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sexta-feira, 22 de junho de 2012

1971 - Ano louco, uma parada respiratória e a formatura.




1971 - Ano louco, uma parada respiratória e a formatura.



(Tenho-me lançado a escrever, como se fossem umas crônicas, contos mesclados com acontecimentos históricos. Estes são sempre reais, verdadeiros. O que não é histórico tem sempre um generoso fundo de verdade e é produto não só de vivências particulares, como também do que se ouvia contar ou falar pelas ruas em conversas. Espero que gostem deste).

Logo no início do ano veio a notícia: Idi Amin Dada depôs o presidente Milton Obote e tornou-se presidente de Uganda. Ninguém deu a mínima importância a esta notícia, a não ser pela frase “golpe de estado” que já se conhecia muito bem por experiência própria desde 1964. Lá em Portugal, esperava-se pelos cravos do 25 de abril. Mas isso só em 1975. Era cedo ainda.

Na universidade eu estava enrascado. Não pelas notas, mas pelo tempo que era muito curto para fazer tudo o que queria fazer. E como sempre, queria muito. Além do cálculo de um edifício de seis andares, tinha que fazer o cálculo de uma ponte de 2 km, dimensionar um canteiro de obras móvel para uma ferrovia, e projetar uma estrada com duração de 30 anos. Não sei se parece muito, mas se acrescentar que fazia um curso de mestrado na PUC por ter sido beneficiado com uma bolsa de estudos da Capes, que nem pedi, já deve parecer um pouco de muito, porque a Universidade era em Niterói e a PUC no bairro da Gávea, zona sul do Rio. Tinha que atravessar toda a cidade. Combinei com meu amigo Jacob para xerocar as anotações de aula porque eu teria que faltar a bastantes. Se agora já se pode achar que isso era bastante muito, tenho que acrescentar que continuava com o estágio, agora razoavelmente bem remunerado, e tomava conta de duas obras: um canal atravessando a avenida Brasil, e um estacionamento no aeroporto do Galeão. Ajudava meu pai nas lojas aonde ia sempre que eu podia. Agora sim, já se pode entender que eu deveria estar um pouco enrascado. Foi isso que minhas três namoradas também entenderam. Uma em Irajá, outra no bairro do Flamengo, e outra em Vila Isabel. Tive a parada respiratória em Vila Isabel. Com a porta fechada da sala, larguei o copo de suco de laranja sobre a mesa, corri até a cozinha, fui até o fundo do corredor, apertei o botão do elevador e escorrei desmaiado encostado á parede. Fui um herói quando acordei em seguida, meio tonto, mas feliz de estar novamente respirando, a namorada a meu lado dizendo para irmos ao médico. O médico deu-me a seguinte receita: ou o curso de engenharia ou o mestrado, pedir demissão do estágio, deixar as lojas com o meu até porque eram dele e não minhas, escolher das três uma namorada só. Tomar um comprimido pela manhã, um à noite. Se me sentisse muito pressionado um pela hora do almoço.

Foi uma receita pesada.

Uma das namoradas disse-me que a mãe tinha ido ao supermercado e que se eu corresse, poderíamos ficar a sós por uns bons momentos.  Por causa do médico já fui com a intenção de dizer-lhe que o precoce fim chegara adiantado, mas cheguei lá rapidamente. Começamos a amassar-nos no corredor e quando dei por mim, louco para entrar, mas dividido, resolvemos tocar-nos ali mesmo no corredor, calças meio arreadas, ela com o babydoll levantado, tudo pra fora. Então ouvi passos nas escadas e me ajeitei o melhor que pude. Era a mãe dela carregando duas bolsas de supermercado. Mas porque razão não chegara de elevador? E porque chegara tão e tão cedo que parecia que nem tinha ido?  Alegando que estava com pressa, voltei para a loja de meu pai – tinha saído de lá, no Flamengo – e saí para a Universidade. Larguei o mestrado. Larguei uma namorada, larguei a loja de meu pai. Faltava só uma namorada e o estágio.

Elis Regina e Gal Costa, para mim as melhores cantoras completas do Brasil, lindas, elegantes, lançaram respectivamente “Casa no Campo” e “Como Dois e Dois”. “If” , composta por David Gates e gravada por seu grupo Bread, era o maior sucesso que suavemente inundava os corações apaixonados que, tal como eu, ainda acreditavam naquele amor eterno que independia da conta bancária, embora o mundo estivesse entrando numa liberdade que desejávamos, mas da qual já sabíamos também o preço a pagar. Os “Bee Gees” inundaram as ondas do rádio e das tvs com “How Can You Mend A Broken Heart”. O mundo era azul, não havia pecado do lado de cá do equador, e o futuro não pertencia a Deus. O futuro era nosso, éramos nós. “Nós” era o apelido da sociedade como um todo, construindo o Brasil, enquanto a cavalaria nas ruas continuava distribuindo bordoada e assim destruía a confiança num estado totalitário.  Estávamos impacientes porque a ditadura já durava muito e o povo não dava mostras de se mexer para erradicar essa praga. Namorando, em casa, pelas ruas, eram as músicas que se ouviam.  Para cada música uma mulher na lembrança, uma equação matemática, uma fórmula a decorar, uma pausa na minha cabeça a mil por hora. Ainda tive tempo para assistir “os diamantes são eternos” com a bela, a mais desejada mulher do mundo, Marilyn Monroe. Sempre fui frustrado por não poder tê-la, mas minha compreensão me fez aceitar o fato dadas as circunstâncias de minha situação geográfica, minha conta bancária, e ter que enfrentar uma fila enorme, daquelas que dão a volta ao globo para imaginar que poderia tê-la.

