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domingo, 10 de junho de 2012

Os sócios



Os Sócios

Este bar é como todos os bares da vida. Depois de tomarmos um par de drinques de qualquer coisa, preparados com qualquer coisa, chacoalhados de qualquer modo ou nem chacoalhados, a qualquer minuto nos relaxam e nos deixam dizer coisas quaisquer a respeito de qualquer coisa.

Seu Júlio já foi moço de recados, servente de lavar chão em lojas, entregador de hortifruti. Juntou dinheiro e ficou sócio do dono do Hortifruti. Logo abriu outro (Hortifruti, claro) e acabou por comprar a loja do tal sócio, pondo-o para fora do negócio. Comprava para as duas lojas, mas entregava as mercadorias preferencialmente na que era só sua. 


Dando prejuízos mês a mês, o sócio dele preferiu vender a baixo preço a sua parte ao senhor Júlio a continuar perdendo dinheiro. Logo “seu” Júlio conseguiu impressionar incautos com o seu sucesso e arranjar novos amigos sócios. Mudou o ramo para bares e restaurantes. Casou-se com a mulher de um comerciante de ramo diferente que o ajudou financeiramente para ajudá-lo, e, em decorrência, a própria filha. Em cerca de 30 anos de atividade neste tipo de negócio, conseguiu ter 35 casas no Rio de Janeiro, 22 em S. Paulo, 12 em Porto Alegre e 6 em Salvador. Perdeu todos os amigos sócios e os sócios amigos. 


A vida dele era de mulheres e negócios. A mulher, nessa solidão de gaiola dourada, resolveu ser moderna. Exigiu e conseguiu a ajuda de “seu” Júlio para que lhe montasse uma pequena birosca para a venda de sucos de guaraná, pastéis e sanduíches. Em parte, porque seu Júlio mandou a mãe para dentro do apartamento deles para conviver com a mulher. A mãe, bronca, de aldeia, não podia dar certo na modernidade. Implicava com a nora sempre que entendia, e o filho tomava as suas dores. Seu Júlio fornecia tudo para a birosca da mulher, o que lhe garantia que jamais tivesse lucro e ela se tornasse competidora dele. Depois de alguns anos, ela largou o marido, os filhos e foi para Salvador, vendendo tudo o que tinha ao desbarato. Seu Júlio nunca mais ouviu falar da ex-esposa Ninguém mais ouviu falar. Ninguém se importa do que ela faz. Nem os filhos. Estes só sabem que um dia tiveram mãe. Talvez nem tenham foto dela.

Seu Julio ainda está na ativa, mas quem recebe o dinheiro nas lojas dos sócios que ainda tem – a maioria das lojas é dele apenas - são os seguranças sempre acompanhados de um contador que não conta histórias nem as quer ouvir: quando a conversa se enrola, avançam e metem a mão na caixa do dia. Anda sempre com seguranças.  Agora mesmo tem dois lá fora do Bar do Chopp Grátis que certamente o carregarão para casa.

Hoje, depois de alguns Irish Coffees, seu Júlio acaba de entrar numa situação de claro porre!

Pediu para que me sentasse a seu lado e logo me passou a mão no ombro. Encostou a sua cabeça perto do meu ombro e disse-me enquanto pegava o seu drink e lhe sorvia um generoso gole, passando a língua nos lábios e dando uma gargalhada:

- Rá!... Passei a perna em todos os sócios, mas eles pediam isso. Nunca me perguntavam como eu fazia sucesso. Quando os convidava, eles tinham dinheiro, eu sabia dos negócios... Rá!... Nem sabiam o que perguntar porque não entendiam do negócio! Queriam que eu os ajudasse a ficarem ricos! Se lhes ensinasse as tramóias, iam fazer-me concorrência... E eu sou disso? Mulher!... Mulheres há tantas e gostosas! Para quê ficar mantendo uma em casa que só enche o saco e quer mais e mais e mais? Estou certo?

