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quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Encontros vagos em duas cidades frias.

Encontros vagos em duas cidades frias.



Mal ouviu tocar o despertador já estava fazendo a barba, entrando no Box, tomando um banho de chuveiro, muito sabão e muita espuma do xampu, a água escorrendo em vapores e se perguntou por que tinha tanto cabelo se ontem já lhe rareava quando se olhou no espelho. Ouviu o despertador tocar novamente mas estava certo de que o tinha desligado com um tapa certeiro na parte superior mesmo sem ter feito pontaria. Era um daqueles despertadores mecânicos, velho, que parecia um enorme rosto gozador, cheio de horas, duas orelhas de campainha, uma voz irritante e contínua de carro de bombeiros. Já vestia as calças quando foi despertado por mais um toque que não suportou. Abriu os olhos. Olhou a mesa de cabeceira e pulou da cama de um salto. Estava atrasado. Tinha que fazer a barba, tomar banho, arrumar-se e sair de casa. Tinha um encontro às nove. 

Demorou a ter consciência plena de quem iria encontrar e por que. O que estava preparado para ouvir, o que tinha a dizer. Já ia entrando no elevador quando a consciência chegou tão atrasada quanto ele: Esquecera o documento que analisara na noite anterior sobre a mesa da sala de jantar. Colocou a pasta no chão, abriu-a, tirou as chaves do quarto, e largou-a junto ao batente da porta do elevador para que não perdesse a viagem. Entrou, pegou o papel, olhou com nojo a garrafa de vinho com dois dedos de um líquido grená escuro e  apanhou a pasta, abriu a porta do elevador e desceu. Pensou se não esquecera mais nada, e chegou à conclusão que nada de importante tinha esquecido. Galgou a rua fazendo sinal para o primeiro táxi que passava. Estava cheio. Santiago do Chile era uma cidade como outra qualquer em dias como aquele: Cheia de prédios, cheia de ruas, cheia de táxis cheios, fria, a cordilheira ao fundo da paisagem dizendo que o Chile acabava ali mesmo, no horizonte do olhar. A humanidade ativa é um relógio cheio de segundos.

Já no táxi veio-lhe à lembrança que havia em seu apartamento uma mulher. Não sabe exatamente o que aconteceu com ela, porque não a viu quando acordou. Nem se lembrava do nome. Tentou resgatar a sua imagem, que roupa vestia, se era loura ou morena, e finalmente, após pensamentos misturados entre imagens de mulheres e os temas do encontro das nove, finalmente recordou. Quando o taxi parou em frente à porta do escritório na Avenida Apoquindo, viu-a passar loura, pela portaria, cabelos louros saltando-lhe sobre os ombros a cada passada firme, pernas esguias, curvas bem desenhadas. Embora longe sentiu-lhe o perfume. Ela chegaria ao elevador antes dele. E daria a notícia: A empresa perdera a concorrência. Aparentemente o teor da proposta que tinham apresentado era o da empresa concorrente, maquiado ligeiramente, com preço ligeiramente menor. Quem teria passado a informação para a concorrência? Todos questionariam, todos na empresa ficariam indignados, mas o chefe do escritório jamais levaria adiante as investigações. Depois tudo seria esquecido e ninguém seria demitido. Lá longe, os donos da empresa também se indignariam... E daí? Eles concordariam que era melhor não levantar a lebre no mercado. Se houvessem “evidências” apontariam certamente para alguém inocente. A reunião transcorreu normalmente. Ninguém se impressionou. Nem com o pequeno terremoto que fez o prédio balançar como se fosse cair enquanto a neve realmente caía silenciosa e devagar do lado de fora das vidraças das enormes janelas do prédio de escritórios. 



