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quinta-feira, 21 de junho de 2012

1968- A grande virada da humanidade e as barcas Rio- Niterói




A grande virada da humanidade e as barcas Rio- Niterói – 1968
(Segundo relato de um estudante da época)


Aos vinte e três anos, os hormônios de qualquer ser humano estão à flor da pele, o corpo todo impregnado da sola dos pés à ponta do maior cabelo. A vontade de gastar esses hormônios não cabe no corpo, precisa ser extravasada, acalmada.

Acho que fui o sujeito mais felizardo do mundo nesse aspecto. Corria o ano de 1968, estudava engenharia civil na Universidade Federal Fluminense –UFF, em Niterói, completamente saudável como até hoje, e tinha que atravessar as barcas desde o Rio de Janeiro, todos os santos dias e até em dias santos, para assistir às aulas na UFF. Quer quando ia quer quando voltava nesses barcos do amor, tinha a oportunidade de ficar frente a frente ou ao lado de lindas mulheres permitindo por uns bons 20 minutos aquele “olho no olho” tão necessário para uma aproximação, e que na correria das ruas é quase sempre impossível.  Invariavelmente procurava um lugar afastado dos meus amigos de universidade para poder concentrar-me na minha atividade preferida quando não estava no estágio, nas lojas de meu pai ajudando-o ou estudando: conhecer mulheres aproximar-me delas, conhecê-las “a fundo”, saborear tudo o que me pudessem oferecer. Os estudos? Não faltava a uma aula, sentava-me nas cadeiras da frente, prestava a máxima atenção. Sem isso demoraria muito mais para fazer os trabalhos da universidade e não me sobraria tempo para as mulheres. Na verdade, andei matando algumas aulas, mas foram tão poucas que em nada influenciaram as minhas notas, um ponto a mais na média se muito.

Leila tinha os cabelos negros, olhos cor de mel, corpo alvo, da minha altura. Era perfeita, curvas bem desenhadas, um pouco tímida, interessada mas indecisa. Usava um vestido rodado em tons de branco com grandes flores em tons desmaiados, fazendo realçar as suas curvas que se adivinhavam sob o vestido. Para mim, Leila estava completamente nua. Quando naquele dia, nas barcas, sentei a seu lado, olhei lá para trás: Lá estavam alguns elementos de minha turma sentada junta, olhando para mim e sorrindo entre si. Eles costumavam apostar se eu ia ou não sair da barca conversando com a moça. Sentei a seu lado e sorri-lhe discretamente. Olhamo-nos. Não demorou um minuto e surpreendendo-me, perguntou-me que curso fazia. Saímos juntos das barcas e acompanhei-a até o táxi. Fiquei de ligar-lhe, mas pediu-me que uma amiga minha fizesse a ligação telefônica. Ela atenderia em seguida. Minha amiga teria que dizer que se chamava Lurdes Lima.

Era sempre um passeio muito agradável, aquele nas barcas, até mesmo pela paisagem, momentos de alheamento da grande cidade, das correrias, das perseguições da polícia montada sobre a liberdade de expressão. Momentos que até serviam para conferir uma ou outra fórmula antes das provas. Portugal e Brasil viviam momentos terríveis de ditadura. Naum, um amigo nosso da universidade, foi empurrado para dentro de um carro e desapareceu numa tarde na praia de Icaraí, bem perto da reitoria da UFF. Voltou meses depois acompanhado sempre da mãe e do pai por determinação da justiça da ditadura. Se uma coisa dessas me acontecesse, lá se ia meu curso de engenharia. Mesmo assim ajudei muitos amigos da esquerda moderada na Universidade, como presidente do Grêmio estudantil e para os quais cedi o meu cargo. Com a minha influência passaram a ter o direito de nos darem a sua mensagem nos intervalos das aulas com a turma toda escutando. Jamais durante as aulas. Defenderia a liberdade e a democracia de outra forma, mais tarde, já formado.
Ouvi falar do ultimo show do Roberto Carlos em S. Paulo ainda como “jovem Guarda”. No Rio corria a peça “Roda viva”, entre correrias nas ruas em lutas desiguais da juventude desarmada e a polícia com cassetes, tiros e cavalos montando éguas irritadas. No Vietnam, iniciava-se a “Ofensiva Tet”. Ho Chi Min invadia, só em janeiro, 34 capitais de província vietnamitas e a cidade de Hue. Nas aulas, entre análises de solo, estudos sobre os cimentos, cálculos de estruturas, pontes, estradas, minas, Nanda costumava aparecer na portaria e apertava a buzina de seu Alfa-Romeo, de forma reconhecível. Numa dessas buzinadas, o meu querido amigo professor, Homero Pinto Caputo, da cadeira de Mecânica dos Solos interrompeu a aula, olhou para mim e disse-me... Rui – Você é bom aluno. Acho que a partir de agora, esta aula vai ser um tormento para você... O Jacob Zimerfeld pode copiar a aula. Vai lá, vai... Sei o que é isso...