(Estava com o rosto bem de frente para mim, o corpo torcido na cadeira para poder enfrentar o meu olhar e tentar perceber se minha resposta seria verdadeira. Aquele sujeito era uma velha raposa, precocemente velha, que jamais vivera uma vida de verdade, jamais procurara instrução porque gente instruída não fica rica nem deixa que a explorem... Respondi-lhe incorporando as minhas melhores convicções)

- Creio que sim, seu Júlio. Não entendo muito de negócios. Não tenho sócio e o que ganho no Chopp Grátis mal dá para as despesas... Mas estou curioso como os enganava. Tem que ser muito inteligente para enganar tantos...

Olhou-me procurando ver em meus olhos, em minha expressão facial algum sintoma de que estaria tentando extrair suco de pedra. Como não viu nada, continuou:

- Rá!... Você não é como eles. Por isso vou te contar. Quando chego em alguém para convidar para sócio, já sei que tem dinheiro. Ou roubou, ou ganhou por herança, não importa. Está com o dinheiro e quer aplicar. Se não quiser aplicar, eu convenço levando essa pessoa para ver as minhas lojas. Nelas, os meus sócios só podem cooperar comigo, porque só os levo nas lojas em que eles estão ainda satisfeitos. Depois abrimos o negócio. Já na montagem levo a minha parte ao contratar os fornecedores de materiais, equipamentos e de mão de obra de execução. Ou seja, minha parte no negócio já me sai quase de graça. Como eu forneço grande parte dos produtos, a título de manter a qualidade, já lhes roubo parte do lucro porque nesse fornecimento já levo o meu próprio.

(Pegou o copo e acabou com o Irish Coffee. Pediu-me outro. Enquanto eu o preparava, continuou falando. O bar estava vazio, os seguranças lá fora).

- Rá!... (que mania de falar aquele Rá, irritante, como se estivesse expurgando demônios). Claro que logo nos primeiros meses o movimento era muito grande. Sempre que eu podia, comprava ou alugava uma loja nas imediações, e montava um negócio semelhante com outro sócio, fazendo concorrência a mim mesmo e a esse... Parece complicado? (olhou e não me viu a seu lado. Procurou pelo salão do bar até me encontrar atrás do balcão).

- Rá!.. Ouviu? ... (-ouvi! Respondi-lhe detrás do balcão)... Mas o melhor vem agora... Chega aí para ouvir... (e acenou-me com o braço repetidamente chamando-me para a mesa)
Cheguei rápido. Irish Coffee prepara-se rapidamente com o café já super aquecido

- Rá!... Com a concorrência, o sócio via diminuir a freguesia e me pedia para comprar a sua parte. Se não pedia, pedia-lhe eu... E assim a loja me saía de graça. Tudo lucro!... rá, rá, rá... Se eu não arranjasse loja perto, começava a torrar o saco dos sócios dizendo que aquilo era loja para dar muito mais lucros e que eles não estavam gerindo bem. Depois de algumas discussões, ficavam irritados e vendiam-me a parte deles.

Perguntei-lhe á queima roupa para não lhe dar tempo para pensar:

- E quem toma conta das lojas que passaram a ser só suas? Não tem medo de que o roubem?

- Rá... E eu sou trouxa, para arranjar sarna para me coçar? Ou arranjo novos sócios ou passo as lojas... Ainda hoje tenho lojas sendo passadas e lojas abrindo... Enquanto houver trouxas, eu vou ganhando a minha grana. E olha... Já comi muita mulher de sócio... Rárárárárá...

E ria a bandeiras despregadas... Aquilo ali era um dejeto humano, uma excrescência da natureza, filho de uma mãe que nunca deveria ter nascido, viveu nas crenças da nulidade e morreu rica sem saber.

“Seu” Júlio, amparado por seguranças que lhe dividiam as mulheres, saiu cambaleando do bar. Já na porta gritou-me:

- Claro, que com você, seria diferente... Um dia faremos um bom negócio. Pode escrever! (certamente tinha-se dado conta da mancada de ter-me contado os seus segredos).

Chovia lá fora. Aproveitando-se do fato de estar amparado por seguranças e estes estarem com as mãos ocupadas, um carona de uma moto que se aproximara silenciosamente da portaria do Bar disparou vários tiros usando silenciadores. Seu Júlio e os dois seguranças caíram na calçada. Corri para o telefone e liguei para a polícia e para os bombeiros. Não vi a placa da moto nem os rostos dos motoqueiros.


Não sei porque razão, mas não pedi nada a Deus.

Rui Rodrigues


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