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terça-feira, 10 de julho de 2012

O inferno do meio




O Inferno do Meio

Lera o inferno de Dante, o Processo, Assim falou Zaratustra, Os miseráveis, Ensaio sobre a Cegueira, alguns outros livros, mas hoje não tirava estes do pensamento. Viu um pequeno vulto passar pelo jardim. Pareceu-lhe um rato. Ainda era madrugada e as sobras da noite não o impressionavam mais. Vivia sua existência contando os dias e as noites pelas horas, não pela quantidade. Qualquer soma de dias poderia corresponder à realidade.  A gata correu pelo jardim. Deveria ser um rato. Se fosse, seus minutos estariam contados, porque na direção em que se moveu não havia saída, porta ou buraco para onde pudesse fugir. Era um rato morto e não sabia. Viera com a mudança do vizinho, porque antes não havia ratos por lá. Estava enclausurado. Neste planeta vivemos todos enclausurados. Não temos para onde sair e nem sequer somos ratos. Traçaram umas fronteiras nuns papéis a que chamaram mapas, delineando áreas a que chamaram países. Tal como ratos, muitos semelhantes vivem dentro dessas fronteiras sem nunca terem saído para outras. Não sabem o que se passa por lá, e mesmo dentro de suas fronteiras também não sabem o que se passa. As notícias não são dignas de fé e a maioria nunca saiu da própria cidade ou lugar. O inferno do Meio é uma clausura mesmo quando não há grades. Mas é um equívoco imaginar algum lugar sem grades. Cidades inteiras com janelas gradeadas, muros com cacos de vidro e cercas eletrificadas. Câmaras de vídeo ligadas pelas esquinas pala flagrar bandidos, meliantes, ladrões, escroques, ratazanas que furtam para pagar as dívidas. Malandros têm sempre quem lhes dê comida. Gente honesta nem tanto. A criança na escola primária é socada e dão-lhes socos e pontapés. Não é necessário qualquer motivo para apanhar. Basta um detalhe, como ser sossegada, olhar com receio para os outros, ter um pouco de excesso de peso, ou mostrar algum ponto fraco. Tal como os ratos, as ratazanas caçam os que parecem mais fracos. Têm sede de justiça, mas a justiça que julgam ser justa é a mais injusta. Pensam que são diferentes e que baterão sempre. Quando mais tarde apanham da vida, choram e dizem que são fracos. Isso acontece nas delegacias da polícia quando são apanhados em flagrante. Não há lugares para todos os presos nas delegacias nem nas prisões. Os marginais são soltos, e lei abrandou, sorte de quem não for escolhido para vítima do crime desorganizado que mata tanto quanto o crime organizado. Nas capitais de governo, os governantes estão longe de tudo isto. Quando lêem pelos jornais que atearam fogo em mais um idoso morador de rua, ou num índio que dormia num banco de jardim, ou que mataram um motorista que resistiu a um assalto, raptaram uma criança recém-nascida da maternidade, pensam que foi em outro “país”, porque os palácios onde vivem têm toda a segurança possível, guardados por policiais treinados, exército, marinha, aeronáutica. O governo que não cuida do povo, tem a segurança que o povo não tem.

