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quarta-feira, 20 de junho de 2012

Fornelos de Santa Marta de Penaguião – Ecos de 1949





Fornelos de Santa Marta de Penaguião – Ecos de 1949

Hoje a juventude desta linda vila diverte-se na agradável Praia Fluvial de Fornelos.

Curioso por saber, por exemplo, o que por lá acontecia em 1949, apanhei o primeiro vôo para essa data e confortavelmente viajei para lá. O tempo estava agradável e o avião movia-se entre ventos de vozes de lembranças, reminiscências impessoais da Internet e turbilhões de consciências vividas por lá nesse ano em meio a ar rarefeito da imaginação. Por motivos óbvios de carência de confirmação, e porque os nomes também me fogem da lembrança, nada do que se lerá a seguir pode ser tomado por verdadeiro, mas, de certa forma, contém algumas doses generosas de verdade.

Naquele ano Salazar mandava na nação como primeiro ministro e Carmona era o presidente da República. Salazar não podia demiti-lo porque Carmona tinha a simpatia das forças armadas, e Carmona não se atrevia a demitir Salazar, ainda mais que este era amigo íntimo do Cardeal Cerejeira desde os tempos da Universidade de Coimbra. Nesse ano fundou-se a Organização do Tratado do Atlântico Norte com a participação de Portugal, e, sob o arrocho financeiro de Salazar faltavam empregos. Emigrava-se principalmente para a América do Norte e do Sul.

Mas a vida não estava tão mal para o cinema português. Só nesse ano foram lançados “Heróis do mar”, de Fernando Garcia, “Morgadinha dos Canaviais” de Amadeu Ferrari e Caetano Garcia, “A volta de José do Telhado” de Armando de Miranda. A televisão já existia em muitos paises, mas na casa de Tiago Afonso só existia um rádio Zenith 6-D-612 de 1942 e no qual havia escutado todas as noticias da guerra. Com a censura imposta pelo governo de Salazar não acreditava nas notícias emitidas pelas emissoras nacionais. Por isso comprou o radio que usava quase sempre em ondas curtas. Sem instrução média conseguiu um livro de escola para ensino do francês e aprendeu sozinho tudo o que pode. Conseguia entender o que diziam. Foi pelo radio que agora, em 1949 tomava ciência da onda de emigração. 

Portugueses largavam tudo o que tinham, não tanto porque estivessem na penúria, mortos de fome, mas porque queriam um trabalho digno, progredir na vida. O governo português nunca se preocupara com isso no passado e certamente, por quase um milênio de história repetitiva, também não cuidaria de lhes promover trabalho no futuro. Os portugueses continuariam a emigrar eternamente. No fundo isso interessava muito a Salazar. Os emigrados não representavam custo para o estado. Pelo contrário, amantes e saudosistas de sua pátria, sempre mandavam religiosamente suas economias mensais para bancos portugueses para o dia em que retornassem a sua pátria. Esse dinheiro era usado por bancos e pelo governo para empréstimos e obras públicas. Era uma das principais fontes de “renda” da nação portuguesa, um dos segredos do sucesso da política econômica de Salazar.  Salazar não agia como economista. Agia como um esperto, e Tiago Afonso já pensava em emigrar. Conversara com alguns amigos com os quais andara durante a guerra nas minas de Volfrâmio que era vendido para a Alemanha de Hitler. Os amigos concordavam que se pudessem emigrariam, mas que a situação não lhes permitia. Além do mais e principalmente, também tinham família e estavam conformados. Em suas conversas Tiago nunca deixava transparecer sua determinação de partir.

Tiago Afonso amava sua mulher. Ela era linda, de enormes olhos negros, sorriso alegre, corpo bem torneado, peitos fartos, lábios carnudos. Não perdia uma oportunidade de vê-la, acariciá-la. Do trabalho a casa eram cinco minutos, porque tudo ficava perto na Vila. Na saída do trabalho lavava-se bem, e quando chegava em casa as suas mãos ávidas dirigiam-se para as saias da bela mulher, Alda Bentes, e carinhosamente subiam-lhe pelas pernas, buscando o que tanto amava nela, a sua intimidade mais íntima, sempre úmida, pingando de desejo. Ali ficavam por minutos tocando-se, excitando-se, até que os suspiros e o arfar atingiam um estágio impossível de controlar e se amavam perdidamente. Podia começar na cadeira da sala, na mesa, mas acabava sempre na cama, até que as belas pernas de Alda Bentes ficassem escorrendo trementes de amor. Era assim o amar de Tiago Afonso por sua bela Alda Bentes e dela por ele. O radio não parava de tocar “Chiquita bacana lá da Martinica” por Emilinha Borba, “La Vie em rose” por Edith Piaf, dentre outras, e “My Hapiness” por Dinah Washinghton.

