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sábado, 7 de julho de 2012

A gata na janela





A gata na janela

Nunca menospreze a sabedoria dos gatos ou das gatas. Eles podem surpreender se ficarem atentos e souberem interpretá-los. 

Dizem que a esfinge do Egito representa um gato ou um leão com rosto humano. Escavações têm revelado gatos mumificados. Na esfinge, a cabeça humana representaria a “inteligência” e a percepção felina. As múmias, a esperança de que após a morte seus donos e seus pequenos animais de estimação se pudessem encontrar depois do tribunal de Osíris, o coração pesando menos do que uma pluma, e assim passarem ao paraíso. Mas os gatos eram mais do que amigos. Eram os preferidos de uma deusa gata, Bastet.  Como cada cidade egípcia tinha o seu deus patrono, a cidade de Bastet era Bubástis.

Minha gata, a Sarkye, passava a maior parte de seu tempo na janela. Seu olhar acompanhava pessoas que passavam. Viu passarem invernos, primaveras, verões e outonos. Viu neves caírem e bafos saindo de bocas e narizes, flores brotarem, frutas nas árvores e gente suando, folhas caindo. Viu gentes com roupas pesadas e sentiu o cheiro do fumo de castanhas a assar, depois pessoas vestidas á vontade, depois com pouca roupa, e novamente com roupas leves. Sabia dos ciclos das estações, dos cheiros, o ar que lhe passava pelos pêlos indicavam mais que movimento. Quando a janela estava aberta, traziam o cheiro e traçavam o perfil de quem passava. Reconhecia as pessoas.

Neste inverno os vidros ficaram mais embaçados do que costume e naquele dia em particular viu lá na rua, dirigindo-se para o portão de entrada aquele vulto feminino que conhecia bem. Rosnou curta e surdamente. Eu ouvi-lhe o rosnado. Sabia que era Linda que chegava. A minha gata não gostava dela. Pulou da janela, foi até a cozinha, e de lá deu um miado fino e curto. Esperei. Repetiu o miado. Fui até a banca de pia e abri a torneira até sair um esguio filete de água. Ela aproximou-se com cuidado e sua língua começou a sorver até se saciar.  Quando terminou, olhou-me, pulou da pia. Desliguei a torneira. Como se fosse um sinal, Linda Carlson tocou á campainha. Abri-lhe a porta. Seus braços rodearam meu pescoço. Seu corpo colou-se ao meu. Sussurrou-me que me amava. Não pude evitar sorrir. Há muito declarava que queria viver junto comigo. Casar talvez, mas jamais fizera referência a casamento. Fomos para a cama. A gata ficou de longe, na janela, olhando-nos de soslaio por vezes, seus olhares concentrados na rua. Ficou em silêncio até que nos levantássemos. Era já noite. Logo que Linda saiu, veio até mim roçou o corpo em minhas pernas nuas e caminhou na direção dos pés da cama. Acompanhei-a. Vi-a baixar a cabeça e cheirar algo no chão. Quando me abaixei vi uma pequena cartela de fósforos, dessas de papelão, com o anúncio de um hotel. Quando a abri, pude ler “amanhã às cinco- 502”.  Então, a gata caminhou para a cozinha para perto de seu prato de ração. Olhou-me com seus olhos amarelos ouro e miou fino como se falasse em sons curtos. Dei-lhe uma pequena dose. Por momentos ouvi seus dentes quebrando os pequenos nacos de ração, e logo em seguida foi para a minha cama, e lá no fundo, onde batem os meus pés, enroscou-se e fechou os olhos postos na minha direção. No apartamento apenas a luz do abajur e três pequenas lâmpadas vermelhas de sinalização: do modem, de uma das caixas de som, e do “caps Lock” que deixara ligado. Eu estava no computador.

