O Inferno do Meio
Lera o inferno de Dante, o
Processo, Assim falou Zaratustra, Os miseráveis, Ensaio sobre a Cegueira, alguns
outros livros, mas hoje não tirava estes do pensamento. Viu um pequeno vulto
passar pelo jardim. Pareceu-lhe um rato. Ainda era madrugada e as sobras da
noite não o impressionavam mais. Vivia sua existência contando os dias e as
noites pelas horas, não pela quantidade. Qualquer soma de dias poderia
corresponder à realidade. A gata correu
pelo jardim. Deveria ser um rato. Se fosse, seus minutos estariam contados,
porque na direção em que se moveu não havia saída, porta ou buraco para onde
pudesse fugir. Era um rato morto e não sabia. Viera com a mudança do vizinho,
porque antes não havia ratos por lá. Estava enclausurado. Neste planeta vivemos
todos enclausurados. Não temos para onde sair e nem sequer somos ratos.
Traçaram umas fronteiras nuns papéis a que chamaram mapas, delineando áreas a
que chamaram países. Tal como ratos, muitos semelhantes vivem dentro dessas
fronteiras sem nunca terem saído para outras. Não sabem o que se passa por lá,
e mesmo dentro de suas fronteiras também não sabem o que se passa. As notícias
não são dignas de fé e a maioria nunca saiu da própria cidade ou lugar. O
inferno do Meio é uma clausura mesmo quando não há grades. Mas é um equívoco
imaginar algum lugar sem grades. Cidades inteiras com janelas gradeadas, muros
com cacos de vidro e cercas eletrificadas. Câmaras de vídeo ligadas pelas
esquinas pala flagrar bandidos, meliantes, ladrões, escroques, ratazanas que
furtam para pagar as dívidas. Malandros têm sempre quem lhes dê comida. Gente
honesta nem tanto. A criança na escola primária é socada e dão-lhes socos e
pontapés. Não é necessário qualquer motivo para apanhar. Basta um detalhe, como
ser sossegada, olhar com receio para os outros, ter um pouco de excesso de
peso, ou mostrar algum ponto fraco. Tal como os ratos, as ratazanas caçam os
que parecem mais fracos. Têm sede de justiça, mas a justiça que julgam ser
justa é a mais injusta. Pensam que são diferentes e que baterão sempre. Quando
mais tarde apanham da vida, choram e dizem que são fracos. Isso acontece nas
delegacias da polícia quando são apanhados em flagrante. Não há lugares para
todos os presos nas delegacias nem nas prisões. Os marginais são soltos, e lei
abrandou, sorte de quem não for escolhido para vítima do crime desorganizado
que mata tanto quanto o crime organizado. Nas capitais de governo, os
governantes estão longe de tudo isto. Quando lêem pelos jornais que atearam
fogo em mais um idoso morador de rua, ou num índio que dormia num banco de
jardim, ou que mataram um motorista que resistiu a um assalto, raptaram uma
criança recém-nascida da maternidade, pensam que foi em outro “país”, porque os
palácios onde vivem têm toda a segurança possível, guardados por policiais
treinados, exército, marinha, aeronáutica. O governo que não cuida do povo, tem
a segurança que o povo não tem.
Havia uma garrafa de vinho
no armário. Foi até lá e abriu-a. Colheu um copo limpo e despejou aquele
líquido perfumado de vinha até encher a metade do copo. Sorveu uns goles e
olhou o que sobrara. Tinha cor de rubi. Lembrou-se dos tempos bíblicos quando
se cultivava a vinha, e como esta bebida vem sendo apreciada desde então até os
dias de hoje. Refrigerante é coisa moderna. Querem que substituam o vinho e a
cerveja. Querem tirar todas as alegrias dos cidadãos comuns e dos incomuns. Já
não se pode fazer sexo de forma tranqüila e em paz. Há doenças que se são
incuráveis e é necessária uma proteção que tira a vontade de fazê-lo a muita
gente. A vida está tão cara e difícil, que se antes o problema de ter filhos
era um problema moral porque implicaria em casamento ou perseguição, hoje é
porque depois do filho nascer não se sabe como alimentá-lo. Os empregos são
instáveis, e ora num ano sobram empregos, ora faltam em dois ou três anos
seguidos. Não há paz nem tranqüilidade mesmo quando os bandidos não assaltam. O
velhinho de setenta anos de idade morreu na fila de atendimento do hospital,
mas o filho do artista cantor teve todo o apoio das equipes médicas. O povo
aplaude o restabelecimento desse filho, e critica o velhinho morto na fila de
espera. E ficam assim, evitando entrar num processo de envolvimento tal que
acabem perdendo seu pouco tempo disponível. A vida é algo muito dinâmico e para
evitar o sofrimento, é melhor fechar os olhos, rezar para não acontecer
conosco, e seguir em frente como o rato que fugiu na direção da parede cega
