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sexta-feira, 12 de junho de 2015

As crianças de Ramenir e Benadia.


Esta estória se passa há tempos imemoriáveis. Nem faz parte daquela memória que vai passando de pais para filhos, porque naquela época, tal como em crianças até cerca de um ano e meio nos dias de hoje, não sabiam falar. Crianças nunca se lembram de fatos até essa idade. A humanidade nem se lembra deles também, nem de Ramenir nem Benadia. 

Não se sabe nada sobre suas origens nem onde foram originados, mas estavam lá, por aquela época, numa fronteira entre selva e savana á beira de um pequeno córrego de águas provenientes do degelo das montanhas que dali se avistavam. Levavam uma vida relativamente tranqüila alimentando-se de frutos das árvores, de algumas raízes que limpavam e molhavam na água do córrego porque a areia e a terra lhes incomodavam o mastigar e o paladar. Não transmitiam doenças porque não se beijavam. O sexo era uma coisa de “vontade” imediatamente atendida. Umas vezes ele a montava, sempre por detrás e não raras vezes errava o alvo, outras vezes ela o chamava e se punha de quatro na sua frente. Por vezes se sentava em seu colo, outras vezes o acarinhava com a cabeça entre suas pernas. Era instintivo. Não sabiam ler nem o Karma Sutra tinha ainda sido escrito. Precisariam esperar uns bons milhões de anos e não viveriam tanto assim. Lá pelos trinta anos já se teriam livrado da carne e ficariam apenas com os ossos, mas sem a mínima consciência do que se estivesse passando naquele ou em outro lugar. Não havia feras por ali, naquela mata fechada, exceto cobras que temiam muito, porque algumas eram imensas, podiam engoli-los. Lá fora, sim, na savana, viam animais enormes, alguns com dentes de sabre, alguns com afiados dentes e também peludos, que se revezavam em caçadas de animais mais fracos. Conseguiam ouvir-lhes os gritos, os urros ao serem dilacerados, os estertores da morte inexorável. Depois as feras se alimentavam de seus corpos, muitas vezes ainda vivos e estrebuchando. Para Ramenir e Ramenir aquilo era um inferno. Paraíso era ali à beira do córrego de água fresca, com frutas para comer o dia inteiro. Um dia teriam que mudar de lugar por causa da falta de frutas, mas procurariam em outras árvores. Havia muitas e nenhuma era proibida. Somente as que lhes davam ora prisão de ventre ora diarréias. Quando a barriga de Benadia desinchou viram um pequeno ser que berrava muito. Ela dizia que se parecia com Ramenir e ele que se parecia com Benadia, porque o único espelho que tinham era muito deficiente: Os locais de água parada do córrego. Benadia deu-lhe leite de suas próprias mamas à cria e teve que afastar Ramenir quando ele descobriu aquela fonte gostosa de alimento. Benadia teve muitos mais filhos. Praticamente tinha um a cada ano e meio. Só tinham duas preocupações: As feras com as serpentes, haver frutas e raízes disponíveis para comer. Quando precisavam fazer suas necessidades iam até o rio. A água levava tudo e não deixava rastros para que outros animais os detectassem e os comessem. Benadia e Ramenir protegiam-se um ao outro, faziam exatamente as mesmas tarefas.   

Quando Benadia tinha seus 40 anos, a família já era uma tribo, mas nunca souberam como isso acontecia. Atribuíam o nascimento das crianças ao mesmo fenômeno inexplicável que enviava a chuva e os raios do céu. Por vezes os raios pareciam gritar, urrar, ameaçar. Devia ser algo muito forte, muito superior a tudo que viam, porque tanto eram jogados no inferno da savana quanto no paraíso da mata. Em todos esses anos nada havia mudado nas imediações da mata nem da savana. O paraíso continuava igual, o inferno lá fora era o mesmo. Benadia não sabia porque razão, mas não tivera mais crianças há pelo menos uns quatro anos, mas em compensação as crianças tinham crescido e tido muitas outras crianças, todas muito parecidas. Tantas, que agora mudavam de árvores muito mais rapidamente porque as frutas logo se esgotavam.  As crianças estavam sempre, a toda hora, dispostas a se acasalarem entre si. Quando algum deles não queria, havia confusão na tribo. Ela mesma, Benadia, já se acasalara com alguns dos filhos, assim como Ramenir, mas este estava ficando diferente. Agora estava mais fraco, mais gordo, tinha cabelos brancos nas costas e na barriga. Por vezes nem comia. Nem ela, Benadia. Então, certo dia, o filho mais velho, o mais forte, partiu com mais de metade da família. Não escolheu quem o seguiria, mas rejeitou alguns que o quiseram seguir. O grupo se reduziu a uns trinta. O que partiu. Jafron, levou mais de sessenta com ele. 


Em sua caminhada pela mata o segundo grupo se enfrentou com outros grupos que já se tinham apossado desses lugares, normalmente junto a rios, matas, à borda da savana. Muitos morreram de ferimentos feitos por armas de ossos de animais mortos e pedras. A mata estava se transformando num inferno. E inferno por inferno, Jafron, o filho mais velho de Ramenir e Benadia, olhava com cada vez mais simpatia para a savana. Com armas de ossos, quem sabe, poderia vencer as feras do inferno?



Benadia um dia viu Ramenir se dirigir para a savana. Pensou em impedir-lhe os passos, mas não tinha forças. Gritou com gritos de horror, chorosos, com pena, assim como quando lhe morria um filho, e fechou os olhos quando viu um leão partir na correria para cima dele. Quando abriu os olhos já havia outros leões e leoas á volta do cadáver de Ramenir. Então tomou uma decisão e correu trôpega pela falta de forças para espantar os leões. Seria para espantar os leões? Em cima das árvores as crianças se agarravam entre si, as sobrancelhas caídas, lágrimas nos olhos. Então começaram a gritar para espantar os leões. Não podiam fazer outra coisa, nem socorrê-los. Pensaram que sem as feras na mata poderiam ser mais felizes. 
  

® Rui Rodrigues

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