Eu fui!... Entrei no carro de Nanda e fomos até a praia de Itaipu, mas já a Leila polvilhava as minhas ilusões. Eram os cabelos negros, os olhos grandes cor de mel, a sua voz suave, o modo íntimo de falar. Acreditava que ela me seduzira e não eu. Aquela mulher tinha que ser minha, e uma cama, em algum lugar, estaria esperando por nós. A tarde com Lena foi boa. Mas não das melhores. Nunca soube o que Lena queria. Era muito confusa, como se estivesse pescando sem isca. Passou-me várias vezes pela cabeça que ela queria casar e se dedicava a isso. Eu não queria casar.  

Na França começavam os primeiros movimentos das barricadas. Os estudantes franceses saíam ás ruas. Portugueses morriam aos montes em Angola, em Moçambique, na Guiné, em Cabo Verde. Salazar ia contra os ventos da história, e eu me perguntava, já no Brasil, se não haveria uma democracia verdadeira, em que o povo pudesse votar em tudo em vez de entregar o governo, sua vida, sua família, nas mãos inconseqüentes de líderes que apreciam o bem estar de palácios e sua sêde vaidosa e interesseira de poder e de dinheiro. Nessa época eu não sabia ainda que 22 amigos meus do Liceu de Gil Vicente e da freguesia de Arroios e adjacências, em Lisboa, morreriam em combate, mas já sabia desde 1965 que uma tripulação de cadetes do navio escola Sagres, em regresso para Lisboa dos EUA, fora mandada para Luanda porque houvera uma “rebelião” por lá. Os cadetes desembarcaram e alguns morreram em combate. Dois erros: O de Salazar não saber traduzir os ventos da história, e do idiota que mandou uma tripulação sem treino e jovem de seus futuros comandantes para morrerem em combates de rua. O terceiro erro que cometeram foi serem responsáveis pela morte de meus amigos. Jamais perdoei isso a qualquer ditador que em nome do que não presta, mata tudo o que há de melhor numa nação: a juventude e a fé nos governos. Nem com o filme “Adeus África” de 1966, os políticos portugueses foram capazes de “interpretar” os ventos da história, ou se interpretaram, não foram capazes de ir contra Salazar.

Encontrei-me com Leila num apartamento que alugava na rua Paissandu para momentos especiais, porque não havia motéis ainda. As beatas contumazes que apoiavam a sacristia das igrejas e a CNBB não permitiam que a sociedade tivesse uma “coisa daquelas”. Por isso os casais se encontravam às multidões pelas ruas mais escondidas, pelas praias mais afastadas. Os amantes amavam-se ao ar livre, dentro de automóveis, encostados em muros, nos portões e escadarias. Uns anos depois as beatas acabaram com a sua falsa moral e desapareceram de cena, a CNBB abriu os braços para a modernidade, e a cidade encheu-se de motéis. Deus é grande, e do que se escreve por aqui, tudo se escreve também nos céus, sem precisar de tradutores papas e arautos.

Ao entrarmos no apartamento, Leia contou-me que seu marido reclamava dela por estar sempre seca. Entendi. Entendi que era casada, e que não gostava do marido, ou tinha sido reprimida sexualmente ou ainda não tinha descoberto que era lésbica. Foi um pensamento que me apareceu como um raio e como um raio se foi sem deixar rastros. Eu queria a Leila com ou sem problemas. Já estava excitado desde que a apanhara no local de encontro, e minhas calças apertadas, boca de sino, como era moda na época, não permitiam que o meu instrumento de prazer que Deus me dera, pudesse crescer á vontade em toda a sua plenitude. Um pouco mais abaixo dele, minhas bolas pareciam latejar, chegavam a doer. Uma dor gostosa que logo passaria. Quando depois de alguns minutos entre beijos e afagos senti que Leila estava suficiente úmida, que seus carinhos se faziam mais intensos e suas pernas se abriam e se acomodavam, penetrei-a. Descansamos alguns minutos e recomeçamos. Havia muito a explorar e eu não sabia quando me sobraria dinheiro para alugar aquele apartamento outra vez.

