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domingo, 14 de junho de 2015

Compra-se Reino sem estar à Venda.


(Crônica burlesca)
“Burlesca” está mais relacionada a burla e Berlusconni do que a pantomima. O que parece ser uma referência a religião, asseguro que não é, nem a costumes, mas se o leitor achar que tem a haver com política, provavelmente estará cheio de razão.Quanto ao país ao qual a crônica se refere e aos personagens podem ser de qualquer desses do mundo, ou o próprio mundo. A crônica em si não tem o mínimo valor literário, e se alguém a confundir com uma parábola ou fábula, não estaria longe da verdade. Se me perguntarem qual a verdade, não sei qual seja.)
Não consta nas crônicas de Avalon, nem das de Fernão Mendes Pinto. Shakespeare não ia tanto pelo burlesco, por isso se tivesse tido conhecimento das condições, história e do lugar deste reino, a que as crônicas de Frei Brito de Pedregoso se referem, não se pronunciaria a respeito, quase que certamente. Quem conhece razoavelmente Shakespeare bem sabe que não o faria. Podem procurar nas crônicas Kojiki, mas não alude a este reino. Nem Heródoto, que tanto andou pelo mundo, porque o reino surgiu depois que ele morreu. O Rei Arthur nem escrevia. Sua fama veio de suas obras na vida.
E assim como “no entanto ela se move”, também todos esses cronistas, de certa forma, falam deste reino – a que as Crônicas se referem.Frei Brito de Pedregoso foi um monge eremita que vivia numa gruta convivendo com escorpiões de ferrão mortal, mosquitos que lhe chupavam o sangue, moscas que lhe disputavam a comida, e passava os fins de semana num convento de freiras – o convento de Lindosa - onde relaxava num excelente banho e sabia das novidades do reino. Findo o remanso levava em seu bornal alguns doces de ovos, sanduíches e coxas de galinha empanadas. Levava também penas de pato para fazer suas penas de escrever, um vidro com tinta de fuligem diluída em água, alguns pergaminhos em branco, e uma lata de nafta do Cazaquistão para iluminar a caverna e poder escrever. Saudade mesmo levava de uma noviça rebelde e de uma freira mais madura de quem era amante. A noviça, não ele. Ele era das duas, por absoluta força da carne que todos os dias lhe gritava por amor para aliviar o cérebro. Nessa noite pegou fogo ao cordão que emergia da nafta, e à luz bruxuleante da chama continuou escrevendo sua crônica que começava assim:

Saibam quantos esta lerem que não nasci em Pedregoso, não me chamo Brito e não sou Frade. De minhas artes com a pena, de pato e não de ganso, que não tenho patrono que me pague os custos - nem há gansos por aqui de onde depená-las – fabriquei certidão mais certificada e fidedigna do que as que os bispos costumam emitir, e assim tenho acesso a todos os segredos da região e arredores, quer por parte dos templos e sucursais, quer dos governos e inimigos. Através dos bispos, e pelos segredos das confissões, escuto o povo.
Deixo registro para que saibam no futuro como que transgredindo as leis se sabem as verdades. Quem vive nelas nem sempre as sabe. Mas para se poderem transgredir é preciso que se esteja do lado delas.
Não foi talvez o caso do Bispo de São Lourenço do Rio Abaixo, uma pequena cidade nas cabeceiras do rio Xisto, que me chamou às pressas para ajudá-lo a resolver um assunto, mas foi o meu, porque me aproveitei de sua boa fé. Deu-se conta o prelado que no convento da Lindosa a madre superiora já estava meio que passada da idade, não enxergava bem, ouvia mal, falava pouco e quase não andava, e que talvez por isso, as noviças do convento não fossem escolhidas tanto pelos que os pais, irmãos ou maridos podiam pagar, por fidalgos, para mantê-las assexuadas e puras, porém castigadas, mas por aparentarem simplicidade, humildade e de poucas posses, sendo assim a internação um favor sem critério, dando origem a que algumas das noviças não só pervertessem uma ou outra freira já mais experiente como também obtivessem favores de bispos, padres, e até fidalgos. Em suma, em vez de convento seria uma casa de prostituição disfarçada, sem o conhecimento da igreja. Vim para a gruta, fiquei aqui por alguns dias e já sujo, fedorento, porque aqui não há água e frade não usa perfume, dirigi-me ao convento onde fui muito bem acolhido. Mostrei-lhes minhas credenciais, falsas, e fiquei lá uns dias. Foi uma noviça, Alexandra, quem me banhou sob a supervisão de sua superiora, uma freira chamada Venância. Da primeira vez me banharam como se fossem enfermeira e aprendiz de enfermeira, sem dizerem palavra. Depois nos banhávamos os três também mudos, apenas fazendo o que o corpo pedia e a censura da mente não conseguia bloquear, e foi então que conheci a tripa de porco passada na manteiga, crua, que elas mesmas me introduziram para não criarem problemas no convento. Não sei até hoje o que é melhor, das duas, se a experiência ou a inexperiência. Minha missão poderia ter terminado ali, com um simples relatório para o Bispo, mas resolvi ir mais longe, porque não era eu apenas o único a banhar-se. Fiquei assim de tocaia semana após semana, causando apreensão no Bispo, que tranqüilizei descrevendo-lhe apenas parte de meu plano. Disse-me, no entanto, que me apressasse para que não desconfiassem. Sem a mínima intenção de fazer-lhe a vontade, descobri que não só o dono do armazém fazia visitas mais demoradas no convento, como também o almocreve que sempre por ali passava, o padre da pequena igreja, e cidadãos abastados que viviam de suas criações de coelhos, galinhas, gado, e até ferreiros e sapateiros. 


O Convento era definitivamente um bordel disfarçado por ter uma Madre Superiora que quase não enxergava, quase não ouvia e por isso nem podia entender muito bem, pouco falava por não ter assunto, e não se movimentava por causa de um desentendimento entre os músculos já idosos e os ossos. Sem força nos músculos, os ossos não ficavam em pé. As finanças do Convento eram parcas, míseras, porque o Bispo segurava o dinheiro, mas não faltava comida embora fosse frugal. Algumas freiras antigas benziam-se, mas não diziam nada por medo das outras. As outras acharam que tudo era em nome do amor, da paz, da caridade e até pelo bem da causa, pensando que o dinheiro que se ganhava por lá ia para o santo Padre, lá em Roma, e que o sacrifício, se é que se pode chamar a isso de sacrifício, era uma prova de sua religiosidade e de sua fé e caridade. As celas, onde ninguém podia entrar, eram de luxo. Fora delas, o convento estava decaído, miserável, embora limpo, para que se desse essa exata impressão de que não havia dinheiro para cuidar, mas que quem lá estava trabalhava. Algumas noviças saíram pelas ruas das aldeias pedindo para que, sempre que matassem porcos, lhes guardassem as tripas que alguém do convento viria apanhá-las, porque sabiam como aproveitá-las na culinária, coisa que por aqueles tempos a ninguém passava pela cabeça comer. O barão de Lagredo que dominava uma área da cidade e tinha umas glebas perto do rio, levou certo dia ao convento um alguidar cheio de tripas de porco fresquinhas e ficou por lá mais de meia manhã, saindo na hora do almoço. Fiquei sabendo por Venância que pretendia ele um título de conde e que para tanto precisava das recomendações da Madre Superiora como benemérito do convento, e que do resto ele trataria. Não foi difícil aliar este desejo com as confissões do barão desvendadas em banhos no convento.


