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terça-feira, 9 de junho de 2015

Crônica sobre o cinismo.



(No Bar do Chopp Grátis conta-se de tudo que acontece nesta vida, e mais virgula menos ponto e vírgula, se repassam as histórias entre uma bebida e outra. É pura diversão, mas muitas vezes se acaba vendo a vida como ela é. Pelo menos para alguns. Se é verdade ou não, teria que perguntar a quem contou, e quem contou nem sempre aparece e na maioria das vezes nem se sabe mais quem foi. A clientela é muito grande. Ah... As fotos! As fotos só servem para ilustração.)

Só se detesta gordura em pessoas irritantes, mas por outros motivos que não a gordura. A gordura só é pejorativa em pessoas irritantes, assim como magreza também o é, e até a forma como se fala, se veste, ou se conversa ou discute. Há pessoas irritantes. Algumas conseguem ser sempre irritantes só no olhar. Nem perfume francês salva.

A gorda do 609 morreu. Tinha sido cínica e dissimulada em toda a sua mais ou menos longa, mais ou menos curta vida.

Ela podia ter morado no 111, no 117, mas até os dígitos do numero do apartamento dela eram gordos. A vida toda tinha sido uma ode à gordura sem ser aquela que é doença. A dela era de gula mesmo. Digna de comparar com Wilza Carla em Saramandaia, e se fosse magra seria um palito dos quadrados.Suas feijoadas tinham que ser feitas com bastante banha de porco, ter consideráveis nacos de presunto com pouca carne e muita gordura, tudo na comida era gordurosa. Tinha três cachorros, todos gordos, o marido era gordo e banana, segundo ela que afirmava, sempre que tinha oportunidade, que ele concordava com tudo. Um dia quando o marido discutia com um sujeito, coisa rara por ser relativamente educado, gritou-lhe a gorda, com a boca gorda, cuspindo gafanhotos gordos: - Enfia-lhe a porrada!


De vez em quando fumava e não era tabaco. Debaixo da gordura havia músculos como aqueles dos lutadores japoneses de sumô. Nunca a vi de sunga, mas quando levava restos da feijoada para os vizinhos já lhe tinha cuspido no prato, misturado, e dado para os cachorros lamberem. Aquilo era uma tribufú gorda, nojenta, aquadradada, uma caveira, que só prestava para uma coisa: Correr atrás de meios, e conseguir - fosse como fosse - obter o que precisava ou nem precisava mas queria. Assim, mesmo trabalhando nos mais inferiores escalões do ministério da educação, já conseguiu ir a São Francisco, Miami, andar pelos “Estates”. Das que comprava granja e punha no nome do irmão, casa no nome do marido. Mas isso só foi possível depois que o PT assumiu o governo. Morava em zona nobre do Rio. Quando foi passar uma semana numa dessas estâncias de férias, notou que a porta de uma casa ao lado estava aberta e o dono tinha saído. Esquecera de fechar a porta. Não se fez de rogada e telefonou para uns amigos. Cobrou uma módica quantia de cada um e avisou que tinha uma casa para alugar. Quando o vizinho chegou teve que botar para fora da casa o amontoado de colchões de ar que lhe enchiam a sala e os quartos junto com os falsos hóspedes dos quais não tinha recebido nem centavo nem sequer conhecia.  


No entanto, e nem é de pasmar, era de uma simpatia a toda a prova, e de lágrima e sorrisos fáceis. Coisa até de casal de cinema. Enganaria até o santo Papa, cuja santidade se discute atualmente. Pessoas do trambique são sempre muito simpáticas. Fazia de conta que o marido não olhava para as outras. Precisava dele para ficar mais gorda de bolsa. Se tudo ficasse no nome dela, iam desconfiar, e o Imposto de Renda agora cruza informações.

No velório, lá estava a gorda imóvel em opíparo e luxuoso caixão, rodeada de flores. Só aparecia o rosto que nada se parecia com uma, embora não se pudesse dizer que fosse horrível. Os cachorros não foram ao velório. Aliás, já tinham sido entregues à disposição de um canil especializado em doações. Só ela buscava nos canídeos a consolação para o mundo vazio de sentimentos em que vivia, entre uma tragada e outra que não era de tabaco. Só nessas horas o marido entoldado pela fumaça se atrevia a fechar os olhos, na escuridão, e a comer o que a terra agora iría comer também.