Também sem ouvir os ventos da história, o governo da África do Sul estabelece o Apartheid, tentando separar o inseparável, mudar os rumos da história e da humanidade. Martin Luther King já andava pelos Estados Unidos em movimento contrário. Foi morto neste ano, dia quatro de abril, na cidade de Menfis, mas o movimento ganhou as ruas e mudou as sociedades. Notícias vindas da França eram muito claras sobre as barricadas dos estudantes e encontravam eco ao redor do mundo: A liberdade sexual era necessária num mundo em que a falsa moral perdia terreno dia a dia. Logo invadiria as trincheiras e as cavernas dos templos, denunciando abusos sobre crianças nas sacristias. Na Tchecoslováquia preparava-se a Primavera de Praga que eclodiria em setembro. O mundo estava em mudança. O muro de Berlim incomodava. Em Cuba, Fidel Castro, apoiado pela URSS desapropriava os últimos bares, as ultimas livrarias, as últimas oficinas acabando com a iniciativa privada. Começava a cavar o enterro da necessidade de progredir, de evoluir e também de sua economia. O Estado sufocante.

Pedi a minha amiga que ligasse novamente para a Leila. Marcamos novo encontro um par de semanas depois. Minha grana não era lá essas coisas, e meu pai me mantinha à rédea curta. Não me dava mesada, só umas ajudas de custo, embora minha universidade não fosse paga, e o ajudasse nas lojas. O salário de estagiário dava para muito pouca coisa.
Encontramo-nos no apartamento. Agora já sabia que não era lésbica nem seca. Passamos a tarde inteira entre a cama e idas ao banheiro. Conheci todo o seu corpo, todos os seus carinhos, sem segredos. Para mim, toda a mulher que se deitava comigo era virgem. Virgem para mim. Leila perdera essa virgindade comigo e já não era tímida. Disse-me que na verdade vivia na mesma casa com o marido esperando a separação. A casa era dela. Ele era advogado. Vivia com os pais, um irmão médico e o marido cessante. 


Em 5 de junho assassinaram o presidente Kennedy em Dalas, USA. A URSS invadiu a Tchecoslováquia em represália à Primavera de Praga. A França lança sua primeira bomba atômica no Atol da Muroroa. No Brasil a ditadura impõe o AI-5, (Ato Institucional nº 5), que suprime as liberdades democráticas no Brasil. Com o AI-5, o Congresso Nacional é colocado em recesso e vários parlamentares têm seus mandatos cassados. Até dezembro se fariam manifestações contra a guerra do Vietnam. Numa das lojas de meu pai atendi um cliente que era filho do embaixador dos EUA. Estava acompanhado de dois outros, e por ele fiquei sabendo do uso de granadas de fósforo. Isso explicava a garotinha que apareceu nua numa foto, fugindo de uma povoação em chamas ao fundo da estrada. Perdera os pais e estava toda queimada. A foto correu mundo.

Os Beatles lançaram seu álbum branco, a peça “Hair” fez sucesso na Broadway, as canções e o tema musical correram mundo e ainda povoam os meus ouvidos de vez em quando. Isso me lembra Leila, um amor inacabado.

Quando minha amiga voltou a ligar para a Leila, notei um olhar de preocupação no seu olhar e não me dava o aparelho para que eu falasse, como era costume:

- Sim. (dizia minha amiga)
- Sei...
- E como ela está?
- Em qual hospital?
- Tem o numero do quarto para que possa fazer-lhe uma visita?

E desligou. Voltando-se para mim, comentou:

- Você está em maus lençóis, meu amigo... Mataram o irmão de Leila quando chegava em casa. Leila passou mal e está no hospital.

Liguei para Leila  no hospital dias depois, assegurando-me que estivesse sozinha no quarto. Aconselhou-me a ficar longe porque não sabia se seu irmão tinha sido assassinado por acaso, por engano, ou por vingança. Naqueles tempos de ditadura, e com o irmão assassinado, acabei por esperar demais e Leila se perdeu da estrada em que eu caminhava em minha vida.

Onde quer que esteja Leila, que saiba que aprendemos juntos e que nos amamos juntos. Paradoxalmente, amores jovens que se vão não morrem nunca. Parece que só morrem os amores que amadurecem e tombam de tão maduros, transformando-se em algo do qual o desejo já não é da fruta, mas da imagem que representa.

Rui Rodrigues 

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