Domingo passado passou por aqui no Bar do Chopp Grátis um sujeito especial. Um velho amigo meu. Trouxe um saco de peras do supermercado e quis surpreender-me com uma receita de bolo simples e saboroso. Trouxe também 250 gramas de manteira, 250 gramas de açúcar mascavo, 250 gramas de farinha e 250 gramas de açúcar comum. Pediu-me um pirex médio e um cálice de vinho do porto. Misturou a manteiga com o açúcar mascavo e a farinha. Ficou uma farofa um pouco úmida. Disse-me que era assim mesmo. Lavou e cortou as peras em fatias finas e espalhou a metade pelo fundo do pirex, jogando o cálice de vinho do porto por cima. Disse-me que se pode usar qualquer licor, Whisky, mas que o vinho do Porto lhe dá um toque especial. Em cima da primeira camada de peras cortadas em fatias, colocou a metade da farofa. Nova camada de fatias de pera, e nova camada de farofa. Levou ao forno, esperou até o açúcar mascavo começar a ficar marrom e retirou. Mais ou menos uns vinte a vinte cinco minutos. Provamos. Aquilo era uma loucura de bom.
Enquanto preparava a receita, começou a falar-me sobre saudades, porque tinha vindo até mim exatamente por isso. Sentira saudades e resolvera brindar-me com uma receita de sua avó. Eis o resumo do que consegui guardar do que disse:
Ensaio sobre a saudade
Saudade parece estar
estreitamente associada ao “quando”, porque este termo “quando” marca uma divisão
entre dois momentos: o momento em que se têm alguma coisa, e o momento
seguinte, em que essa coisa já não nos pertence, ou não faz parte de nossos
momentos.
Quando nasci chorei. Senti
saudades do útero quente, macio, equilibrado, tranqüilo, de minha mãe. Meu
processo na relação com a saudade começou nesse instante. Falta de conforto era
o meu primeiro significado de saudade. Em outros nascimentos a que assisti,
anos mais tarde, ouvi dizer que “era” assim mesmo. Se a criança não chorasse
teriam que lhe dar um tapa nos glúteos. Coitadas das crianças. Não é uma boa
forma de entrar neste mundo!
Quando minha mãe me dava de
mamar, sentia-me bem com sua mão sobre meu estômago, minha boca sorvendo o
alimento de seu peito, o calor de seu corpo que me fazia sentir confortável,
amparado. Quando depois me depositava no leito, eu chorava. Sentia saudade
daquele bem estar. A falta do bem estar naquele leito sem calor, inerte, era o
segundo significado de saudade. Minha mãe poderia ter ficado um pouco mais
tempo comigo no colo, mas mães têm muito que fazer.
Quando um dia, malas
prontas, casa desfeita, família a bordo de um transporte nos mudamos para outra
cidade, senti saudades de minha terra natal. Criança aceita as necessidades da família embora não
as entenda muito bem, e mesmo quando entende, maldiz as necessidades de mudar,
culpa tudo o que está por detrás dessa necessidade que a provocou. Crianças mudariam o mundo para que
quem quisesse mudar de lugar o fizesse por querer e não por necessidade. Cedo descobrem
quem é que deve promover a existência de trabalho e bem estar para as famílias.
Quando um dia a conheci,
senti algo muito diferente. Completamente diferente de tudo que tinha conhecido
até então. Entre tantas mulheres neste mundo, ela tinha voz, olhos, corpo, e
usava roupas, adereços, perfumes como todas as outras, e pintava os lábios,
dividindo-me o olhar entre os olhos úmidos e os peitos generosos arfantes, as
mãos úmidas nas minhas, como a me dizer que todas as suas partes estavam também
úmidas, desejosas de atenção e carinho. Mas era diferente de todas as outras.
Descobri então que depois deste sentimento que nos parece único, buscamos a
repetição desse mesmo prazer em novos encontros. E a cada encontro, a nova
felicidade de encontrar não a mesma mulher, mas o momento de sentir o que se
sentiu com a primeira. E vi que homens e mulheres são feitos da mesma natureza,
e não feitos um para outro, mas todos para todas e todas para
todos. Buscamos aquilo de que sentimos falta e a isso se chama saudade.
Quando minha vida se fez de
viagens e mudanças, e a isso já me habituara, parte de meus sentidos se
acomodaram na insensibilidade de achar que a vida era assim. O lar já não era
um tronco com raízes, mas pedaços de troncos cortados espalhados pelo vasto
chão onde ainda plantava minha vida com minha família. Cada pedaço de tronco um
lar largado no passado, cada lar uma tênue lembrança. Deles não havia saudades.
Quando a família cresceu e
se dividiu, cada um me deixou seu quinhão de saudades, cada quinhão com sua
intensidade, cor, calor, perfume, ecos de palavras, ecos de expressões, ecos de
alegrias e de tristezas, um saldo de vida em que nem tudo se resume a saudades.
È uma saudade diferente de todas as outras. No meu primeiro sentimento de
saudade, eu estava nu. Agora é a saudade que está nua, sem adereços que a
distorçam ou a camuflem.
Quimicamente o amor pode ser
interpretado como efeitos sensoriais que nos provocam inundações de produtos
químicos em nosso cérebro e que nos dão a sensação de prazer. A sua falta
provoca dependência, saudade, tristeza, até depressão, e isso explica o comportamento
amoroso de casais em que um deles, normalmente as mulheres - até pelos efeitos
da TPM - privam o parceiro da sua presença e de seus carinhos para que lhe
sinta a falta, a saudade, a necessidade de voltar à sua companhia. É o “jogo do
amor”, com a ferramenta da saudade a dar-lhe, a cada dia, um dia diferente.
E nesse jogo da vida
passamos nosso tempo a pensar e a decidir no que vale a pena investir o nosso
tempo, criando saudades, desprezando saudades, prisioneiros de saudades.
Será a saudade uma forma de
amor, ou uma ferramenta, uma arma, um engodo da natureza?
Rui Rodrigues
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