aquele povo pobre, campestre ou trabalhador das cidades, bucólico e sem instrução, se bem dirigido poderia formar um exército. Quem sabe, até países do leste europeu pudessem ajudar no movimento. Cuba certamente. Mais tarde se regozijaria de ver como entrava dinheiro desses países para ajudarem na causa. Uma boa parte era gasta em diversão pelo grupo. Vandita faria qualquer coisa. Qualquer coisa mesmo, para viver sem ter que ir todo dia para o escritório, preparar almoço para o marido, costurar um par de meias. Seu corpo se bem arrumado, tanto poderia parecer o de uma mulher bem apessoada ou de um guerrilheiro feroz. Era uma aventura viver num completo disfarce, saber que os outros pensavam que ela era uma coisa e era na realidade o oposto completo . Disfarçar-se, passar desapercebida, ser perseguida por todas as forças militares e mesmo assim se dar ao luxo de ir tomar uma cerveja no Amarelinho, em pleno centro da cidade, dirigindo uma moto. Era tarada por motos. O que a deixava mais feliz era quando algum rapaz da classe média a convidava para sair no carro dele, crente que no meio do passeio transaria com ela. Naquele tempo não havia motéis. Só havia um prédio meio moderno ali na Barra da Tijuca que alugava quartos para transar. Ficava no final da ponte no sentido de quem ia pela Niemeyer, mas não havia ponte por aquela época. A viagem até a Barra da Tijuca se fazia pelo Alto da Boavista. Vandita fazia-se de menina difícil, mas aos poucos ia permitindo uma mão aqui, outra lá, mas não em seus órgãos genitais a princípio. Então de repente, permitia, mas interrompia-lhe os movimentos. O desejo do rapaz aumentava até quase a loucura. Fazia-o sentir que a qualquer momento transariam, mas enquanto ele fechava os olhos quando a beijava, enternecido, amoroso, entregando-se ao desejo, ela os mantinha abertos, com um leve sorriso no rosto. Para ele, o sorriso dela era de picardia, de conivência, de condescendência e companheirismo, mas ela sabia que não. O que ela sentia era um prazer antecipado pela frustração que o rapaz sentiria um pouco mais tarde, ao final do passeio. Durante o jantar num restaurante que havia no começo da subida para o Alto da Boavista, do outro lado da rua onde havia uma capela, falavam de muita coisa relacionada com música, cantores, festivais da canção, movimentos estudantis nas ruas de Paris, Jean Paul Sartre, cujos livros ela jamais lera. Nem do Neruda. Nunca lera ou leria algum livro. Para ela os livros eram uma babaquice melosa, fosse qual fosse o conteúdo, totalmente incompreensível para ela. Nesses momentos, quando ela percebia que o rapaz tinha simpatia pela esquerda, até poderia transar como transou algumas vezes. Porém, se ele se mostrasse de direita, ela prosseguia em seu plano de se divertir e finalmente gozar com a cara dele. Esse rapaz conseguiu que ela fosse até a porta do prédio de três andares na Barra que alugava quartos. Ficaram no carro uns instantes se beijando, acariciando-se. No fundo o rapaz em si não lhe interessava, mas ela estava a fim de ir o mais longe que pudesse sem se entregar. Seu prazer maior seria não se entregar para o mauricinho, ou Teddy Boy como se chamava na época aos mauricinhos. Acariciou e chupou-lhe o membro, parando antes que ele gozasse. O rapaz convidou-a então para saírem do carro e subirem para um quarto. Ela disse que não, que não podia porque já era tarde, se tinha perdido no tempo e teria que voltar antes que seu pai, com quem ela vivia e que trabalhava de noite, chegasse em casa. Ele entrou em delírio. Tentou convencê-la a subir. Então, ela sacou de uma 9mm, encostou-a na cabeça dele e disse-lhe que a levasse até o mais próximo ponto de ônibus. Antes de chegarem ao ponto, ela baixou a arma e encostou o cano nas costelas dele. Já no ponto ainda vazio àquela hora da madrugada, ordenou que ele saísse do carro e abalou a toda a velocidade no caminho de volta. Havia um sorriso de pura felicidade quando ela chegou à célula terrorista. Ninguém lhe perguntou onde andara, o que fizera, nem ela contou. O