(No Bar do Chopp Grátis conta-se de tudo que
acontece nesta vida, e mais virgula menos ponto e vírgula, se repassam as
histórias entre uma bebida e outra. É pura diversão, mas muitas vezes se acaba
vendo a vida como ela é. Pelo menos para alguns. Se é verdade ou não, teria que
perguntar a quem contou, e quem contou nem sempre aparece e na maioria das
vezes nem se sabe mais quem foi. A clientela é muito grande. Ah... As fotos! As fotos só servem para ilustração.)
A gorda do 609 morreu. Tinha sido cínica e
dissimulada em toda a sua mais ou menos longa, mais ou menos curta vida.
Ela podia ter morado no 111, no 117, mas até os
dígitos do numero do apartamento dela eram gordos. A vida toda tinha sido uma
ode à gordura sem ser aquela que é doença. A dela era de gula mesmo. Digna de comparar
com Wilza Carla em Saramandaia, e se fosse magra seria um palito dos quadrados.Suas
feijoadas tinham que ser feitas com bastante banha de porco, ter consideráveis
nacos de presunto com pouca carne e muita gordura, tudo na comida era
gordurosa. Tinha três cachorros, todos gordos, o marido era gordo e banana,
segundo ela que afirmava, sempre que tinha oportunidade, que ele concordava com
tudo. Um dia quando o marido discutia com um sujeito, coisa rara por ser
relativamente educado, gritou-lhe a gorda, com a boca gorda, cuspindo gafanhotos gordos:
- Enfia-lhe a porrada!
De vez em quando fumava e não era tabaco. Debaixo
da gordura havia músculos como aqueles dos lutadores japoneses de sumô. Nunca a
vi de sunga, mas quando levava restos da feijoada para os vizinhos já lhe tinha
cuspido no prato, misturado, e dado para os cachorros lamberem. Aquilo era uma
tribufú gorda, nojenta, aquadradada, uma caveira, que só prestava para uma
coisa: Correr atrás de meios, e conseguir - fosse como fosse - obter o que
precisava ou nem precisava mas queria. Assim, mesmo trabalhando nos mais
inferiores escalões do ministério da educação, já conseguiu ir a São Francisco,
Miami, andar pelos “Estates”. Das que comprava granja e punha no nome do irmão,
casa no nome do marido. Mas isso só foi possível depois que o PT assumiu o
governo. Morava em zona nobre do Rio. Quando foi passar uma semana numa dessas
estâncias de férias, notou que a porta de uma casa ao lado estava aberta e o
dono tinha saído. Esquecera de fechar a porta. Não se fez de rogada e telefonou
para uns amigos. Cobrou uma módica quantia de cada um e avisou que tinha uma
casa para alugar. Quando o vizinho chegou teve que botar para fora da casa o
amontoado de colchões de ar que lhe enchiam a sala e os quartos junto com os falsos hóspedes dos quais não tinha recebido nem centavo nem sequer conhecia.
No entanto, e nem é de pasmar, era de uma simpatia
a toda a prova, e de lágrima e sorrisos fáceis. Coisa até de casal de cinema. Enganaria até o santo Papa,
cuja santidade se discute atualmente. Pessoas do trambique são sempre muito
simpáticas. Fazia de conta que o marido não olhava para as outras. Precisava
dele para ficar mais gorda de bolsa. Se tudo ficasse no nome dela, iam
desconfiar, e o Imposto de Renda agora cruza informações.
No velório, lá estava a gorda imóvel em opíparo e luxuoso caixão, rodeada de flores. Só aparecia o rosto que nada se parecia com uma, embora não se pudesse dizer que fosse horrível. Os cachorros não foram ao velório. Aliás, já tinham sido entregues à disposição de um canil especializado em doações. Só ela buscava nos canídeos a consolação para o mundo vazio de sentimentos em que vivia, entre uma tragada e outra que não era de tabaco. Só nessas horas o marido entoldado pela fumaça se atrevia a fechar os olhos, na escuridão, e a comer o que a terra agora iría comer também.