Na saída do velório o marido parou para falar com um vizinho de quem ela não gostava, mas que ele sabia ser um cara legal. Fora pra esse mesmo que ela tinha dito um dia: - Enfia-lhe a porrada, além de lhe ter invadido a casa e lhe colocado um degrau á porta por obra que fez para colocar um cano. Obra ilegal porque a calçada não lhe pertencia. Dizia-lhe esse vizinho:

- E então...Morreu né? São coisas da vida. Lá se foi... Ela nunca soube que aquele cachorro dela morreu dentro do porta-mala. Soube?
-Não, cara... Tá maluco? Se ela soubesse me matava. Foi melhor ter dito que morreu todo suado por causa de uma cobra que o mordeu. Ela nunca soube disso.
- E os outros, os novos?
- Já doei para uma instituição de caridade. Ninguém gostava deles. Muito barulhentos, agitados, cagavam em tudo que era lugar e eu que tinha que limpar com o papel higiênico. Andava sempre com um rolo.
- Ela era religiosa?
- Não... Só fazia despachos para se livrar de “mau olhado”.
-Mas vocês andavam recebendo um pessoal da Igreja Evangélica...
- É... Ela se uniu àquele pessoal da igreja para receber em dobro. Queria ser pastora.
- Você sabe... Quando soube da morte dela me deu uma vontade de chorar, que o amigo nem imagina...Mas disse para mim mesmo: Esta vida tem que ser de alegrias, e comecei a rir. Veja que nem estou chorando agora. Ela deve estar bem entregue por tudo de bem que fez em sua vida.
- Lá em casa todo mundo a suportava bem. Não era uma coisa assim de renegar, e cozinhava muito bem.
- E daquela vez que você bateu com o carro quando estava de porre e deu polícia?


- Nos livramos bem. Imagine que ela me arrumou uma identidade falsa de alta patente da polícia. Usávamos para dar carteiradas. Não é que a própria polícia acreditou que eu era um superior deles? Tenho cara, não tenho? Foram uns amigos policiais que conseguiram.  Tenho outras carteiras, mas agora vou jogar tudo fora. Estou ficando velho e careca, e a polícia não acredita na velha guarda.
- E as propriedades?
- Estamos vendendo tudo. As crianças estão independentes, e ela conseguiu-me aposentadoria no INSS onde ela tem grandes amigos. Aposentadoria bem gorda por sinal. Manter propriedades sai muito caro por causa dos impostos.
- Mas me diga...Como ela morreu?
- Bem... Ela sofria de pressão altíssima e de diabetes. De vez em quando pegava o carro e tinha que levá-la ao hospital. Da ultima vez que a levei, havia uma confusão na rua e uma das balas perdidas encontrou a bichinha. Foi um cara com quem ela tinha feito um trato e que nem pudemos denunciar. Coitada dela. Morreu ali mesmo, pedindo-me um ultimo beijo que nem dei para que ela não sufocasse.
- Vai viver sozinho agora que ela se foi?
- Que nada... Nunca deixei a regra três. Meus filhos sabem. Já está preparando as malas.
- É gordinha também?
- Que nada...Magra como um palito. O defeito desta é que gasta muito, mas para mim quem paga é o governo, graças à defunta e suas amizades. Tá tudo em casa. 


Mas a defunta tinha garganta e alma profundas. O que era dela, honesto ou não, só a fórceps lhe seria tirado. Nem que tivesse que chorar copiosamente no céu, ao lado de Jesus, lavando-lhe os pés com seus cabelos gordurentos.
Por isso que o anúncio de vende-se esta casa de três quartos cozinha e varanda, com garagem, ainda lá está, atrás do lavabo, ao lado da área de serviço, bem debaixo da janela da suíte. Sem previsíveis clientes. E nem foi paga totalmente.  

® Rui Rodrigues


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