seu prazer, o seu poder, eram coisas absolutamente pessoais, segredos íntimos. Era dessas mulheres das quais ninguém sabe a vida que realmente leva. Ri para dentro, normalmente em banheiros, ou em quartos onde esteja sozinha. É capaz de aguardar o final do dia até que finalmente possa rever os acontecimentos e dar sonoras gargalhadas. Os sorrisos e risos que dava, para quem compartilhava sua vida, eram repetições de lembranças antigas de seus tempos de criancinha. Agora, já mais madura não havia qualquer traço emotivo em sua expressão corporal, embora pudesse haver indícios. Aprendera a representar. Seu ídolo era Che Guevara. Fez uns dois ou três abortos por transar apenas pela vontade de transar, porque nesses momentos nunca estava prevenida com preservativos. Achava que ao natural era muito melhor, pele com pele, sentir o jorro penetrar-lhe as entranhas e depois lhe escorrer pelas pernas. Era como se também tivesse gozado. Um dia, depois de transar com um companheiro com quem costumava fazer sexo para se distrair, limpou apenas as pernas e saiu de moto pela noite. Largou-a na Praça Saens Peña na Tijuca e esperou no meio fio. Apareceu um Teddy Boy que a convidou para entrar no carro. Ela entrou e disse que queria dar uma rapidinha antes que seu noivo chegasse. Foram para uma rua ali perto, escura, um beco, e disse-lhe que queria que ele a chupasse. Na esperança de prêmio maior, o Teddy Boy deu-lhe todo o prazer que imaginava estar lhe dando e mais um adicional que ele não sabia, mas ela sim: Indiretamente ele estava chupando o gozo de um camarada de esquerda da célula onde ela se escondia. Então lhe disse que tinham demorado muito, seu namorado era muito desconfiado, perigoso, e que ficava para outro dia. Deu-lhe um telefone falso que o rapaz anotou com toda a esperança. Ela cheirava bem, era macia. Assaltou Bancos, fez seqüestros, mas nunca entrou na guerrilha do Araguaia. Dizem que sim, mas só fez algumas visitas para ficar a par dos acontecimentos, do que se passava por lá. Sabia manejar armas, deu alguns tiros, mas nunca matou ninguém nem feriu. Sua vida era uma negação. Nunca conseguiu atingir qualquer objetivo por si mesma, no que dependesse dela. Sua vida sempre fora de “faz de conta” em tudo. Vivia de aparências. No colégio alegava que trabalhava para viver e que por isso tinha que faltar às aulas. Colegas de escola - se casou com um deles mais por gratidão do que por qualquer outra coisa - davam-lhe cola, faziam-lhe as provas. Um ou dois apenas sabiam que ela pertencia a uma célula terrorista. Quando a filha nasceu arrependeu-se, mas era tarde. Tinha casado, e teve que dizer para o marido que seu filho nascera de sete meses. Não era dele. Com o fim do regime militar, a esquerda assumiu o poder. Convidaram-na para ser secretária em um ministério. Por total falta de capacidade por falta de estudos, os companheiros arranjaram-lhe um diploma de filosofia em Matemática. Não tinha a mínima idéia de como se resolvem equações matemáticas e nunca soube como usar uma régua de cálculo, mas mesmo para o simples posto de secretária lhe arranjaram uma auxiliar que fazia todo o trabalho. Um dia, um chefão influente, com uma filosofia de vida muito similar, que levara toda a sua vida apenas falando, fazendo palanques, passou pela repartição e convidou-a para jantar. Não foi apenas um jantar nem apenas uma vez que saíram, mas em um par de semanas ela já tinha sido nomeada e aprovada como... Ah... Esta estória é apenas sobre lembranças de colégio. Já deveria ter parado uns dois parágrafos atrás. Sinto muito!

Mas porquê 13 anos de solidão? (Detesto quando faço uma pergunta para que eu mesmo responda, porque podem pensar que o faço pra mostrar erudição que não tenho...). Sim... Porquê? Pelo simples fato de ter sido durante 13 anos, de militância nas células do terror que se habituou a não amar, a não ter amigos, a viver só, mesmo acompanhada de um mar de companheiros. 

Fim da estória fiquitiça.


® Rui Rodrigues.   

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