Para ir de Bogotá a Cali, muito longe a norte de Santiago do Chile, os aviões sobem suavemente a cordilheira dos Andes logo na saída do aeroporto. Parece que não desgrudam da paisagem, porque a cordilheira é inclinada, quase com o mesmo ângulo de subida dos aviões, mas quando passam pelo topo da cordilheira pode ver-se lá embaixo, na fronteira com o mar, os prédios as avenidas da cidade de Cali. Então o piloto abre os flaps, e o avião desce em queda quase livre como se fosse um elevador. Nem treme, como se fosse uma pena, algo parecido com a pena que cai no filme do Contador de Histórias, “Forrest Gump”, quando Tom Hanks está sentado no banco de jardim com sua caixa de bombons. Mas só em dias de vento forte na cordilheira. A linda morena de olhos verdes confortavelmente sentada na cadeira junto à janela não entendia porque aquele avião balançava tanto se o céu estava tão azul claro, sem nuvens. Logo chegariam a Boise, Idaho, nos EUA, onde as avenidas parecem mais largas do que a cidade. O rapaz sentado a seu lado viu-a suspirar, Olhavam a paisagem lá embaixo, parecendo que a terra era completamente verde, cheia de rios, sem casas, sem prédios, sem cidades. Depois passaram pela cordilheira das Montanhas Rochosas. Montanhas e neve, neve e montanhas. Como poderiam dizer que não havia mais espaço para plantar, que não havia água no planeta? Os dois olharam mais uma vez para os passageiros que lhes estavam mais próximos. Ninguém conhecido. Era um casal discreto. Ela olhando a paisagem, ele lendo um livro. Nenhum gesto especial de carinho. Não haviam trocado mais do que meia dúzia de palavras durante toda a viagem. Ninguém poderia afirmar se eram casados, namorados, conhecidos, ou simplesmente corteses um com o outro de volta a seu país depois de uma viagem de negócios ao exterior, talvez regressando de umas férias. Passaram pela alfândega do aeroporto. Ela passou diretamente. Ele teve sua maleta vistoriada. Ao abrir havia apenas um par de óculos, um palmtop, um contrato de trabalho com uma empresa conhecida com sede na cidade, uma máscara de olhos para dormir no avião, uma máquina de barbear, um livro, um par de meias e uma cueca, uma reserva de hotel e um despertador daqueles antigos, mecânicos, de orelhas de campainha. Na manhã seguinte, mal ouviu tocar o despertador já estava fazendo a barba, entrando no Box, tomando um banho de chuveiro, muito sabão e muita espuma do xampu, a água escorrendo em vapores e se perguntou porque tinha tanto cabelo se ontem já lhe rareava quando se olhou no espelho. Ouviu o despertador tocar novamente mas estava certo de que o tinha desligado com um tapa certeiro na parte superior mesmo sem ter feito pontaria. Era um daqueles despertadores mecânicos, velho, que parecia um enorme rosto gozador, cheio de horas, duas orelhas de campainha, uma voz irritante e contínua de carro de bombeiros. Já vestia as calças quando foi despertado por mais um toque que não suportou. Abriu os olhos. Olhou a mesa de cabeceira e pulou da cama de um salto. Estava atrasado. Tinha que fazer a barba, tomar banho, arrumar-se e sair de casa. Tinha um encontro às nove. De passagem pela pequena sala do hotel olhou para uma garrafa de vinho sobre a mesa. Teve ânsias de vômito. Demorou a ter consciência plena de quem iria encontrar e por que. O que estava preparado para ouvir, o que tinha a dizer. Saiu para o elevador carregando a maleta. Pegou um táxi. Quando chegou à porta de entrada da empresa, ela já estava lá. Via-a agora com seus cabelos morenos saltando-lhe sobre os ombros a cada passada firme, pernas esguias, curvas bem desenhadas passando pela portaria com sua maleta.
Na sala do presidente da companhia eram esperados por um pequeno comitê de advogados e pelo dono. Nada mais do que quatro deles. 



As duas maletas, a dele e a da morena, foram colocadas sobre a grande mesa de reuniões. Duas facas apareceram nas mãos de dois dos advogados, sem esperarem apresentações, ou frases de boas vindas. Só o dono os agraciou com um sorriso, portando na mão duas caixas de bombons das grandes. As facas rasgaram cuidadosamente as maletas ocas em pontos estratégicos. Diamantes mergulhados em pó de ouro derramaram-se sobre a mesa. Os dois outros advogados se encarregavam de recolher o pó de ouro, pesá-lo e dividi-lo em pacotes. Os diamantes eram separados por tamanhos em quilates. O total das duas maletas era uma fortuna. Uma fortuna trocada por três volumes de uma proposta perdedora. Na caixa não havia bombons. Havia duas pequenas fortunas em notas do tesouro nacional embrulhadas agora em papel de presente. O dinheiro dos envelopes seria gasto em separado de modo vago.  

® Rui Rodrigues  



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