Um homem apareceu morto no quelho, um caminho aberto a monte, lindeiro a algumas casas, empedrado e lamacento. Um suspeito fora visto com uma arma, mas arranjos familiares conseguiram provar que a arma era de brinquedo. Ele não era o assassino e assim ficou o caso. Tudo levava a crer que fora por ciúmes. Também nunca se soube o que aconteceu com a senhora que descera á adega para preparar calda bordalesa e fora encontrada inanimada com cristais azuis nas narinas aparentemente já sem vida. O porco que conseguiu fugir do banco de abatimento fugiu já esfaqueado pela rua da nogueira abaixo, a caminho do rio, escorregando pelo empedrado úmido. Três homens corriam atrás dele e conseguiram levá-lo de volta. Crianças que assistiram sentiram pena do porco. Sabiam que o alimento tinha vida muito parecida com a delas, e o sangue até parecia igual. Sua admiração só se esvaia quando comiam o sarrabulho. Essa noite seria de quarto crescente para a carne crescer mais na panela

Em 13 de fevereiro desse ano houvera eleições que foram fraudadas a mando de Salazar, sinal de que o país não mudaria. Norton de Matos concorrera em oposição ao regime, mas desistira da sua candidatura por alegada falta de liberdade. Apenas votaram 17% dos habilitados a votar. Salazar mandou prender os apoiantes de Norton e em 25 de março manda prender Álvaro Cunhal e muitos de seus dirigentes no campo de concentração do Tarrafal. Nesse dia, embora não fosse comunista Tiago resolveu que emigraria. Já não suportava a vida que levava, sem esperança de melhoras. Podia ter mais e queria ter mais. Teria.

Não comunicou a sua decisão a ninguém. Se o fizesse os amigos e familiares tentariam demovê-lo da empreitada e passaria o resto do tempo entre choradeiras e tristezas que não desejava sofrer nem causar. Comunicaria a decisão quando já estivesse longe e só a mulher saberia, mas mesmo assim, nas vésperas.

Em setembro a União Soviética fez testes com sua primeira bomba atômica. A notícia chegou a Fornelos pelo radio. A guerra fria ia ficando mais quente. Havia apenas quatro anos que os EUA haviam lançado as duas bombas sobre Hiroshima e Nagasaki no Japão. Nesse mesmo ano lhes nascera o filho. Comentava-se sobre a possibilidade de uma nova guerra mundial, desta vez entre os EUA e a URSS, dois gigantes. O Dr. Antonio Egas Moniz finalmente recebera o seu prêmio Nobel por seu trabalho sobre a lobotomia.
Na vila já era época das vindimas, homens e mulheres na labuta, cestos cheios de uvas sobre sacos de aniagem na cabeça, roupas suadas, lagares a encher, homens e mulheres a pisar as uvas ao som de cantochões.  Tiago iria antes do Natal, depois das vindimas. Já procurara por passagem em breve trazida por um amigo que tinha uma arrastadeira preta, um citroen, que só usava em casos de necessidade. Era o único automóvel da vila que levantava poeira na estrada de terra que lhe dava acesso. Fornelos não era lugar de passagem, mas sim de destino. Talvez por isso o seu isolamento secular. 

O amor que tinha por Alda, aliado à antecipada certeza da privação de seu corpo e de sua presença o fizera emagrecer alguns quilos. Não era apenas a saudade, mas o aproveitar da presença para se amarem até a exaustão a qualquer hora do dia ou da noite, como se cada vez fosse a última. Por mais fortes que fossem as intenções não saberiam se voltariam a encontrar-se. Era isso que os fazia emagrecer. Sabiam que as viagens eram muito perigosas. Na noite da despedida não dormiram. Tiago dormiria durante a viagem. Despediu-se dos amigos e familiares ali mesmo, no largo do Senhor entre abraços, choros sufocados, lágrimas escorrendo pelas faces. Tiago não chorou. Alda também não. Tinham confiança um no outro, confiança na vida.

Quando chegou ao cais da Rocha do Conde de Óbidos em Lisboa ainda sentia nos lábios o perfume de Alda, sua boca macia e úmida, seus olhos lânguidos que o olhavam de frente enquanto se uniam no prazer do amor. Era capaz de sentir as pernas de Alda tremendo de prazer entre as suas, seu pescoço esticado, cabeça jogada para trás no delírio, esticando o corpo, apertando-lhe o membro até o relaxamento total. Alda tinha um perfume próprio só dela. Nenhuma outra mulher tinha seu perfume.

Quando o vapor apitou avisando o inicio dos movimentos  para largar o cais, apitos de ordens da tripulação a bordo, Tiago sentiu que estava numa aventura, que haveria riscos, mas que não poderia mandar parar o navio para voltar. Fornelos era agora um lugar de saída.

Pela segunda vez em sua vida sentia a mesma sensação ao ver as amarras do navio se soltarem da beira do cais. A primeira não viu. Foi quando lhe cortaram o cordão umbilical que o amarrava a sua mãe. O vinho daquele ano teria um sabor muito especial, inesquecível.

Rui Rodrigues

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