Ás 8:30 da manhã o dia tinha recém renascido como no ciclo egípcio de Nut e Rá. Pensei nas pirâmides e na esfinge, que teria dito ao Édipo: “Decifra-me ou devoro-te”, mas essa era a única esfinge que existiu na Grécia. A do Egito não provocava esse tipo de questionamentos e entre suas enormes patas havia um templo. Era representada deitada. Esta, a grega, era representada sentada, e tinha asas. O seu enigma consistia na pergunta: “Que criatura pela manhã tem quatro pés, ao meio-dia tem dois, e à tarde tem três?”. Édipo-Rei matou a charada: o homem quando nasce engatinha, depois fica em pé e finalmente usa uma bengala quando envelhece. Louco de exagerados amores libidinosos pela mãe e com raiva do pai, Édipo mata o seu progenitor e arrependido vaza os próprios olhos. Foi Sigmund Freud quem descreveu este tipo de comportamento filial para com as mães, mas foi seu discípulo Carl Jung que lhe atribuiu a qualificação de “complexo”: Complexo de Édipo, diferenciando-o do mesmo comportamento, agora feminino em relação ao pai: “Complexo de Electra”. 

Estava exausto do longo texto que redigira no computador. Precisava de um descanso para depois lhe fazer uma revisão e mandar para o jornal. Voltei para a cama. Tinha que acordar às quatro da tarde.

Acordei ao sentir uma leve pressão no braço como se me fossem espetar uma agulha. Sarkye viera dormir a meu lado, as patas apoiadas em meu braço e suas unhas haviam-me dado essa sensação. A campainha da porta tocava. Levantei-me e vesti-me rapidamente. Sarkye acompanhou-me á porta e ficou olhando para ela como se visse do outro lado. Esfregou-se em minha perna. Sabia que era Alice antes mesmo de abrir a porta. Quando a abri, avançou sobre mim e foi-me empurrando para a cama. Claro que eu queria isso, mas tinha um compromisso às cinco e não queria perdê-lo. Também não queria perder aquela rara oportunidade de ficar com Alice. Ela era casada com um amigo meu. Éramos muito amigos, mas estas coisas de atração independem das amizades. São coisas à parte, diferenciadas. Quando nos deitamos, Sarkye veio para a cama e aninhou-se no fundo da cama. Queria ver de perto a minha felicidade. Num relance vi-lhe os olhos transparentes, de linda cor amarela ouro, e parecia que me propunha um enigma: “Toda a mulher bonita é casada, ou toda a mulher casada é bonita?” Não creio que Freud ou Carl Jung pudessem decifrar esta questão e mesmo que decifrassem, eu não ficaria propenso a acreditar. Eu não era devasso e eles me induziriam a pensar que o era.

Quando terminamos, levantou-se e disse-me que estava com fome. Iria preparar-me um jantar. Perguntei-lhe sobre o marido enquanto me preparava para abrir uma das duas garrafas de vinho que sobraram de minhas investidas ao armário onde as costumo guardar.

- Está num congresso num hotel lá no centro. Acho que é um seminário. Vai ficar lá até sábado. Disse-me que não o interrompesse, e que se houvesse algum problema para ligar para lá e pedir para falar com o quarto 502. Por isso prepara-te porque vou ficar contigo até sexta á noite.

Sarkye estava agora passando pelas pernas de Alice enquanto cozinhava. Olhei para ela. Era perfeita assim toda nua, com um avental que lhe cobria parcialmente a frente. Tinha umas costas maravilhosas. Senti-me um pouco dono de toda aquela beleza, embora tivesse consciência que ninguém é dono de ninguém.

Talvez Freud pudesse explicar porque razão, mesmo sabendo disso, teimamos em cultivar esse sentimento de posse, e imaginando que pudesse, certamente não poderia explicar porque razão o marido de Alice precisaria de um corpo adicional como o de Linda, e Linda precisasse de um corpo adicional como o do marido de Alice. Não fosse pelos corpos, seria por outra coisa qualquer.

No fundo éramos todos grandes amigos. Só a Sarkye aceitava dois “donos”: Eu e Alice.


Rui Rodrigues

  




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