Na saída do velório o marido parou para falar com um vizinho de quem ela não gostava, mas que ele sabia ser um cara legal. Fora pra esse mesmo que ela tinha dito um dia: - Enfia-lhe a porrada, além de lhe ter invadido a casa e lhe colocado um degrau á porta por obra que fez para colocar um cano. Obra ilegal porque a calçada não lhe pertencia. Dizia-lhe esse vizinho:
- E então...Morreu né? São coisas da vida. Lá se
foi... Ela nunca soube que aquele cachorro dela morreu dentro do porta-mala.
Soube?
-Não, cara... Tá maluco? Se ela soubesse me matava.
Foi melhor ter dito que morreu todo suado por causa de uma cobra que o mordeu.
Ela nunca soube disso.
- E os outros, os novos?
- Já doei para uma instituição de caridade. Ninguém
gostava deles. Muito barulhentos, agitados, cagavam em tudo que era lugar e eu
que tinha que limpar com o papel higiênico. Andava sempre com um rolo.
- Ela era religiosa?
- Não... Só fazia despachos para se livrar de “mau
olhado”.
-Mas vocês andavam recebendo um pessoal da Igreja
Evangélica...
- É... Ela se uniu àquele pessoal da igreja para receber
em dobro. Queria ser pastora.
- Você sabe... Quando soube da morte dela me deu
uma vontade de chorar, que o amigo nem imagina...Mas disse para mim mesmo: Esta
vida tem que ser de alegrias, e comecei a rir. Veja que nem estou chorando
agora. Ela deve estar bem entregue por tudo de bem que fez em sua vida.
- Lá em casa todo mundo a suportava bem. Não era
uma coisa assim de renegar, e cozinhava muito bem.
- E daquela vez que você bateu com o carro quando
estava de porre e deu polícia?
- Nos livramos bem. Imagine que ela me arrumou uma identidade falsa de alta patente da polícia. Usávamos para dar carteiradas. Não é que a própria polícia acreditou que eu era um superior deles? Tenho cara, não tenho? Foram uns amigos policiais que conseguiram. Tenho outras carteiras, mas agora vou jogar tudo fora. Estou ficando velho e careca, e a polícia não acredita na velha guarda.
- Nos livramos bem. Imagine que ela me arrumou uma identidade falsa de alta patente da polícia. Usávamos para dar carteiradas. Não é que a própria polícia acreditou que eu era um superior deles? Tenho cara, não tenho? Foram uns amigos policiais que conseguiram. Tenho outras carteiras, mas agora vou jogar tudo fora. Estou ficando velho e careca, e a polícia não acredita na velha guarda.
- E as propriedades?
- Estamos vendendo tudo. As crianças estão
independentes, e ela conseguiu-me aposentadoria no INSS onde ela tem grandes
amigos. Aposentadoria bem gorda por sinal. Manter propriedades sai muito caro
por causa dos impostos.
- Mas me diga...Como ela morreu?
- Bem... Ela sofria de pressão altíssima e de
diabetes. De vez em quando pegava o carro e tinha que levá-la ao hospital. Da
ultima vez que a levei, havia uma confusão na rua e uma das balas perdidas
encontrou a bichinha. Foi um cara com quem ela tinha feito um trato e que nem
pudemos denunciar. Coitada dela. Morreu ali mesmo, pedindo-me um ultimo beijo
que nem dei para que ela não sufocasse.
- Vai viver sozinho agora que ela se foi?
- Que nada... Nunca deixei a regra três. Meus
filhos sabem. Já está preparando as malas.
- É gordinha também?
- Que nada...Magra como um palito. O defeito desta
é que gasta muito, mas para mim quem paga é o governo, graças à defunta e suas
amizades. Tá tudo em casa.
Mas a defunta tinha garganta e alma profundas. O
que era dela, honesto ou não, só a fórceps lhe seria tirado. Nem que tivesse
que chorar copiosamente no céu, ao lado de Jesus, lavando-lhe os pés com seus
cabelos gordurentos.
Por isso que o anúncio de vende-se esta casa de
três quartos cozinha e varanda, com garagem, ainda lá está, atrás do lavabo, ao
lado da área de serviço, bem debaixo da janela da suíte. Sem previsíveis
clientes. E nem foi paga totalmente.
® Rui Rodrigues
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