Havia uma garrafa de vinho no armário. Foi até lá e abriu-a. Colheu um copo limpo e despejou aquele líquido perfumado de vinha até encher a metade do copo. Sorveu uns goles e olhou o que sobrara. Tinha cor de rubi. Lembrou-se dos tempos bíblicos quando se cultivava a vinha, e como esta bebida vem sendo apreciada desde então até os dias de hoje. Refrigerante é coisa moderna. Querem que substituam o vinho e a cerveja. Querem tirar todas as alegrias dos cidadãos comuns e dos incomuns. Já não se pode fazer sexo de forma tranqüila e em paz. Há doenças que se são incuráveis e é necessária uma proteção que tira a vontade de fazê-lo a muita gente. A vida está tão cara e difícil, que se antes o problema de ter filhos era um problema moral porque implicaria em casamento ou perseguição, hoje é porque depois do filho nascer não se sabe como alimentá-lo. Os empregos são instáveis, e ora num ano sobram empregos, ora faltam em dois ou três anos seguidos. Não há paz nem tranqüilidade mesmo quando os bandidos não assaltam. O velhinho de setenta anos de idade morreu na fila de atendimento do hospital, mas o filho do artista cantor teve todo o apoio das equipes médicas. O povo aplaude o restabelecimento desse filho, e critica o velhinho morto na fila de espera. E ficam assim, evitando entrar num processo de envolvimento tal que acabem perdendo seu pouco tempo disponível. A vida é algo muito dinâmico e para evitar o sofrimento, é melhor fechar os olhos, rezar para não acontecer conosco, e seguir em frente como o rato que fugiu na direção da parede cega onde não há porta ou buraco para onde possa fugir da gata zelosa. Mais uns goles descendo pela garganta e o inferno do meio começa a desvendar-se. Há frio nas terras geladas do norte e do sul, fervem as águas no meio entre eles, pegam fogo a caatinga e os desertos, as zonas de guerra que são muitas, as lareiras da maioria cozem pouca coisa, a água é suja, os esgotos são a céu aberto, não há iluminação nas ruas, os ônibus passam cheios, em alta velocidade fazendo curvas que atiram os passageiros de um lado para o outro. As vagas para estacionamento de deficientes físicos estão ocupadas por deficientes mentais e amorais, as empresas de telefonia roubam nos impulsos e na banda larga fazendo da Internet e do celular um inferno que se junta com os juros bancários liberados á revelia do próprio governo. Os cidadãos afogam-se em enxurradas das chuvas sem solução de contenção de encostas e de água das chuvas, na falta de transportes públicos em quantidade, na improbabilidade de ganhar dinheiro honesto suficiente para pagar os juros a usura bancária. É o inferno na Terra, é a terra do inferno, o rico de hoje nem imagina que será o pobre de amanhã, o pobre de hoje não será o rico de amanhã a menos que roube o irmão, os amigos, dê golpe em algo ou em alguém. Os impostos altos, estratosféricos não deixam enriquecer. Para enriquecer é necessário enganar ou ter amigos no poder que possam enganar outros para beneficiar alguém. E assim se concorre a concursos públicos com as cartas marcadas, os melhores não são concursados, só por coincidência.

Bebeu mais uns goles, a garrafa pelo meio. Antigamente e este antigamente nem é tão antigo, beber uns goles de vez em quando era sinal de algo indefinível que não representava nada de politicamente correto ou incorreto. Era simplesmente normal. Hoje temo que nem levem a sério quem escreve dizendo que está bebendo uns goles do bom e amigo vinho, e, se disser que nunca ficou de pileque, bêbado ou embriagado, não acreditam. A mídia já fez o seu trabalho, os fazedores de opinião já mudaram a forma modal de pensar: a moda é não beber, não fumar, não fazer sexo desprotegido, não falar o que se sente porque pode ser interpretado como politicamente incorreto. Mas no remanso do lar é diferente. É tudo diferente e até já se pode plantar maconha em casa, mas fumar não: o preço está exorbitantemente alto por causa dos impostos que incidem sobre os pacotes. Já vale a pena pegar um ônibus ou avião para qualquer outro país e trazer os 500 dólares permitidos tudo em tabaco, porque lá são cerca de 90% mais baratos. Onze mil carros roubados em S. Paulo, de um total de vinte e dois milhões de veículos, só nos primeiros três meses do ano, dão uma idéia do trabalho da polícia e do desproporcional trabalho dos ladrões. As oportunidades de trabalho dos ladrões são muito maiores do que as dos policiais. É o inferno do meio, a inversão de valores, o caos, não é a vida.
Pagam-se salários exorbitantes a políticos, as notícias dos jornais dizem que eles roubam muito independentemente dos partidos a que pertencem. Isto não pára, nem a justiça os para e roubar. O dinheiro desviado não é devolvido. A justiça libera para não comprometer a “credibilidade” do Estado. O estado tem que ser credível mesmo quando rouba descaradamente ou não cuida dos cidadãos. Estado que não cuida não precisa receber impostos. Pressupõe-se que o Estado recolha impostos para cuidar pelo menos das funções básicas. Os votos que pedem são dados em confiança, mas não podem ser retirados. Os ladrões têm quatro anos inteiros para roubar com toda a impunidade. É o inferno do meio que chegou e ficou. É o inferno do meio em que vivemos. Não vejo nenhum S. Jorge matando o dragão... Só anúncio de televisão dizendo que os Bancos são nossos amigos e que nos dão futuro brilhante cheio de dinheiro, que o governo dará mais um show grátis para a população em praça pública e que está trabalhando para a população enquanto esta se diverte em paz, que as obras do governo serão executadas no prazo custe o que custar, que  este ou aquele partido político é o melhor e que se deve votar nele para sermos felizes e termos tudo o que nunca tivemos e tanto desejamos.

O céu fica lá em cima, muito longe... Lá embaixo não existe porque este planeta gira sobre si mesmo e estamos sempre embaixo do céu. Se o céu existe, e o lá embaixo não existe, o inferno é aqui.

É o inferno do meio...


Rui Rodrigues

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