O segredo da culinária, que
pode fazer de qualquer um de nós um “chef” de primeira grandeza, não exige
consulta a alfarrábios de culinária nem larga experiência em cozinhar. Desde
que se conheçam os temperos, os ingredientes e o potencial de cada um, basta
ter carinho, amor, paciência, dedicação e vontade.
Meu pai tinha saído de
férias para Portugal e eu ficara “home alone”.
Sozinho em casa, e com uma namorada que tinha que passar toda a semana com
os pais, mas tinha uma certa liberdade para ausentar-se por uma noite, de
sábado para domingo, alegando que ficaria em casa de uma amiga. Chama-la-ei de
Cristina, ou mais carinhosamente de Cris.
Não tinha eu o costume de
cozinhar, embora já tivesse dado minhas investidas na cozinha. Minha tia
cozinhava muito bem e na minha infância em sua casa costumávamos conversar
enquanto ela cozinhava. Alguma coisa me ficou da dosagem e intensidade dos
temperos, do tempo de cozimento, da apresentação do prato, porque também nos
alimentamos da aparência e do cheiro. Juntando o útil ao agradável, sempre
evitei gorduras e frituras. Preferência por grelhados e cozidos.
Cris foi uma paixão em minha
vida. Começamos o namoro e a vida sexual quase juntos porque eu era pouco
experiente e ela não tinha experiência a que possamos chamar assim. Mas a
experiência nesse caso não tinha a mínima importância. Aprendemos muito
rapidamente e não havia tabus entre nós. Atravessamos juntos uma fase de
exigências de liberdade e contestação: Final dos anos dourados ou os anos 60.
Eu não podia ficar perto dela e a sós. Grudávamos um no outro e demorava a
separar. Minha paixão não se devia apenas ao seu modo de ser calmo e tranqüilo.
Ela tinha umas belas pernas, pés bem feitos era da minha altura, seu corpo
vibrava, perfeito, todo proporcional. Era amor e desejo.
Naquele sábado ela chegou no
apartamento de cobertura na rua Haddock Lobo, na Tijuca, por volta do meio dia.
Meu pai tinha uma vitrola de móvel, e uma pequena coleção de “long plays” de
vinil com músicas clássicas e alguns de música popular brasileira, como Roberto
Carlos, Elis Regina, Vinicius de Morais, Tom Jobim, João Gilberto... E Beatles,
Elvis, Frank Sinatra... Não posso precisar que música tocava quando ela entrou,
mas meu coração bateu mais forte. Passar um fim de semana com ela a meu lado,
num lar, era um sonho que sempre me passava pela mente e que só agora eu via
realizar-se. Tenho certeza que ela sonhava do mesmo modo. Foi impossível pensar
no almoço a partir desse momento. Beijamo-nos apaixonadamente e fomos para a
cama do quarto de meu pai saciar a ânsia, o desejo, a sofreguidão do momento. Entre
a cama, trocar discos de vinil – creio que cabiam uns cinco no municiador
automático – e conversar sobre futilidades, o tempo passou como que por
encanto, e quando o estômago começou a reclamar a noite estava chegando. Quando me disse que estava com fome e o que
teríamos para o jantar, disse-lhe que teríamos cherne.
- Ah! Só quero ver como vai
sair esse jantar – Disse-me ela com um sorriso agradável que eu conhecia muito
bem.
- Consegui um cherne com os
pescadores que costumam pescar perto dos pilares da ponte Rio Niterói –
respondi-lhe – Eles saem do Clube de Ramos, perto da obra do meu estágio.
Sempre me oferecem porque pescam muito e não os vendem, Dão para os amigos. Deram-me
um com dez quilos que já limpei ontem, separei em pedaços e pus no freezer.
Daqui a uma hora jantamos.
Abrimos uma garrafa de vinho
e comecei a preparar o jantar. Ela vestiu um avental sobre o corpo nu e
convidou-se para me ajudar. Não havia muito que fazer. As batatas estavam
cortadas em rodelas grossas, o peixe já cortado. Fizemos juntos o pouco que
havia para fazer enquanto conversávamos sobre amenidades. O maior problema dos
casais é que só conversam sobre coisas sérias e deixam o trivial ameno esquecido
nos seus ruminares mentais, querendo dizê-los mas calando-os por desânimo.
Coloquei os pedaços de
cherne cortados em cubos com espessura de mais ou menos dois dedos numa assadeira
envoltos em folha de alumínio apenas temperados com sal. Levei ao forno.
Enquanto assava fomos tomando uns goles de vinho e ela pôs a mesa. Numa
molheira piquei uma cebola pequena. Juntei-lhe um dente de alho também picado e
adicionei azeite e duas colheres de sopa de colorau. Da geladeira tirei umas
folhas de coentro que misturei ao molho. Numa panela pequena pus para cozer
duas batatas grandes cortadas em rodelas grossas.
- Fui no ginecologista –
Disse-me entre um trago e outro de vinho.
- Algum problema, Cris?
- Não. Nada em particular,
disse-me ela. Estava preocupada porque transamos há mais de um ano e não
engravidei, apesar de ter esquecido de tomar a pílula por algumas vezes.
- É verdade. Confirmei eu. E
já tem os resultados?
- Não posso engravidar. Meu
útero é pequeno demais. Fiquei triste porque gostaria de ter filhos e sei que
você também gostaria. Fiquei preocupada.
Creio que isso possa ser um obstáculo ao nosso namoro.
Abracei-a e beijei-a
longamente. Confidenciei-lhe que já havia pensado nessa possibilidade e que não
haveria problema. Adotaríamos crianças desprotegidas, desamparadas. Seus olhos
ficaram úmidos. O cheiro do peixe assando chamou-nos a atenção. A água com as
batatas fervia. A salada estava pronta, preparada pela Cris: Alface, tomate, rúcula,
agrião, abacate meio verde, torradas em cubos pequenos, ricota espalhada por
cima.
Fizemos os pratos: batatas,
os cubos de cherne grelhados e o molho à espanhola generosamente regado por
cima do peixe e das batatas. A garrafa de cabernet sauvignon já ia pela metade.
Cris acendeu as velas e o sorriso voltou-lhe aos lábios e aos olhos.
Há dificuldades na vida que
devemos aceitar. Simplesmente aceitar. Tudo tem solução, mesmo que se trate
simplesmente de aceitar os fatos.
Voltamos para a cama até a
hora de levá-la até em casa.
Rui Rodrigues
PS - O jantar estava ótimo.
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