onde não há porta ou buraco para onde possa fugir da gata zelosa. Mais uns
goles descendo pela garganta e o inferno do meio começa a desvendar-se. Há frio
nas terras geladas do norte e do sul, fervem as águas no meio entre eles, pegam
fogo a caatinga e os desertos, as zonas de guerra que são muitas, as lareiras
da maioria cozem pouca coisa, a água é suja, os esgotos são a céu aberto, não
há iluminação nas ruas, os ônibus passam cheios, em alta velocidade fazendo
curvas que atiram os passageiros de um lado para o outro. As vagas para
estacionamento de deficientes físicos estão ocupadas por deficientes mentais e
amorais, as empresas de telefonia roubam nos impulsos e na banda larga fazendo
da Internet e do celular um inferno que se junta com os juros bancários
liberados á revelia do próprio governo. Os cidadãos afogam-se em enxurradas das
chuvas sem solução de contenção de encostas e de água das chuvas, na falta de
transportes públicos em quantidade, na improbabilidade de ganhar dinheiro
honesto suficiente para pagar os juros a usura bancária. É o inferno na Terra,
é a terra do inferno, o rico de hoje nem imagina que será o pobre de amanhã, o
pobre de hoje não será o rico de amanhã a menos que roube o irmão, os amigos,
dê golpe em algo ou em alguém. Os impostos altos, estratosféricos não deixam
enriquecer. Para enriquecer é necessário enganar ou ter amigos no poder que
possam enganar outros para beneficiar alguém. E assim se concorre a concursos
públicos com as cartas marcadas, os melhores não são concursados, só por
coincidência.
Bebeu mais uns goles, a
garrafa pelo meio. Antigamente e este antigamente nem é tão antigo, beber uns
goles de vez em quando era sinal de algo indefinível que não representava nada
de politicamente correto ou incorreto. Era simplesmente normal. Hoje temo que
nem levem a sério quem escreve dizendo que está bebendo uns goles do bom e
amigo vinho, e, se disser que nunca ficou de pileque, bêbado ou embriagado, não
acreditam. A mídia já fez o seu trabalho, os fazedores de opinião já mudaram a
forma modal de pensar: a moda é não beber, não fumar, não fazer sexo
desprotegido, não falar o que se sente porque pode ser interpretado como
politicamente incorreto. Mas no remanso do lar é diferente. É tudo diferente e
até já se pode plantar maconha em casa, mas fumar não: o preço está
exorbitantemente alto por causa dos impostos que incidem sobre os pacotes. Já
vale a pena pegar um ônibus ou avião para qualquer outro país e trazer os 500
dólares permitidos tudo em tabaco, porque lá são cerca de 90% mais baratos. Onze
mil carros roubados em S. Paulo, de um total de vinte e dois milhões de veículos,
só nos primeiros três meses do ano, dão uma idéia do trabalho da polícia e do
desproporcional trabalho dos ladrões. As oportunidades de trabalho dos ladrões são
muito maiores do que as dos policiais. É o inferno do meio, a inversão de
valores, o caos, não é a vida.
Pagam-se salários
exorbitantes a políticos, as notícias dos jornais dizem que eles roubam muito
independentemente dos partidos a que pertencem. Isto não pára, nem a justiça os
para e roubar. O dinheiro desviado não é devolvido. A justiça libera para não
comprometer a “credibilidade” do Estado. O estado tem que ser credível mesmo
quando rouba descaradamente ou não cuida dos cidadãos. Estado que não cuida não
precisa receber impostos. Pressupõe-se que o Estado recolha impostos para
cuidar pelo menos das funções básicas. Os votos que pedem são dados em
confiança, mas não podem ser retirados. Os ladrões têm quatro anos inteiros
para roubar com toda a impunidade. É o inferno do meio que chegou e ficou. É o
inferno do meio em que vivemos. Não vejo nenhum S. Jorge matando o dragão... Só
anúncio de televisão dizendo que os Bancos são nossos amigos e que nos dão
futuro brilhante cheio de dinheiro, que o governo dará mais um show grátis para
a população em praça pública e que está trabalhando para a população enquanto
esta se diverte em paz, que as obras do governo serão executadas no prazo custe
o que custar, que este ou aquele partido
político é o melhor e que se deve votar nele para sermos felizes e termos tudo
o que nunca tivemos e tanto desejamos.
O céu fica lá em cima, muito
longe... Lá embaixo não existe porque este planeta gira sobre si mesmo e
estamos sempre embaixo do céu. Se o céu existe, e o lá embaixo não existe, o
inferno é aqui.
É o inferno do meio...
Rui Rodrigues
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