A Madre Superiora faleceu de uma queda nas escadas quando não havia ninguém por perto que pudesse ajudá-la. Nesse mesmo dia Venância assumiu interinamente enquanto aguardava autorização do Bispo. Recomendei-a, e confirmada que foi, começou a ir tanta gente ao convento que para não despertar suspeita e antes que fosse tarde demais, Venância arquitetou um plano. Onde havia um nicho com a estátua de uma santa, fez um furo na parede e colocou uma pequena mangueira que ligava o olho da estátua a um depósito mais alto do outro lado da parede. No depósito colocava sangue de galinhas misturado com vinagre para não coagular. De vez em quando ela mandava espalhar notícia pelas aldeias e pela cidade, avisando que os pecados do mundo eram muito grandes e que a estátua estava prestes a chorar sangue. Quando a audiência dos que esperavam era muito grande, abria a torneira do depósito, bem devagar, e a estátua lacrimejava lágrimas de sangue. Isso atraiu muita gente para o convento que fez muitas dádivas, moldes de cera, que até me serviram para iluminar minha gruta. O resto era derretido e vendido como cera no armazém da cidade. Em breve o lugar criou fama e a cidade e arredores se encheram de turistas da fé dispostos a assistir ao choro da santa e deixando na cidade boa parte de suas economias.
Com tanto dinheiro entrando nos cofres do convento, as freiras que se calavam por medo viram com regozijo que suas preces eram ouvidas: Venância afastara as noviças pecadoras e as freiras coniventes, porque já não precisava delas e eram até perigosas, e me confessou que em breve iría fazer uma viagem sem volta. Tinha pedido anulação de seus votos de castidade, largaria o hábito e iría para Paris abrir um cabaré. Mas não largaria o hábito por completo. Seu número em Paris seria o de um grupo de “can-can” vestido com roupas de freiras, que excitava muito esse tipo de público completamente tarado por comer o que não deveria.

A cidade progredira muito. O Barão de Lagredo, esse agora exportava carne de porco e enchidos através de uma associação de almocreves que a distribuíam depois de a salgarem, em mulas e burros país afora. A santa continuou chorando por alguns anos, mas depois que um garotinho daqueles irrequietos ficou xeretando pelo convento e descobriu a mangueira do sangue de galinha misturado com vinagre, tudo ruiu. Primeiro por falta de crédito na fé. Depois porque os turistas da fé deixaram de aparecer na região. Finalmente porque os negócios começaram a fracassar. O dinheiro faltou a todos. O padrão de vida caiu. Com tantas dificuldades, a juventude começou a emigrar para outras regiões e até para fora do reino. Faltou mão de obra porque a juventude tinha saído da região e não havia dinheiro para pagá-la. Logo apareceram compradores investidores e empreendedores estrangeiros comprando tudo: ouro, jóias, móveis, utensílios, casas, propriedades. O agora Conde de Lagredo continuou conde só no título que ninguém queria comprar. O Bispo foi destituído. O convento acabou por fechar, mas Venância já estava em Paris com suas belas pernas apresentando números de can-can. Alexandra, a boa noviça, foi junto com ela. Fiquei sozinho, sem as mulheres e sem excitantes banhos semanais. Tal o estrago que fez a ambição de gentes do lugar, e as diabruras de um garoto irrequieto que derrubaram o reino. Nem a fé sobrou. Um dia, num daqueles piores dias em que até a fome lavrava pela região, chegou um sujeito todo vestido de preto, com uma bíblia na mão, gritando a plenos pulmões que quem desse alguma coisa receberia em dobro. 


Não havia nada para dar, a não ser algumas cenouras, couves, uma ou outra batata, e o sujeito abandonou a região depois de passar fome por duas semanas e sem ter devolvido nada quanto mais em dobro. Fé sem dinheiro já não funcionava por lá. Com mais da metade da população emigrada, tudo vendido para estrangeiros, o que resta é uma população semi-idosa lutando para não morrer de fome, até porque quem comprou o que havia por lá foi motivado pelo descanso em tempos de aposentadoria, sem produzir. Pastagens se transformaram em jardins particulares, e, embora a bandeira continue a mesma, aquela pátria já foi vendida.
Tal é a história do reino cuja capital era São Lourenço do Rio Abaixo, e que agora é um amontoado de ruínas que ninguém quer comprar. Mudaram o nome para Convento do Rio Abaixo. Em compensação, como nada mais se produz na região, acabaram-se os ratos. 


® Rui Rodrigues (pelo Frei Brito de Pedregoso que não era de Pedregoso nem de Lagredo). 

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