Hafez al-Assad torna-se presidente da Síria a 12 de março e fica no poder, como sabemos hoje, até a data em que escrevo isto. Mais um ditador que jura ser democrático, levando muitos a duvidar da democracia e não desse idiota. Fico até a pensar quem será o idiota, se ele ou povo sírio. Por essa época, Bangladesh declara sua independência do Paquistão, e o Vietnam do sul invade o Laos com suporte norte-americano. Ninguém comenta nada pelas ruas. Não vêem que o mundo está mudando ou isso nem lhes importa. Não sei porque razão, mas a moça de Vila Isabel era um pouco complicada, misteriosa, um dia chegou de carona, que eu vi, e disse-me que tinha vindo de ônibus. Também menti. Disse-lhe até logo que amanhã voltaria, sem contar-lhe que a tinha visto chegar de carona, mas deve ter percebido algo em meu semblante. No último dos encontros seguintes, chorou. Pensei que era por mim, mas vim a saber que não. Ela tinha outro, o da carona. Achei que era muito justo, mas o bom era não sabermos disso. Por isso, nunca mais apareci. Não lhe contei sobre mim, porque não estava em condições de me aborrecer em conversas explicativas e “tu isto tu aquilo”. Agora faltava só o Estágio, mas o dono da empresa aumentou meu salário para o mínimo de engenheiro, compreendeu minhas faltas que eu supria com eficiência - ele disse isso – e continuei na empresa. Formar-me-ia em Julho. Pronto. Agora estava tranqüilo.

Há músicas que nos fazem sentir heróis, nos sobem o ego, sair pelas ruas alegres, cheios de confiança. Isso me acontecia quando ouvia Theme From Shaft - Isaac Hayes. Assisti a “Decameron” do Píer Paolo Pasolini e à despedida dos filmes de mocinho: “Adiós Sabata”. O mundo estava mais para “paz, amor e sexo”, “Faça amor não faça guerra”, ou, um pouco mais agressivamente, “sexo, maconha e rock’roll”. Formei-me em Julho depois de assistir a “Ensina-me a viver”. A partir desse filme, as velhinhas nunca mais foram as mesmas. Passei a ir freqüentemente a Irajá. Por vezes chegava tarde a casa. Comprei meu primeiro carro, um fusquinha 67 azul, com três meses de trabalho. Paguei à vista. Comprei do Arnaldo, meu primo que tinha uma oficina mecânica. 

Enquanto a Índia assinava um tratado de amizade e cooperação com a União soviética e a Austrália e Nova Zelândia retiravam suas tropas do Vietnam, depois de uma manifestação de 500.000 pessoas contra a guerra nos EUA, eu visitava freqüentemente Irajá. O mundo mudava a um ritmo de 24 horas por dia. A vontade era tão grande que com o pai dela fazendo a barba no banheiro e passando do banheiro para o quarto, nós fazíamos amor em cima do tapete da sala. Aliás, fazíamos amor em qualquer lugar. Juntos dava sempre nisso, nem pensar em qualquer outra coisa. Era o nosso alimento da alma, do espírito, bem haja Deus por nos ter dado tamanha dádiva.

Soube que estava começando uma obra enorme em frente ao Rio-Sul. Peguei meu paletó, subi o morro e fui lá no escritório para uma entrevista. Era preciso fazer o impossível: uma laje de 450 m2 a cada dois dias. Eram seis lajes. Estão lá até hoje. No ano seguinte mandaram-me para Porto Alegre para ser gerente de três empresas do grupo, abrangendo a região sul: Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina. Para variar tive problemas com a DOPS para explicar que focinho de porco não era tomada, juntamente com meu mestre geral e grande amigo, o Miguel Faustino Perez Galan. Ficamos detidos e depois soltos. Começava a minha carreira. Nunca mais tive tempo para acabar o meu mestrado.

Em 20 de Novembro desaba no Rio de Janeiro um vão de 30 metros do Elevado Paulo de Frontin que estava em fase final de construção. 48 pessoas morreram e dezenas ficaram feridas. Na obra em frente ao Rio-Sul da qual eu participava, construí um viaduto pré-tensionado, com escoramento calculado e reforçado, e mesmo sem fundações, sapatas ou pilares, os caminhões subiram para esvaziar o concreto. Na Paulo de Frontin quando o caminhão subiu, os 30 metros desabaram. Em dia que não me lembro, desabou, em Belo Horizonte, o Centro de Exposições Expominas, no Bairro Gameleira. 61 morreram.  Deram ao projeto e ao cálculo a configuração de uma ponte, esquecendo a força dos ventos e/ou os recalques diferenciais.

Algumas coisas paravam no mundo, outras continuavam. Tristezas em alguns lugares, alegrias em outras.

Foi bom o natal desse ano e o último que passei com ela e com meu pai. A vida me empurrou para outros estados do Brasil, para outros países e pouco nos vimos desde então.

Não casei com a moça de Irajá.

Rui Rodrigues

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